quinta-feira, 29 de junho de 2023

São Cristóvão pela Europa (222).

 



 

Nestas andanças em busca de imagens de São Cristóvão, por vezes nos confins da Europa, às vezes não prestamos a devida atenção a imagens que estão muito mais próximas.

Este post é dedicado à cidade do Porto. O próximo será sobre outra importante cidade portuguesa.

A Igreja de São Francisco do Porto é um dos monumentos mais importantes da cidade. Foi construída a partir de 1233 após doação de um terreno pelo Rei D. Sancho II aos frades mendicantes seguidores de São Francisco de Assis na altura da rápida expansão da ordem.

O estilo adoptado foi o gótico. No Século XVIII, a igreja foi transfigurada ao gosto barroco. Trata-se de um dos exemplares mais espectaculares de utilização de talha dourada em Portugal. E quando se diz dourada não se trata de uma figura de estilo. Foi mesmo feita com ouro.

Um convento foi erigido. Veio a ser uma vítima do cerco do Porto em Agosto de 1833. Ruiu na sequência de um incêndio.

À esquerda a Igreja de São Francisco neoclássica:

 



Num dos notáveis altares em honra de Nossa Senhora, uma imagem de São Cristóvão:

 



 

Outra igreja famosa do Porto á dos Carmelitas Descalços, outrora servindo o respectivo convento.

De estilo maneirista e barroco, está encostada a outra importante igreja da cidade, a dos Terceiros do Carmo.

A igreja foi concluída em 1622 durante o período filipino. Em 1809 foi quartel-general de Soult na segunda invasão francesa.

 



 

A sacristia está repleta de imagens em pequenos nichos.

Uma delas representa o nosso Santo:

 



 

                                                                Fotografias de 16 e 17 de Maio de 2023

 

                                                                                                            José Liberato






quarta-feira, 28 de junho de 2023

Ex-comandante Marat, do exército secreto de Putin, o Grupo Wagner.

 




 

Puro acaso do destino, a publicação em Portugal das memórias do ex-comandante Marat ganhou notoriedade com os recentes acontecimentos da rebelião de um chefe de grupo que pareceu que iria avançar sobre Moscovo, os acontecimentos ainda estão muito confusos mas o ex-comandante Marat, bravo combatente de um exército privado ao serviço da lógica política e económica de Putin e dos seus oligarcas, desvenda um segredo bem escondido dessa força mercenária de elite que finalmente Putin confirma a existência, o Grupo Wagner é pago a peso de ouro tanto por Moscovo como pelos ditadores que interessa a Putin apoiar.

          Eu, Marat, Ex-comandante do Grupo Wagner, prefácio de José Milhazes, Casa das Letras, 2023, traz revelações sensacionais, conta as manipulações e agitação perpetrada em território ucraniano, descreve as lutas do Grupo Wagner em território sírio, acima de tudo.

José Milhazes recorda que se trata da primeira obra escrita por um mercenário russo, combatente de uma empresa militar privada que até à recente declaração pública de Putin não existia oficialmente. A Wagner tem sido utilizada em manobras muito sujas, onde os russos não querem mostrar onde metem as mãos, para implementar a sua política externa expansionista servem-se dos mercenários: no Leste da Ucrânia, na Síria, Líbia, Sudão, República Centro-Africana, Mali e Moçambique. Marat Gabidullin não edulcora o seu currículo: prestou serviço militar nas tropas paraquedistas, enredou-se com gente mafiosa, este preso por assassinato, viveu a praga do alcoolismo; sem emprego, aceitou fazer parte de um grupo armado, foi combater para a Síria, no comando já estava Evgueni Prigojin, a figura de quem se fala nos média e redes sociais de todo o mundo, político com cadastro criminoso longo, também com uma pesada pena de prisão, multimilionário, já confessou ter contribuído para intoxicar a campanha presidencial norte-americana de 2016 (ele detém uma rede de empresas no campo da comunicação social); envolveu-se com os seus mercenários nas regiões ucranianas de Donetsk e Luhansk, desde 2017 tem a cabeça a prémio nos EUA.

          Também o editor francês dá as suas explicações para esta importante publicação: “O que ele oferece é um relato único e extremamente atual das forças militares do seu país. As ações dos Wagner foram sempre ao serviço exclusivo do Kremlin, quer no Donbass, na Crimeia, na República Centro-Africana, no Mali e na Síria. Ele não tem palavras suficientemente duras para descrever a indignidade do comportamento das tropas russas e dos Falcões do Deserto às ordens de Bashar al-Assad, denunciando-lhes a corrupção, a busca perpétua por honras, o desejo constante de se pouparem ao trabalho sujo. Ele revela um sentimento perante a total falta de consideração por parte das autoridades russas no tocante a estes mercenários.”

