terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Estoril, 1940.

 

 
Dejan Tiago Stankovic (1965-)
 
 
 
 
Dejan Tiago-Stanković (Belgrado, 1965) é escritor e tradutor literário nascido na Jugoslávia, actual Sérvia,  e naturalizado português.
Mora em Lisboa e em 2012 estreou-se na ficção com De onde eu era já não sou e outros contos de Lisboa. O seu mais recente livro, Estoril, lançado na Sérvia em 2015, acaba de ser publicado em Portugal, pela Contemporânea. Um romance com um «fundo real» – e alusões a múltiplas personagens históricas – cujo enredo se passa no Portugal dos anos 1940. Aí o subtítulo («Um Romance de Guerra») de uma obra que mergulha nos mares turvos do Estoril, povoados de espiões, refugiados ilustres, agentes da polícia política portuguesa, príncipes falidos e milionários em fuga para outras paragens.  

 
 
Hotel Palácio. Estoril
 
 
Quem navega por mar rumo a Lisboa, pouco antes de entrar nas águas calmas do Tejo, avista ao fundo, do lado esquerdo, a silhueta azulada de uma montanha. É a serra de Sintra. Ela corta o caminho das nuvens que carregam chuva. É por isso que o Estoril oferece aos seus visitantes mais dias de sol por ano do que qualquer estância balnear no Velho Continente. Assim consta, pelo menos, na brochura da Junta de Turismo que se refere a estas praias com o nome comercial de «Costa do Sol». É um nome bonito, mas nunca chegou a pegar. Na linguagem do dia-a-dia, a nossa pequena Riviera continua a ser referida por «Costa do Estoril» ou, mais frequentemente, como «a Linha».
         A ladeira ligeiramente ondulada por cima da baía é virada para sul e dá para o mar aberto. Nela estão espalhadas moradias e casas de férias de famílias abastadas da capital portuguesa. No sopé da ladeira as ondas lavam as areias e sopra sempre vento: é a praia do Tamariz, com as falanges de guarda-sóis, cabines de lona e espreguiçadeiras. A orla do oceano é seguida pela linha férrea recém-aberta e, paralelamente a esta, também recentemente inaugurada, a Estrada Marginal: à direita, a meia hora de carro, fica Lisboa; à esquerda, tão perto que se consegue ver, está Cascais.
         Quem estiver a chegar de comboio deve sair na estação do Estoril. Não na de São Pedro do Estoril, não na de São João do Estoril, nem sequer na do Monte Estoril. Quem quer chegar ao Hotel Palácio deve sair naquela paragem onde diz apenas Estoril. De seguida, tem de atravessar os carris e a estrada até chegar a um amplo parque de formato rectangular arranjado à francesa. No cimo do parque, no meio das palmeiras, ciprestes e arbustos multicoloridos, encontrará a maior atracção da estância balnear – o Grand Casino Estoril. Ao lado do casino fica um edifício monumental, todo branco, com fileiras de janelas de bela vista; umas dão para o parque, outras para o oceano. No topo do telhado há um grande letreiro que diz: Hotel Palácio. Na época, havia muitos mais hotéis no Estoril, mas vamos tentar não falar deles mais do que o necessário. E não é por serem mais pequenos ou menos luxuosos, mas porque cada um deles mereceu um papel principal e não secundário e, neste filme, já temos o Hotel Palácio como protagonista.
 
Dejan Tiago-Stanković
 
 
 
 

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

E porque não falar de Seydou Keïta?

 
 


























O meu amigo Miguel  tem um talento especial para agarrar aquilo que há de bom no mundo – e na vida. Lembrou-me – e bem – que deveria aqui dar nota, brevíssima, sobre Seydou Keïta (1921-2001), fotógrafo do Mali que viveu toda a vida em Bamako. Em 1948, abriu um estúdio de fotografia, especializando-se em retratos. Portentosos retratos. O Miguel gosta particularmente deste e, por isso, aqui vai ele:
 



        Como texto de enquadramento, um artigo de Teju Cole no New York Times, que, além de Keïta, fala da incrível fotografia “Je veux être seule» (1979), de Malick Sidibé, de quem se falará um dia no Malomil, havendo tempo e vagar – e, espera-se, interesse dos leitores.

