quinta-feira, 8 de junho de 2023

O sistema de saúde português e uma radiografia do setor privado.

 




Concertadamente, e com uma estranha sintonização, um conjunto de reputados especialistas em economia e gestão em saúde, nos últimos anos, vêm recordar a degradação do SNS, apelando à urgência da sua restruturação, de um modo geral faz-se o levantamento, mas, por pudor ideológico, não se diz exatamente o que é urgente restruturar e a que presumível preço. O autor do ensaio Saúde e Hospitais Privados em Portugal, Miguel Gouveia, conceituado universitário e investigador, alerta-nos para as dificuldades presentes do SNS e põe em destaque o setor privado na saúde, matéria fulcral do seu trabalho. Para captar a atenção do leitor, diz mesmo na contracapa: “Sabia que, em Portugal, o setor público paga dois terços da despesa em saúde, mas o setor privado é o prestador de mais de metade dos cuidados? Sabia que Portugal foi o segundo país da União Europeia com a maior taxa de necessidades de saúde não satisfeitas acumuladas durante a covid-19? E que a tendência de longo prazo aponta para a redução do peso do Estado como financiador e como prestador de cuidados de saúde?” Aliciantes interrogações, e cuidamos ir encontrar resposta ou sugestões concretas do autor.

Interrogo-me se este ensaio cabe no espírito desta coleção, está completamente polvilhado de números, gráficos, figuras, etc., é claramente uma obra destinada a um outro tipo de público, não a meros leigos ou curiosos. Isto sem o mínimo prejuízo de considerar que é um ensaio de leitura obrigatória para quem o pode entender na plenitude. Sem dúvida que qualquer explicação sobre o sistema de saúde português carece de números, mas não nos termos avassaladores como aqui aparecem. O SNS está confrontado por quadros ideológicos claramente demarcados, fala-se por alto em empreender reformas estruturais, o que acontece é que tirando um ou outro especialista nesta área, por exemplo António Correia de Campos ou Constantino Sakellarides, não vejo ninguém a pôr as mãos na massa e propor o rumo de tais reformas, é a tal asserção ideológica que os autores não querem mostrar.

Miguel Gouveia apresenta acertadamente o sistema de saúde: sistema misto, com os setores público e não-público, chama a atenção para os subsistemas do setor público e a diversificação do setor não público. Expõe as duas dimensões económicas fundamentais no sistema de saúde, e aqui começa a tempestade dos números. Aqui e acolá reconheço a exigência de os elencar: “A partir dos dados relativos a 2019, o último ano ‘normal’, podemos constatar que as despesas em hospitais, públicos e privados, constituíram 41,9% das despesas correntes em saúde, sendo que, destas, 72,7% ocorreram em hospitais públicos, e os restantes 27,3% em hospitais privados.” E depois é um tropel de números e percentagens, concluindo que o financiamento da saúde em Portugal é maioritariamente público, com tendência a decrescer; ficamos igualmente a saber que há mais de 28 mil empresas do setor privado que empregam cerca de 125 mil pessoas, quase tanto como o SNS, alertando o autor para a necessidade de se obter estatísticas precisas, sobretudo quando se fala da economia social.

O autor procura encontrar explicações para a volumosa procura de cuidados fora do SNS, releva as listas de espera e a sua grande dimensão, os encerramentos das urgências. E depois faz comentários às coberturas existentes para além do SNS, inventaria os diferentes subsistemas, cujo número parece ter vindo a diminuir, mas onde o número de pessoas com seguros de saúde tem vindo a aumentar. E deteta atropelos à informação que é devida a um qualquer consumidor de cuidados de saúde, distinguindo seguros de planos de saúde, aqui com uma clareza meridiana: “Um plano de saúde não é um seguro; ele oferece aos seus subscritores o acesso a uma rede de prestadores de cuidados de saúde a preços tabelados, que resultam de uma negociação entre cada plano e os prestadores de cuidados de saúde abrangidos pela rede desse instrumento.” Dá-nos igualmente conta de quem está coberto por seguros e subsistemas e à guisa de conclusão observa que a fração do financiamento da prestação privada dos seguros tem vindo a crescer, prevendo que este crescimento irá continuar nos próximos anos, mas não deixando de anotar que eles são relativamente secundários no financiamento dos hospitais privados.

Já estamos na área de eleição do ensaio: capacidade e atividade dos hospitais privados (o leitor que se prepare para um vendaval de figuras, numa completa desarmonia com o espírito desta coleção. Temos depois a análise dos prestadores privados e o seu relacionamento com o SNS, aqui é inevitável uma palavra sobre as parcerias público-privadas e o autor tece os seus juízos de valor: “O fim de três das quatro PPP (Braga, Vila Franca de Xira e Loures) implica uma redução da qualidade dos cuidados prestados e um acréscimo dos custos a suportar pelo SNS, ou seja, pelos contribuintes. Este desfecho só se consegue compreender por motivações intensamente ideológicas. O Estado nunca promoveu estudos sobre as consequências do fim da gestão privada do Hospital Amadora-Sintra, e reincidiu não promovendo estudos sobre a cessação da PPP de Braga e das restantes. Esperemos que essa gritante omissão seja corrigida em breve e que se proceda a uma avaliação cuidadosa das vantagens e desvantagens do fim destas parcerias.”