          À cabeça do Grupo Wagner encontram-se dois homens, o fundador, Dimitri Outkine (Wagner), antigo membro do serviço militar russo de informações, criou um grupo de intervenção rápida para levar a cabo operações precisas na região separatista de Donbass, em guerra com as autoridades pró-europeias de Kiev. Este grupo de mercenários assumiu para si o nome do seu líder, Wagner, uma homenagem ao compositor alemão (Dimitri Outkine é um grande admirador do III Reich e Adolf Hitler). Se se pode falar de ideário do grupo, a matriz é o nacionalismo, são antissemitas e xenófobos, defendem a pureza étnica e a segregação racial, grande parte destes elementos têm visões de extrema-direita. A outra figura chave é Evgueni Prigojin, já se disse que ele tirou partido do caos pós-soviético, é um dos homens mais poderosos da Rússia, comprovadamente envolveu-se em operações de destabilização tanto no ciberespaço como no Médio Oriente e África.

O Grupo Wagner é um meio para que Putin e os oligarcas ganhem dinheiro e estendam tentáculos imperiais. Na Síria, onde Marat lutou, a missão era reconquistar o controlo dos campos de petróleo e gás que haviam caído nas mãos de exército sírio livre ou do Estado Islâmico; em troca, a Wagner recebia uma comissão de 25% sobre as receitas do ouro negro ou do gás, tudo ao abrigo de um acordo assinado em finais de 2016 em Moscovo; a República Centro-Africana, é o setor mineiro (ouro e diamantes) que cai sobre o seu controlo, a Wagner tem mão de ferro sobre as autoridades aduaneiras, e também no Mali a Wagner é paga através das receitas do setor mineiro. Até aos recentes acontecimentos de rebelião de Evgueni Prigojin era difícil imaginar o Kremlin e o Ministério da Defesa assumirem a existência do Grupo Wagner, tal aconteceu e não vale a pena estar a fazer profecias sobre o futuro do Grupo Wagner.

Marat descreve o seu alistamento, fala das verbas recebidas, descreve a missão em 2015 a Luhansk e não teve ilusões de que a Rússia se estava a intrometer na vida de um país estrangeiro: “A República Popular de Luhansk era uma pequena sociedade de pessoas tomadas como reféns por um bando de bárbaros analfabetos, a quem fora dado acesso a armas.” Sentiu-se tomado por problemas de consciência, felizmente para ele foi transferido para Moscovo, doravante todo o seu relator é sobre a luta sem quartel na Síria, apercebe-se do cinismo das diplomacias, caso da Turquia, que estava determinada a tirar partido da guerra na Síria, fornecia armas e munições, conselheiros militares profissionais aos insurgentes do Exército Sírio Livre, estamos a falar da mesma Turquia que agora aparece como mediadora entre a Rússia e a Ucrânia. Cedo Marat se apercebeu que os sírios não apreciavam dar o corpo ao manifesto, quem ia à frente era gente do Grupo Wagner, são descrições avassaladoras onde não falta o horror e a crueldade, os tais Falcões revelaram-se ineptos e cobardes, Marat di-lo abertamente.

É um detalhado reportório de derrotas e vitórias, muitos camaradas mortos e feridos, Palmyra foi conquistada, perdida e reconquistada, Marat é muçulmano, e o valor religioso tocou-lhe muito, dirige-se para uma mesquita depois dos combates e tece o seguinte comentário: “O interior estava devastado: uma espessa camada de gesso mesclada com fragmentos de pedra e pedaços de vidro cobriam o chão, as paredes haviam sido desfiguradas pelos estilhaços e as janelas, pretas da fuligem, estavam abertas como as feridas. Porém, toda aquela destruição não afetou a majestosa beleza do edifício religioso. Uma vez lá dentro, a angústia apoderou-se de mim. Sim, apesar de tudo, sentia-me muçulmano. A guerra mutilou aquela mesquita e isso deixou-me doente. De repente, naquele lugar sagrado, percebi claramente, de forma inesperada e pungente, toda a miséria e vulgaridade do que acontecia na Síria, onde as partes em confronto lutavam selvaticamente umas contra as outras para obterem uma fatia de bolo.”

Este relato é uma gesta sobre a força de combate que Marat era comandante. Recebeu a Ordem da Coragem, dada em segredo, o povo russo não podia saber da existência do Grupo Wagner, a descrição que ele faz sobre a reconquista de Palmyra é admirável, mais uma vez refere que aquele exército sírio não tinha vontade de lutar, era liderado por diletantes altivos e gananciosos, quem teve que dar o corpo ao manifesto foi a Wagner.