 
António Araújo

 
 

domingo, 26 de fevereiro de 2017

French Kiss.

 
 
 
 

 
         Já vão quase sete anos. Aqui no Malomil, denunciou-se um caso de plágio. A francesa Diane Ducret, escritora e colaboradora em vários órgãos de comunicação, como os canais France 3, Canal História e Europe 1, copiou, no seu livro Mulheres de Ditadores, de 2011, vários trechos da obra de Felícia Cabrita, Os Amores de Salazar.
         Não conheço e nunca vi na vida a jornalista Felícia Cabrita, mas li nos jornais da altura que se queixou às autoridades. Um dia, fui chamado à polícia, para dar testemunho do que escrevi aqui ou aqui (já agora, ver aqui, aqui, aqui). O relatório pericial concluiu ter havido plágio, como agora lei no jornal Sol  de 25/2/2017. O Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa condenou Diane Ducret a pagar uma indemnização a Felícia Cabrita e ordenou a apreensão dos livros da francesa que ainda se encontrem nos armazéns das Éditions Perrin, S.A., e da editora portuguesa da Srª Ducret.
         Não, não é Carnaval. É a vida, crua e real. Pour une fois, fez-se justiça.

 

Mar adentro.

 
 
 
 
 
 
Álvaro Garrido, que faz o favor de ser meu amigo, mandou-me, com a sua habitual gentileza, o último livro da vastíssima produção de que é autor sobre a pesca do bacalhau, Henrique Tenreiro, as artes de navegar. Portugal no Mar. Homens que Foram ao Bacalhau, da Âncora Editora e do Museu Marítimo de Ílhavo (que, diga-se, tem feito um trabalho notável na recuperação da memória da saga bacalhoeira). Coordenada por Álvaro Garrido, esta edição, revista e ampliada, é informativa mas, mais do que isso, é comovente. Folheamos páginas e páginas com rostos de homens, em fotografias «tipo passe». Ao lado, os seus nomes. Sei que o tema se presta a efabulações heroicizantes, por vezes descabidas. Mas que esta é uma aventura digna de ser contada, disso ninguém duvida.
Levas e levas de homens que foram aos mares do Norte. Nem todos regressaram.  
               
 

sábado, 25 de fevereiro de 2017

O passado de uma ilusão.

 
 
  










 
A Joana Albernaz Delgado, autora de um dos mais grandiosos blogues portugueses, o PUFE, sabedora à séria destas coisas, é amiga e cúmplice no gosto pelo brutalismo arquitectónico. É uma moda fugaz, bem sei, que não resistirá muito mais do que os monstros em betão que, como se diz, «tiveram a sua época». E que estão em vias de extinção, como os dinossauros de outrora. Evocando 35 edifícios emblemáticos da arquitectura britânica do pós-guerra, um livro de Owen Hopkins – Lost Futures: The Disappearing Architecture of Post-War Britain (notícia aqui, na tímida revista GQ…)
A complementar com a leitura de outro livro (este, de História), que nunca cansarei de recomendar: Austherity Britain, de David Kynaston.
Obrigado, Joana!

 

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Os diabos de Amarante.


 
 
 


 
         Muitos conhecem a história dos Diabos de Amarante, em versão demónio-macho e demónio-fêmea. Com abundantes pormenores, a história da ida dos demos para Inglaterra e o seu resgate pelos amarantinos é contada aqui, na narrativa oficial do município.
 
 

 
         Facto curioso – e não sei se muito conhecido – vem contado num livro de memórias e impressões várias. Coisas da Vida, de José Bensaúde, publicado em Lisboa, 1964. Conta Bensaúde que seus pais, através do seu grande amigo Dr. Agostinho de Campos, se relacionaram com um Alfredo de Magalhães e Pedro de Gusmão. Por sua vez, esta tertúlia relacionava-se com Gerald Sandeman, um londrino ilustre, ligado por laços de família aos viscondes de Moncorvo, que por sua vez eram íntimos de Alfredo de Magalhães, oficial de Marinha e fidalgo de Penafiel.
         Um dia, Magalhães, estando em Londres, foi recebido por Gerald Sandeman na sua casa de vinhos (sim, essa mesmo). E foi lá que, no hall, junto ao bengaleiro, topou o fidalgo penafidelense com o estranho casal demoníaco. Tendo sabido que fora o avô de Gerald que levara o Diabo e a Diaba para Inglaterra, idos directamente da capela do Convento de São Gonçalo, tudo fez Magalhães para desvendar o mistério. Com a ajuda do Dr. António L. Cerqueira, senhor da casa da Calçada de Amarante, e do grande Leite de Vasconcelos, conseguiu o Dr. Magalhães reconstituir a lenda medieval, que, por ser já muito antiga, nos abstemos de contar aos leitores do Malomil.
         Alfredo de Magalhães e José Leite de Vasconcelos decidiram escrever ao cavalheiro britânico, pedindo, implorando, exigindo (chegaram a invocar a Aliança!) a restituição dos diabos à amarantina procedência. O diabo está nos detalhes ou, melhor, meteu-se a demoníaca burocracia alfandegária e, apesar da boa vontade de Mr. Sandeman  (segundo outras versões, não terá sido assim tão boa, a vontade dele), mil e um entraves administrativos. Não se previra a importação de diabos! E, como diz Bensaúde, «era portanto necessário rever as pautas alfandegárias». Parece uma coisa dos infernos, e talvez seja apenas uma história que José Bensaúde ouviu dizer. Não sei. Só sei que se meteu ao barulho um filho ilustre de Amarante, António Lago Cerqueira, que, juntamente com Magalhães e Pedro de Gusmão, endereçou cuidado requerimento ao Director da Alfândega do Porto. Este, prudente e cauteloso, não querendo meter-se em negociatas de import-export de enxofre e materiais diabólicos, considerou que a competência para decidir pertencia… ao Presidente da República. E, assevera Bensaúde, foi Manuel de Arriaga quem teve de resolver o infernal embaraço, autorizando a entrada pelas fronteiras portuguesas de (mais) um Diabo e (mais) uma Diaba, que finalmente por cá desaguaram, encontrando-se hoje expostos, e bem de saúde, no Museu Amadeo de Souza-Cardoso. Sendo verdadeira ou falsa, aqui fica a história, directamente importada, sem taxas nem quaisquer tributos, do livro Coisas da Vida. E esta história aqui fica exarada & timbrada para o Rui Passos Rocha, jovem fidalgo de Penafiel a quem  mando um grande abraço, com a amizade do
 
António Araújo
 
 
 
 