Ao despedir-se não esconde o seu ressentimento como a Rússia utiliza os mercenários. “Dizem-nos que os soldados da fortuna são um fenómeno ocidental, e que o mercenarismo é um produto da hidra capitalista. Os nossos políticos mantêm um silencia envergonhado sobre a existência de empresas militares privadas. Os propagandistas estão a doutrina intensivamente os russos com a ideia de uma política externa exclusiva à Rússia, e evitando qualquer resposta direta sobre o uso de mercenários.”

De leitura obrigatória para quem procure entender o que se passa na Ucrânia e a política expansionista russa.


                                                                                 Mário Beja Santos 


 


quinta-feira, 22 de junho de 2023

Abusos sexuais na Igreja em Portugal: o palco e os bastidores.

 




 

 

Clérigos e barregãs é uma história muito antiga, de um modo geral objeto de imensa tolerância, os senhores padres em Cabo Verde chegavam a ter dúzias de filhos e nas nossas paróquias da chamada interioridade eram muito comuns os vigários que vivam paredes meias com uma alegada irmã, e proliferavam os afilhados ou crianças ditas protegidas por não se saber do pai e da mãe, assim constava, a solicitude do senhor padre é que era importante. E já não vem à baila os Papas e os cardeais da Cúria que tinham bastardos, muitos deles bem tratados.

Dos anos 1970 para os anos 1980, esta estabilidade afetiva camuflada explodiu noutra dimensão, a pedofilia e, em menor grau, o padre pai de filhos. O dossiê ganhou volume e intensidade mediática, assentou-se a câmara na Igreja Católica, presume-se por razões do celibato dos padres e o encobrimento das vítimas, uma conspiração de silêncio que, como é hoje bem visível, gerou e continua a gerar uma enorme convulsão na Igreja Católica.

Em Nome do Pai, abusos sexuais na Igreja em Portugal, por Sónia Simões, Oficina do Livro, 2023, é uma reportagem em derredor de acontecimentos contemporâneos, mas onde o passado não foi esquecido. A escandaleira soou nos EUA, ao tempo de João Paulo II, e o Papa Francisco recebeu um farto processo onde Bento XVI igualmente tinha agido. A intensidade das denúncias levou a que o Papa Francisco convocasse, em fevereiro de 2019, uma reunião que não tinha precedentes, compareceram os presidentes das conferências episcopais do mundo com um ponto único na ordem de trabalhos: agir resolutamente para que nenhum dos crimes sexuais fosse doravante encoberto. Sónia Simões deixa bem claro que o alto clero português tem agido ao retardador, é uma história um tanto escandalosa, processos sinuosos de encobrimentos, até declarações públicas contrárias ao decidido em Roma.

Está ainda por esclarecer o que levou este alto clero a fingir quje escapava às obrigações da transparência, isto quando já 34 bispos chilenos tinham renunciado, houvera a investigação na Pensilvânia, soubera-se que um cardeal norte-americano era acusado, Irlanda, França, entre outros, as igrejas nacionais agiram celeremente, enquanto aqui se empatava. A autora, jornalista experimentada neste dossiê, desenvolve a sua narrativa a partir da história de Mariana, então uma jovem que cedera às promessas de um padre vinte anos mais velho e de quem teve um filho, fica bem claro quem e como andou neste jogo do empata. E que havia instruções para agir, havia, desde 2009 exisita um documento interno da Santa Sé com indicações expressas do que fazer, no caso de um padre que tenha um filho.

A grande surpresa veio com o relatório da Comissão Independente, os números eram demasiado violentos e indiciavam o encobrimento do alto clero, fazia-se o chamamento às vítimas abusadas, os traumas, os sentimentos de culpa, vergonha, nojo, revolta, perda de fé, até suicídio. É um desbobinar de histórias, avulta a pedofilia, houve pais que se dirigiram aos bispos, a solução adotada era transferir o padre.

Vamos então aos números. “A Comissão Independente cruzou 217 estudos sobre a generalidade dos abusos sexuais de crianças, elaborados entre 1980 e 2008, para perceber a incidência por género, deste tipo de crime na sociedade. E a conclusão é avassaladora. As estimativas feitas a partir de 331 amostras num total de quase 10 milhões de participantes revelam que 18 em cada 100 raparigas foi abusada sexualmente, assim como 8 em cada 100 rapazes foram igualmente vítimas. O abusador é, na maior parte das vezes, alguém que é próximo da vítima e em quem esta confia. Cenário propício a que, em grande parte dos casos, os crimes não acontecem apenas uma vez, mas perdurem no tempo, aproveitando o agressor para ir quebrando barreiras e escalar no tipo de abusos.”