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Memórias Perdidas - 10







         Nesta rubrica «Memórias Perdidas» tem-se falado, regra geral, de testemunhos de pessoas comuns, que não se destacaram publicamente pelo que tenham feito em vida. Não é bem o caso de Memorial de Dom Quixote, do embaixador Eduardo Brazão, publicado em 1976 pela Coimbra Editora, Limitada. A capa, pavorosa.
         O livro, aliás, é bastante conhecido, sobretudo entre os historiadores e, mais ainda, entre os historiadores que estudam as relações entre Portugal e a Santa Sé. O autor, por sua vez, é detentor de uma vastíssima bibliografia sobre história diplomática, pelo que não será grande novidade falar deste Memorial de Dom Quixote. Deixa-se a nota, em todo o caso, dado tratar-se de uma obra que bem justificaria ser reeditada, sendo hoje uma raridade de alfarrabista – o que é pena, atendendo ao sem-fim de livros idiotas que se publicam actualmente, a uma cadência impressionante, sobre Salazar e o Estado Novo. Não sei como nem por que meios, em 2014 o livro foi alvo de uma reedição que se vende na Amazon, aqui, mas julgo que não deu entrada nas nossas livrarias – pelo menos, não o vi.
         Filho do actor de teatro Eduaardo Brazão (cujas «memórias», aliás, compilou), Eduardo Brazão (1907-1987) foi diplomata e homem de letras. Por vezes, a sua inclinação para as letras – ou, melhor dizendo, para os estudos de história diplomática, amplamente documentados – sobrepôs-se à vocação de representante de Portugal noutros países. Bibliófilo voraz, logo nas primeiras páginas de Memorial de Dom Quixote Eduardo Brazão lamenta a perda da sua magnífica livraria, uma parte afectada pelas cheias, outra por larápios da Cidade Eterna.
         É Roma que se constitui como o centro da obra, narrando o autor-embaixador as sucessivas vezes que por lá passou. A dado passo, curiosamente, Brazão diz não apreciar muito a capital italiana, mas talvez essa sua afirmação não seja para levar a sério. Como aqueloutra em que manifesta algum distanciamento face ao fascínio que a aristocracia exerce, citando Almada Negreiros («Nem nobre, nem plebeu, sou eu») e Alfredo Pimenta («Antes ser que descender»). Ora, em todo o livro, página sim, página não, são desfiados nomes da altíssima aristocracia romana, os seus esplendorosos palácios, a sua convivência profana com os príncipes do Vaticano. E é visível (logo na imagem da contracapa, por ex.) o orgulho com que Brazão exibia as suas condecorações e troféus da exclusivíssima Ordem de Malta.
         Tendo feito o liceu no colégio dos jesuítas em La Guardia, na Galiza, uma opção típica em muitos jovens das classes abastadas do seu tempo, Eduardo Brazão cursa Direito em Lisboa, mas o fascínio da História e das Letras é mais forte do que a vocação jurídica. Cedo se associa aos círculos da boémia literata de Lisboa, bem como a personalidades marcantes da nossa vida cultural: Teixeira de Pascoaes, Afonso Lopes Vieira, Caetano Beirão, João Ameal, Mário Beirão, Hipólito Raposo, Alberto de Monsaraz, Manuel Múrias, Almada Negreiros, António Pedro e Francisco da Cunha Leão. Tudo gente «das direitas», ou por lá perto. Uma excepção curiosíssima: entre os amigos, Álvaro Cunhal, de quem Eduardo Brazão dizia conservar um lindo projecto de vitral, assinado pelo autor, representando Nossa Senhora com o Menino Jesus ao colo!
         Data de 1925 a primeira vez que foi a Itália, regressando a Roma e, 1941, como bolseiro do Instituto de Alta Cultura. Depois, voltaria mais vezes, sempre cada vez mais alto na hierarquia dos Negócios Estrangeiros. Uma certa ideia de «casta», a par da narrativa dos mexericos das Necessidades, são características patentes na visão do mundo de Eduardo Brazão. O livro, aliás, é uma excelente anatomia do corpo diplomático, ontem como hoje.
         Salazarista convicto, Brazão terá sido próximo do Presidente do Conselho. Em diversos momentos, relata, em discurso directo, conversas tidas com o ditador. Se são verdadeiras ou falsas, cabe aos historiadores indagar. Mas que são interessantíssimas, são. Diz, por exemplo, que Salazar considerou ser um erro histórico tremendo de Mussolini ter envolvido a Itália na guerra. Isto ter-se-á passado em 1940, cinco anos antes de Brazão ter assumido o posto de segundo secretário da nossa Embaixada em Roma, naquela que foi a sua terceira passagem pela Cidade Eterna. Impressionou-o muito a devastação de Itália, mas não se vivia mal. Pagos em dólares, os diplomatas portugueses obtinham avultadas quantias em liras no câmbio do mercado negro. Por ordem do embaixador, era o jovem Brazão quem tratava deste obscuro negócio, feito nas traseiras da sumptuosa loja Bulgari, na Via Condotti. A troca era feita com um dos patrões gregos da Bulgari, e permitia ao pessoal diplomático viver à grande num país em escombros. Brazão, animado pela paixão bibliófila, frequentava os leilões de livros, como um, memorável, onde arrematou uma peça ou outra da biblioteca do antigo chanceler do Império alemão, o príncipe Berhard Bülow.
         Não se pense, porém, que este livro é um repertório de mundanidades frívolas. Por exemplo, Brazão conta ao pormenor os rituais diplomáticos do Vaticano, a hora solene em que apresentou credenciais ao Papa Paulo VI. E, mais tarde, o tempo de brasa em que teve de gerir a crise suscitada pela audiência concedida por Paulo VI aos líderes dos três movimentos de libertação, já no consulado de Marcello Caetano. Que a Santa Sé de há muito considerava insustentável a política portuguesa em África é algo que se nota logo nas primeiras páginas do livro, onde também se refere o histórico atrito entre a Propaganda Fide e o Padroado português.   
         Para os que contestam o Acordo Ortográfico, muito interessantes as observações de Brazão a este propósito, dizendo que «é grave erro pensarmos em Portugal que continuamos a ser os mesmos de cá e de lá do Atlântico». O Brasil, segundo ele, manterá e desenvolverá a sua maneira de falar e de escrever – como todos os povos lusófonos, de resto –, indiferente a convenções firmadas em papel ou a tentativas infrutíferas de fixar, e impor, oficialmente uma ortografia comum. Isso foi patente aos olhos de Brazão nos múltiplos contactos que teve com os seus homólogos brasileiros, entre os quais o grande Maurício Nabuco, autor de um livro cujo título diz tudo: Drinkologia. Receitas de cocktails, ilustradas – note-se – por desenhos do pintor Giorgio De Chirico.
         De permeio, histórias deliciosas, de Roma e Lisboa. No Chiado, à porta da Bertrand, Alberto Oliveira comentava com um amigo a nomeação de alguém para um alto cargo internacional; tendo dito que se tratava de uma nulidade para o posto invejado, observou, indignado: «Não, isso não – para medíocres estamos cá nós!». Logo de seguida, uma sagaz reflexão de Brazão sobre a nossa diplomacia: «O perigo na carreira diplomática portuguesa é (…) o brilho excessivo, as evocações históricas dum passado morto, altamente prestigiado mas que só continuado nos poderia dar força e peso junto dos demais».
         Adiante. Pelo caminho, Brazão passa pelo local onde mataram e expuseram o cadáver de Mussolini e sua companheira, a Petacci. Sente-se horrorizado («ali estiveram ignobilmente expostos para que a multidão os contemplasse na miséria humana»). Atravessa a Suíça no caótico pós-guerra, país que o surpreende pela relojoeira organização: «os comboios chegam à hora marcada e os porteurs nas gares não nos insultam (…), não se vendo qualquer indício de pobreza nem de desespero. Maravilhosa Suíça, ajuizado país!». Só lamenta os preços: «o custo de vida é no entanto altíssimo». Passando por França, insurge-se contra os jornais que condenavam a comutação de pena de morte aplicada ao marechal Pétain («por aqui está tudo bolchevizado, amoralizado»). Depois, Espanha, onde Brazão enaltece Franco, defendendo-o dos seus inúmeros inimigos. «Por toda a parte atira-se a Franco como um cão raivoso», diz; e, no entanto, em Espanha via-se «tudo tão em ordem, cores tão garridas, mulheres tão vistosas… e bom pão, vinho forte, comida farta no pequeno restaurante da Alfândega!». «Tudo isto que foi conseguido com inteligência e prudência não será destruído dentro de pouco tempo?», interroga-se o diplomata luso.