A maior parte destes crimes não chegam às autoridades e, como é evidente, os crimes sexuais contra menores ocorridos no meio eclesiástico é uma fração deste tipo de crime em toda a sociedade. Só que os tempos mudaram, o encobrimento é cada vez menos possível, as vítimas sentem-se impelidas a denunciar os abusos sofridos e os números falam por si. “Em 2021, ano em que foram denunciados 828 crimes de abusos contra menores, a Polícia Judiciária – com competência exclusiva na investigação deste tipo de criminalidade –, deteve 270 suspeitos. Nesse ano, foram concluídos 351 julgamentos de abusadores sexuais e, em 397 arguidos, 293 foram condenados.” Como observa a autora, nos crimes em contexto religioso a incidência recai sobre o sexo masculino, a maioria das vítimas são rapazes. E aqui a autora disserta sobre as prerrogativas de poder que o padre abusador pensa que detém, no meio social e junto da vítima, como igualmente aborda o chamado problema da cura do abusador. A comissão francesa centrou uma boa parte da sua pesquisa no estudo do abusador. “Mais de metade dos padres entrevistados declararam ser homossexuais e alguns assumiram manter relações ativas com adultos da mesma idade. Uma das explicações mais comum para os abusos foi a necessidade de afeto ou intimidade com outras pessoas. Apontam-se culpar à própria Igreja ou mesmo à época que se vivia – uma característica dos abusadores em geral que raramente se sentem responsáveis pelos seus atos.”

Sónia Simões analisa detalhadamente o caso do padre José Anastácio Alves, de que houve conhecimento público quando se tentou entregar na Procuradoria-Geral da República, um longo historial abafado ou menorizado. E dá-nos conta da assembleia plenária da Conferência Episcopal Portuguesa, realizada em Fátima em 2019, era tempo efervescente e mandaria a lógica que o abuso de menores na Igreja fosse no mínimo objeto de debate. A reunião de Roma exigia um tratamento de choque. Tudo começou com a criação da Comissão de Proteção de Menores do Patriarcado de Lisboa, o alto clero procurou resistir aos propósitos da Comissão, só que o Papa Francisco voltou à carga, exigiu a nível universal, “procedimentos tendentes a prevenir e contrastar estes crimes que atraiçoam a confiança dos fiéis.” Após hesitações, formou-se a Comissão Independente. Descrevem-se ainda os casos que chegaram ao Ministério Público, a autora passa em revista como noutros países se estudam estes abusos, é um levantamento que nos faz pensar, era impossível a partir dos resultados da Comissão Independente não agir. Está em funcionamento o Grupo VITA – grupo de acompanhamento das situações de abuso sexual de crianças. Em abril deste ano a Igreja emite comunicado: “Entrámos agora numa nova fase. Estamos empenhados em prosseguir um caminho de reparação e prevenção para que seja possível garantir o devido apoio às vítimas e implementar uma cultura de cuidado e proteção dos menores e adultos vulneráveis.” E a autora termina o seu trabalho dizendo: “Passaram quatro anos desde o encontro em Roma e ainda estamos aqui.” Obra de inegável interesse para procurar estudar o que são os bastidores da Igreja Católica em Portugal.


                                                                                                Mário Beja Santos




Um dos capítulos mais negros da História de Portugal.

 





                                    Um dos capítulos mais negros da História de Portugal:

                                        A rede bombista que nos aterrorizou em 1975 e 1976

 


 