         Chegado a Lisboa, avista-se com Salazar, a quem conta os horrores da Europa devastada. Respondeu o chefe do governo: «todos os que vêm do estrangeiro trazem as mesmas impressões sobre as terríveis consequências desta guerra que terminou. Era preciso que aqui se soubesse melhor». Em face disto, Brazão apresenta uma proposta ingénua: «Porque não manda V. Exª, pagos pelo Estado, grupos de recalcitrantes a ver o estado dos países que não souberam libertar-se da guerra?». Salazar riu-se ante a candura do seu diplomata.
Brazão encontrar-se-á pouco depois com D. Duarte Nuno, numa conversa em que este lhe diz apoiar «incondicionalmente Salazar» e não ambicionar o poder em Portugal. Salazar, em contrapartida. Lamentava o escasso apoio dos monárquicos ao Estado Novo…
         Num breve interregno da sua carreira diplomática, Brazão trabalhará no Secretariado Nacional de Informação (SNI), experiência que detestou, pelo ambiente de intriga aí vivido. O diplomata não era «dos deles», pertencia a outra casta, do mesmo modo que, assevera Brazão, António Ferro nunca foi amado nas Necessidades nem foi feliz como diplomata em Berna e em Roma. Na capital italiana, organizou um dia um desfile de trajes tradicionais portugueses, em que cada qual ia identificado pela sua região de origem: algarvio, transmontano, minhoto e por aí fora. Acontece que «minhota» era a expressão em italiano para mulheres da vida, facto que motivou uma senhora, algo desinformada, a exclamar: «Então em Portugal as prostitutas são obrigadas a vestir um uniforme?»
         O livro está repleto de histórias como esta, bem como de observações sobre personalidades com quem Brazão se encontrava, como Jacques Maritain (na altura, embaixador de França em Itália e feroz anticomunista), Giulio Andreotti, que Brazão classifica como «um dos políticos mais honestos e sãos da Democracia Cristã» (!), o general De Gaulle, o príncipe Rainier e Grace do Mónaco («ainda mais actriz de cinema que Princesa – há situações que não se aprendem ao espelho», diz, com um laivo de snobismo, o filho do actor de teatro Eduardo Brazão…). Bizarra, no mínimo, era a inclinação de Sukarno, da Indonésia, por meninas jovens. Conta Brazão que, ao chegar a Portugal, Sukarno terá pedido ao Protocolo «que lhe enviasse meninas, muitas meninas impúberes pois na sua vasta colecção não conhecia mulheres portuguesas!». Ao saber do facto, Salazar ficou incrédulo. Só faltava acrescentar que, segundo Brazão, quando passara em Itália o presidente Sukarno pretendeu, a todo o custo, conhecer intimamente Gina Lollobrigida…
         Em Roma, Brazão teve de lidar também com a pretensão de «uma megalómana» que se dizia filha bastarda de D. Carlos. A conhecida Maria Pia, imagine-se, ser-lhe-ia apresentada num cocktail na Embaixada do Líbano por… Agostino Casaroli. Os meandros do Vaticano são insondáveis. Noutra ocasião, Brazão apontava Roncalli como futuro Papa, sucessor de Pio XII, ao que um seu colega da embaixada portuguesa replicou, cortante: «ora, ora, esse conheci em Ankara, não vale dois caracóis!...». Seia eleito Papa, tomando o nome de João XXIII.
         Brazão não o conheceu bem, ao contrário de Montini, futuro Paulo VI, de quem era amigo há muitos anos – o que tornou ainda mais difícil a gestão da «crise» aberta pela audiência aos líderes africanos, que o autor do Memorial de Dom Quixote classifica, à maneira da época, como «terroristas».
         Porém, nem tudo foram espinhos na sua passagem por Roma, aqui retratada a traços muito largos. A dada altura, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Marcello Mathias, disse-lhe: «Meu caro Brazão, Roma é uma terra maravilhosa, cheia de lindas mulheres. Distraia-se… e não me mande mais problemas para eu resolver!...». Dom Quixote não se fez rogado, À tarde, ao chegar à Cancelaria, mandou reunir todo o pessoal e decretou que, dali em diante, só se trabalharia na parte da manhã. Tardes livres, dolce fare niente, em gozo de Roma e dos seus encantos.
 