As Bombas Que Aterrorizaram Portugal, por Fernando Cavaleiro Ângelo, Casa das Letras, 2023, é uma obra de investigação de leitura indeclinável para quem pretenda mergulhar nos bastidores da rede bombista a que estiveram associados o ELP, o MDLP, partidos da direita radical, membros da Igreja Católica, antigos servidores da PIDE/DGS, antigos combatentes da guerra de África, militares como António de Spínola, Alpoim Calvão, entre muitos outros. Uma escrita fluente, muito segura, um profundo conhecimento do funcionamento dos serviços secretos, revelando documentação até hoje inédita, uma organização da investigação que permite abarcar a história das políticas de terror, implementada por grupos nacionalistas ou por serviços secretos, o autor tem uma inegável mestria no tratamento da sequência histórica desde o despontar da atividade terrorista que terá tido o seu marco em 11 de março de 1975, até ao seu declínio em finais de 1976. Temos aqui as figuras de proa, a enunciação dos grandes acontecimentos marcados pelo 25 de Abril, os golpes e contragolpes, a emergência do MFA revolucionário, a desagregação do tecido económico e social; intervêm fatores externos, com relevo para o conflito em Angola e o aceso da Guerra Fria, entram em cena a 5ª divisão do MFA e o seu funcionamento, Portugal torna-se campo laboratorial para serviços secretos estrangeiros; temos aqui o histórico do aparecimento e funcionalmente do ELP e do MDLP, organizações distintas, o que as irmana é o anti-comunismo profundo, o primeiro centra-se no regresso ao passado, o segundo é manifestamente orientado por um sonho federativo imperial com umas pinceladas de direita conservadora; iremos até à sede do MDLP, e depois à sua atividade de terror, temos aqui os nomes e a identificação dos crimes, depois o colapso da organização, o ELP durará ainda mais algum tempo.

Fernando Cavaleiro Ângelo é igualmente admirável no texto das conclusões e permito-me remeter o leitor para algumas considerações chave que ele tece, algumas delas duras como punhos:

“Passados que foram quase cinquenta anos desde a Revolução de Abril, e dos tempestuosos meses que se seguiram, ainda hoje impera o silêncio sobre os acontecimentos e os verdadeiros culpados dos atos de violência e terror que causaram mortes, feridos e avultados danos materiais em Portugal. Muitos responsáveis foram levados a tribunal, mas só poucos foram condenados a penas de prisão efetiva por terem cometido crimes de sangue, entre outras atrocidades. O envolvimento de militares, polícias e políticos nas redes de terrorismo da extrema-direita acabou por interferir, ou sonegar, as provas e matéria de facto que pudessem alicerçar uma acusão sólida contra os mandantes e executantes de tais crimes violentos.

No final, pode-se concluir que toda esta onda de caos e violência que durou desde o 11 de março de 1975 até quase finais de 1976 serviu três propósitos basilares: impedir a expansão e a tomada do poder pelos comunistas; manter uma política que retomasse o controlo sobre as antigas colónias africanas; e distrair as autoridades, para que o crescimentos dos negócios ilícitos prosperasse, em matéria de tráfico de armas, divisas, contrabando, entre outros.

As duas organizações que tiveram uma atividade mais ativa foram o MDLP e o ELP. Nas suas fileiras juntavam elementos da PIDE/DGS, legião portuguesa, antigos militares, guerrilheiros em desacordo com o plano de descolonização em Angola, mercenários de organizações de extrema-direita e individuos ligados à atividade criminosa. A Igreja Católica, os serviços secretos dos EUA, França, Alemanha e Espanha, e alguns banqueiros, industriais e empresários, também integraram, de forma bastante discreta, esta atividade.

Antes do 25 de novembro de 1975, o MDLP juntou o povo do Norte, com o apoio e cumplicidade da Igreja Católica. O elemento chave para a colaboração entre a Igreja e o movimentos era o cónego Melo, segundo testemunhou o comandante Alpoim Calvão. Referiu também que entre o Projeto Maria da Fonte e o MDLP a intermediação era assumida pelo engenheiro Jorge Jardim. Com todas estas parcerias, o movimento atingia um contigente entre as dez mil e as vinte mil pessoas.

As bombas explodiam em claras manobras de vingança por ódios e desavenças passadas e presentes, que começavam a despontar sob o falso argumento de conceitos ideológicos de índole política. O objetivo e a visão do MDLP perderam fundamento depois da reviravolta sócio-política imposta pelos acontecimentos do 25 de novembro de 1975. As manobras de financiamento deste movimento interagiam com diversas atividades ilícitas, o que impulsionou uma das pessoas mais influentes do MDLP a ameaçar divulgar toda a trama. Este pode ter sido o motivo do aparente assassinato de Joaquim Ferreira Torres. As suas revelações iriam, certamente, provocar uma hecatombe na ainda frágil caminhada que Portugal percorria desde a formação do primeiro governo constitucional. A viúva de Ferreira Torres acusou os membros do MDLP, nomeadamente o comandante Alpoim Calvão, o inspetor Júlio Regadas, Teixeira Gomes e Marques da Costa, de terem sido os responsáveis morais e materiais pelo assassinato do marido. O despacho de arquivamento deste processo, em 1995, reforçava a tese de negócios escuros do MDLP e das conspirações da rede bombista com membros do Conselho da Revolução, pelo menos até 25 de novembro de 1975.

De acordo com diversos relatos, o MDLP nunca recebeu qualquer apoio direto da CIA, os norte-americanos rapidamente se aperceberam de que a solução para a situação interna portuguesa passava por uma aliança com alguns oficiais moderados do Conselho da Revolução e do MFA, e com o partido mais votado nas eleições de 25 de abril de 1975. O esforço de Washington, em colaboração secreta com alguns países europeus e líderes partidários internacionais, foi convencer Spínola a baixar as armas para que as eleições de 25 de abril de 1976 decorressem com tranquilidade e de forma ordeira.

Nos finais de 1976, quer MDLP, quer o ELP, quer ainda o Projeto Maria da Fonte, podendo-se também incluir a rede bombista do Norte, tinham todos findado a atividade terrorista.”

E Portugal revelou-se um país de grandes costumes, sob a consigna da reconciliação, todos os militares implicados no golpe de 11 de março de 1975 foram reintegrados, indemnizados, beneficiaram de legislação especial e alguns foram promovidos a oficiais generais por escolha do Conselho da Revolução. Quem não pôde reclamar, ou reaver a sua situação anterior, eram aqueles que padeceram de forma intencional, ou colateralmente, perante os atos violentos dos guerreiros da apelidada luta armada, como observa o autor, que também questiona se vamos continuar a iludir-nos com a esponja que se julga limpar tudo depois de passados 50 anos.

Um dos grandes ensaios de investigação publicados em 2023, de leitura obrigatória.

 

Mário Beja Santos





quinta-feira, 15 de junho de 2023

O elementar da literacia das boas práticas alimentares.

 





 


 

É do senso comum de que falar da alimentação exige estender a sua abrangência a múltiplas áreas de intervenção: logo a obtenção de informação idónea sobre a composição da Roda dos Alimentos, a composição das refeições, a importância da variedade alimentar para termos uma alimentação equilibrada, o que são produtos alimentares indesejáveis; há os chamados direitos do consumidor na alimentação que passam pela rotulagem, na justa medida em que há alergias e precisamos de conhecer a composição do alimento para fugir a alérgenos; vasto campo é o da associação entre a alimentação e os impactos ambientais, que envolvem adubos e pesticidas, a energia, os resíduos, os OGM (organismos geneticamente modificados); após a crise das vacas loucas pôs-se ênfase na segurança alimentar, reformularam-se formas de controlo e vigilância desde as fronteiras às cozinhas; cada um dos países tem que estar atento às fileiras de produção, ganharam importância não só os problemas da qualidade, e daí haver um sistema europeu de reconhecimento de produtos agroalimentares de qualidade, caso da denominação da origem protegida (DOP), e novas atitudes face a regimes, como o vegetariano, o vegetaliano, o vegan e o macrobiótico, ganhou realce a agricultura biológica, a agricultura integrada, o comércio justo, por exemplo; os interesses de uma alimentação passam por conhecer o funcionamento da distribuição alimentar e dela tomar as escolhas apropriadas não só para o regime alimentar próprio como ter em conta os impactos ambientais, a responsabilidade social e ambiental destas empresas, etc., etc.

Aas boas práticas alimentares carecem de literacia, acaba de sair um ensaio da Fundação Francisco Manuel dos Santos intitulado Literacia Alimentar: Decisão Informada, por Joana Sousa, coleção Pela Sua Saúde – Ciências Alimentares, maio de 2023. Para adotar gestos para um consumo mais responsável, para benefício da saúde e mais respeitador do ambiente, o consumidor deve deter informação rigorosa e isenta sobre a água que bebe, como tirar partido da cadeia de frio ou dos produtos da estação, interessar-se por reciclagem e compostagem.

Neste ensaio de Joana Sousa prestam-se informações que valorizam a literacia alimentar. É o caso da recordatória dos princípios para uma dieta saudável e sustentável definidos pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) e pela OMS (Organização Mundial de Saúde): privilegiar o aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses; privilegiar alimentos não processados ou minimamente processados, equilíbrio entre os grupos alimentares e restrição de alimentos e bebidas altamente processadas; privilegiar-se cereais integrais, leguminosas, frutos oleaginosos e uma grande variedade de frutas e hortícolas; consumir moderadamente ovos, laticínios, aves e peixe, bem como pequenas quantidades de carne vermelha; definir água potável como bebida de eleição, preservar a biodiversidade, minimizar o uso de antibióticos e hormonas na produção alimentar, reduzir o desperdício. Igualmente se dão sugestões para adotar um padrão alimentar saudável e sustentável, recorda-se que a dieta mediterrânea é um excelente modelo de sustentabilidade alimentar. Enfim, neste ensaio encontram-se elementos muito válidos sobre literacia alimentar, exaltam-se as competências culinárias e lembra-se que a desinformação em alimentação é um inimigo da literacia alimentar. E não esquecer: em Portugal, os hábitos alimentares estão em 5º lugar entre os fatores de risco de perda de anos de vida saudável.