 
António Araújo       
 
 
 

        

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Zeca Afonso, na Torre do Tombo.

 
 
 




Ericeira, 1945.

 
 
   
Praia dos Pescadores, Ericeira

 


 
(…) a maioria dos portugueses, aos quais nos ligavam laços tão estreitos, festejava com razão o fim da guerra. Contavam com a substituição de Salazar e do seu regime. Quem podia imaginar que os governos anglo-saxónicos tinham acordado entre eles um modus vivendi com os poderes de Portugal e Espanha, já prevendo conflitos futuros com o Leste?
         Para a maior parte dos residentes forçados da Ericeira tudo isto quase passava despercebido, na excitação da partida que se aproximava. Para onde ir? – Era a principal preocupação. Só para os raros “políticos” havia algo de mais importante. Durante pouco tempo, os naufragados em Portugal tiveram a liberdade de escolher o seu destino. A situação na Europa ainda não permitia, ou então só escassamente, que fossem utilizadas as quotas de imigração do outro lado do Atlântico. Por isso, as portas dos EUA, do Canadá, da Austrália e de outros países vistos como países de sonho, estavam abertas temporariamente aos refugiados acolhidos em Portugal, excepto a alguns de esquerda. Muitos aproveitaram a oportunidade. Como marxista convicto e empenhado sempre quisera regressar a Berlim e tudo fizera para ficar na Europa, mesmo que fosse neste ponto extremo. Quanto a isso, não tinha mudado de ideia, apesar de todos os actos inconcebíveis que os alemães tinham cometido contra outros seres humanos. Pelo contrário, eu continuava a ser de opinião de que uma Alemanha demasiado forte e promissora quanto ao poder económica, à grandeza demográfica e capacidade em vários sectores, em circunstância alguma deveria ficar à mercê de homens incorrigíveis.
         Não demorou muito que a permanência forçada fosse levantada; só para mim, rebelde, é que não. Comigo ficava Selma Oppenheimer, de livre vontade. Se bem me recordo, seríamos os últimos refugiados a deixar a Ericeira. O resto de 1945 e até ao final do Verão de 1946 tentara, esforçadamente, junto dos Consulados da Grã-Bretanha e dos EUA, obter a autorização de regresso a Berlim. Como potências ocupantes estar eram as autoridades competentes na matéria. Tudo em vão, durante meses, e também para uma dúzia de outros que tinham a Alemanha em mira, entre eles Owczarzak ou o janota romeno Josipovici. Regressar à Alemanha era logo entendido por alguns como traição; até da parte de “quakers” tive de suportar insultos. Depois, a situação mundial anuviou-se e aos de esquerda, ou tidos como tal, eram abertamente levantados obstáculos. Alguns, também antigos combatentes de Espanha, conseguiram sair por outros meios, pois quem fosse politicamente de esquerda e quisesse regressar pelas vias oficiais tinha ainda de esperar um ano e meio. Perguntávamo-nos porquê esta demora?
         Só no fim do Verão de 1946 é que chegou a autorização dos aliados ocidentais para regressarmos. Em Agosto, recebi um telegrama do solícito vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa, informando-me de que eu poderia embarcar para a Alemanha, juntamente com outros exilados, no navio americano “Marine Marlin”, até então ao serviço do transporte de tropas. Mais não era conhecido, apenas sabíamos por um impresso quanta bagagem podíamos levar e qual o cais em que nos devíamos encontrar para o embarque. Mandeu vir de Lisboa em grande baú de marinheiro, de rija madeira, reforçada a aço. Últimas compras no senhor Caré, o dono da principal mercearia da Ericeira, de que eu era velho freguês. Prevendo a escassez de víveres que, por certo, havia na Alemanha vencida, comprei, experiente como era, toucinho salgado, azeite, margarina em latas, óleo de fígado de bacalhau, enchidos fumados, açúcar, leite em pó, chocolate, café, chá, cigarros, alguns medicamentos e outros artigos.
         Neste navio-transporte americano eram deportados para a Alemanha diplomatas nazis e o seu pessoal de segurança das SS. No meio deles, nós, judeus! Já não pudemos sair do barco. Assim navegámos até Bremerhaven. Dali seguimos, juntamente com os nazis – alguns deles gravemente incriminados –, num comboio de mercadorias adaptado ao transporte de prisioneiros e cercado por arame farpado. O nosso destino: o campo de internamento americano de Hohenasperg, próximo de Stuttgart. Só decorridos alguns dias, em que ameaçámos com a greve de fome. É que nós, antifascistas, fomos postos em liberdade…
 
Fritz Teppich