 

                                                                                                    Mário Beja Santos




São Cristóvão pela Europa (221).

 

 

O passeio de Abril terminou na Holanda

Em Tilburg, junto à Igreja do Bom Pastor, uma escultura representando o Santo, com a inscrição Sint Christoffel bescherm ons, ou seja, São Cristóvão protege-nos.

 

 

O Markiezenhof em Berg op Zoom é o maior e o mais antigo palácio civil da Holanda. A construção iniciou-se no Século XV e foi habitado pelo Marqueses de Bergen op Zoom até 1795.

 

 


Na fachada, num nicho, uma imagem do nosso Santo.

 

 

Na grande sala do palácio, ergue-se uma notável lareira datada de 1522, decorada pela figura de São Cristóvão e pelas armas dos marqueses.


 




                                                           Fotografias de 24 e 25 de Abril de 2023

 

                                                                                                    José Liberato


segunda-feira, 12 de junho de 2023

Mês de Junho, rei dos meses.

 



 

Mês de Junho, rei dos meses,

Mês dos santos populares,

Mês-paixão dos portugueses,

Motivo dos seus cantares

E também dos seus manjares.

 

És o mês dos manjericos

E do “alecrim dourado”

E dos belos cravos ricos.

Com sardinha és celebrado

E com vinho requintado.

 

Com as marchas populares,

Fazes das donas donzelas

E enches de magia os ares;

Ruas enfeitas de velas

E o Tejo de caravelas.

 

Desfilam ranchos briosos,

Rufam alegres tambores,

Bailam os pares airosos

Com seus trajes multicores,

No meio de mil andores.

 

Entre aquela gente boa,

Santo António está festeiro.

Dos nubentes de Lisboa

Não é só casamenteiro,

Mas também seu padroeiro.

 

 

Manchester, CT, 13 de Junho de 2021

António Cirurgião

 

 


quinta-feira, 8 de junho de 2023

O sistema de saúde português e uma radiografia do setor privado.

 




Concertadamente, e com uma estranha sintonização, um conjunto de reputados especialistas em economia e gestão em saúde, nos últimos anos, vêm recordar a degradação do SNS, apelando à urgência da sua restruturação, de um modo geral faz-se o levantamento, mas, por pudor ideológico, não se diz exatamente o que é urgente restruturar e a que presumível preço. O autor do ensaio Saúde e Hospitais Privados em Portugal, Miguel Gouveia, conceituado universitário e investigador, alerta-nos para as dificuldades presentes do SNS e põe em destaque o setor privado na saúde, matéria fulcral do seu trabalho. Para captar a atenção do leitor, diz mesmo na contracapa: “Sabia que, em Portugal, o setor público paga dois terços da despesa em saúde, mas o setor privado é o prestador de mais de metade dos cuidados? Sabia que Portugal foi o segundo país da União Europeia com a maior taxa de necessidades de saúde não satisfeitas acumuladas durante a covid-19? E que a tendência de longo prazo aponta para a redução do peso do Estado como financiador e como prestador de cuidados de saúde?” Aliciantes interrogações, e cuidamos ir encontrar resposta ou sugestões concretas do autor.

Interrogo-me se este ensaio cabe no espírito desta coleção, está completamente polvilhado de números, gráficos, figuras, etc., é claramente uma obra destinada a um outro tipo de público, não a meros leigos ou curiosos. Isto sem o mínimo prejuízo de considerar que é um ensaio de leitura obrigatória para quem o pode entender na plenitude. Sem dúvida que qualquer explicação sobre o sistema de saúde português carece de números, mas não nos termos avassaladores como aqui aparecem. O SNS está confrontado por quadros ideológicos claramente demarcados, fala-se por alto em empreender reformas estruturais, o que acontece é que tirando um ou outro especialista nesta área, por exemplo António Correia de Campos ou Constantino Sakellarides, não vejo ninguém a pôr as mãos na massa e propor o rumo de tais reformas, é a tal asserção ideológica que os autores não querem mostrar.

Miguel Gouveia apresenta acertadamente o sistema de saúde: sistema misto, com os setores público e não-público, chama a atenção para os subsistemas do setor público e a diversificação do setor não público. Expõe as duas dimensões económicas fundamentais no sistema de saúde, e aqui começa a tempestade dos números. Aqui e acolá reconheço a exigência de os elencar: “A partir dos dados relativos a 2019, o último ano ‘normal’, podemos constatar que as despesas em hospitais, públicos e privados, constituíram 41,9% das despesas correntes em saúde, sendo que, destas, 72,7% ocorreram em hospitais públicos, e os restantes 27,3% em hospitais privados.” E depois é um tropel de números e percentagens, concluindo que o financiamento da saúde em Portugal é maioritariamente público, com tendência a decrescer; ficamos igualmente a saber que há mais de 28 mil empresas do setor privado que empregam cerca de 125 mil pessoas, quase tanto como o SNS, alertando o autor para a necessidade de se obter estatísticas precisas, sobretudo quando se fala da economia social.

O autor procura encontrar explicações para a volumosa procura de cuidados fora do SNS, releva as listas de espera e a sua grande dimensão, os encerramentos das urgências. E depois faz comentários às coberturas existentes para além do SNS, inventaria os diferentes subsistemas, cujo número parece ter vindo a diminuir, mas onde o número de pessoas com seguros de saúde tem vindo a aumentar. E deteta atropelos à informação que é devida a um qualquer consumidor de cuidados de saúde, distinguindo seguros de planos de saúde, aqui com uma clareza meridiana: “Um plano de saúde não é um seguro; ele oferece aos seus subscritores o acesso a uma rede de prestadores de cuidados de saúde a preços tabelados, que resultam de uma negociação entre cada plano e os prestadores de cuidados de saúde abrangidos pela rede desse instrumento.” Dá-nos igualmente conta de quem está coberto por seguros e subsistemas e à guisa de conclusão observa que a fração do financiamento da prestação privada dos seguros tem vindo a crescer, prevendo que este crescimento irá continuar nos próximos anos, mas não deixando de anotar que eles são relativamente secundários no financiamento dos hospitais privados.

Já estamos na área de eleição do ensaio: capacidade e atividade dos hospitais privados (o leitor que se prepare para um vendaval de figuras, numa completa desarmonia com o espírito desta coleção. Temos depois a análise dos prestadores privados e o seu relacionamento com o SNS, aqui é inevitável uma palavra sobre as parcerias público-privadas e o autor tece os seus juízos de valor: “O fim de três das quatro PPP (Braga, Vila Franca de Xira e Loures) implica uma redução da qualidade dos cuidados prestados e um acréscimo dos custos a suportar pelo SNS, ou seja, pelos contribuintes. Este desfecho só se consegue compreender por motivações intensamente ideológicas. O Estado nunca promoveu estudos sobre as consequências do fim da gestão privada do Hospital Amadora-Sintra, e reincidiu não promovendo estudos sobre a cessação da PPP de Braga e das restantes. Esperemos que essa gritante omissão seja corrigida em breve e que se proceda a uma avaliação cuidadosa das vantagens e desvantagens do fim destas parcerias.”

Caminhando para o termo do ensaio, Miguel Gouveia analisa questões sobre o desempenho do setor privado na saúde, pondo ênfase na chamada desnatação, isto é, a acusação habitual de que o setor privado trata doentes com problemas de baixa gravidade ou que necessitam de tratamentos que exijam baixa complexidade tecnológica, deixando os casos que implicam grandes custos e complexidade para o setor público. Para Miguel Gouveia é uma acusação superficial, elenca as suas razões e por fim dá-nos o quadro dos recursos humanos nos setores público e privado. À falta de propostas dá-nos cenários para o futuro, destacando as tendências que se prende com o envelhecimento da população, a evolução científica e tecnológica e problemas globais como potenciais novas pandemias. Considera pouco provável haver um aumento das despesas públicas num sistema de saúde cada vez mais estetizado; há um outro cenário em que os governos irão empurrar os grupos populacionais com algum poder de compra para o setor privado, para assim se poupar na despesa pública, o perigo, alerta-nos é virmos a ter um SNS para os pobres. “Nessa altura estarão criadas as condições para um autêntico terramoto.” E há o cenário caracterizadamente reformista, implica, diz o autor que os governos despendam mais recursos com o SNS, requer-se capacidade do Estado para saber usar as estratégias de contratualização com o setor privado, e o moral da história, se este cenário vingar, e se acaso o Estado se tornar um contratador eficaz, ir-se-ão expandir as parcerias público-privadas e os cuidados hospitalares e as poupanças e ganhos de qualidade que lhe estão associados. Para bom entendedor…

Obra de incontestável interesse, mas insista-se divorciada do espírito desta coleção.

 

                                                                                            Mário Beja Santos