Caminhando para o termo do ensaio, Miguel Gouveia analisa questões sobre o desempenho do setor privado na saúde, pondo ênfase na chamada desnatação, isto é, a acusação habitual de que o setor privado trata doentes com problemas de baixa gravidade ou que necessitam de tratamentos que exijam baixa complexidade tecnológica, deixando os casos que implicam grandes custos e complexidade para o setor público. Para Miguel Gouveia é uma acusação superficial, elenca as suas razões e por fim dá-nos o quadro dos recursos humanos nos setores público e privado. À falta de propostas dá-nos cenários para o futuro, destacando as tendências que se prende com o envelhecimento da população, a evolução científica e tecnológica e problemas globais como potenciais novas pandemias. Considera pouco provável haver um aumento das despesas públicas num sistema de saúde cada vez mais estetizado; há um outro cenário em que os governos irão empurrar os grupos populacionais com algum poder de compra para o setor privado, para assim se poupar na despesa pública, o perigo, alerta-nos é virmos a ter um SNS para os pobres. “Nessa altura estarão criadas as condições para um autêntico terramoto.” E há o cenário caracterizadamente reformista, implica, diz o autor que os governos despendam mais recursos com o SNS, requer-se capacidade do Estado para saber usar as estratégias de contratualização com o setor privado, e o moral da história, se este cenário vingar, e se acaso o Estado se tornar um contratador eficaz, ir-se-ão expandir as parcerias público-privadas e os cuidados hospitalares e as poupanças e ganhos de qualidade que lhe estão associados. Para bom entendedor…

Obra de incontestável interesse, mas insista-se divorciada do espírito desta coleção.

 

                                                                                            Mário Beja Santos 


segunda-feira, 5 de junho de 2023

São Cristóvão pela Europa (220).

 


 

Ainda em França, agora no Departamento de Pas de Calais, encontrei três imagens de São Cristóvão.

Na cidade de Béthune existe uma paróquia de São Cristóvão.  A Igreja paroquial tem imagem no exterior e no interior.

 



 

Em Wimereux, junto à costa do Mar do Norte, uma antiga garagem estilo arte nova revela ainda uma imagem do nosso Santo.

 



 

Finalmente em Achicourt, uma igreja de São Cristóvão possui um baixo-relevo e um painel em vidro representando o Santo.

O baixo-relevo está assinado por Nicole Hemard (1936-2018), uma escultora eremita francesa.


 


 

 

                                                                Fotografias de 22 de Abril de 2022

 

                                                                                                   José Liberato


sexta-feira, 2 de junho de 2023

História de um assassinato onde faz presença a silenciada guerra colonial.


 


 

O ensaio O homem que via no escuro, A Lisboa de Bruno Candé, por Catarina Reis, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023, espelha esse dado incompreensível da sociedade portuguesa contemporânea e que tem a ver com os traumas que a guerra colonial deixou num número incerto de antigos combatentes. O assassinato de Bruno Candé, em julho de 2020, não tinha razão plausível para acontecer. O assassino era um homem de 76 anos que viu acidentalmente a quem roubou a vida, podemos falar de crime motivado por ódio racial, mas é o rótulo mais cómodo para continuarmos a deixar o esqueleto dentro do armário.

O retrato de Bruno Candé é de um homem bom, um ator dotado, que descobriu, serôdio, a vocação para o palco, que ultrapassou as vicissitudes de famílias disfuncionais, tomado pela curiosidade e pelo entusiasmo fugiu de qualquer abismo de que a Zona J podia favorecer, foi resiliente, três anos antes de morrer, depois de um grave acidente que sofreu, voltou a pôr-se de pé e a amar a vida. Contribuiu para que a companhia de teatro Casa Conveniente tenha mudado as instalações do Cais de Sodré para o que se teria pensado ser um lugar improvável para fazer teatro, a Zona J.

Catarina Reis conta-nos admiravelmente a história da sua vida, começamos por Cadi Candé Marques, uma muçulmana guineense que se terá embeiçado por um soldado português Olossato, naquela altura lugar fustigado pela presença do PAIGC no santuário do Morés. Cadi, mãe solteira, e com três filhos nos braços, viajou para Portugal, em 1973, veio só com dois filhos, a Santa Casa da Misericórdia apoiou-a, conheceu o trabalho precário, as limpezas, afeiçoou-se por outro português, dessa relação nasceram três filhos, Bruno foi o primeiro, ocuparam uma casa, veio a filha que ficara na Guiné, Olga, que se revelou uma irmã desvelada com os irmãos mais novos. O pai de Bruno acabou na bebedeira, Bruno e a família fixaram-se na Zona J, em Chelas; ao que consta, tinha o Bruno seis meses e esteve para morrer no Hospital D. Estefânia, houve batismo forçado, na falta de padrinho escolheu-se Santo António, o padroeiro de Lisboa teve direito a altar doméstico, mas a figura do santo seguia sempre no bolso do Bruno.

Adorava representar, tornou-se ator na companhia Casa Conveniente, a companhia transferiu-se para a Zona J em 2014. Entrou numa novela, mas o seu sonho era subir aos palcos, estreou-se no Bairro dos Remolares, no Cais do Sodré, a Casa Conveniente manteve-se aqui durante cerca de 20 anos. Teatro não convencional, pronto a novos desafios, chegou a representar nas prisões. Data de um espetáculo da companhia Rifar o meu coração, no Porto, em 2016, a frase em que Bruno sintetizou toda a sua história, uma consigna: “Eu tinha tudo para dar errado, mas sou o Bruno Candé.”

Um dos pontos mais estimulantes deste ensaio tem a ver com a forma como Catarina Reis põe em cena a Zona J e toda a área de Chelas, com os seus 10 bairros, conta-se a história do plano de urbanização de Chelas, os edifícios da Zona J e quem os habita, fala-se da emigração, das tensões culturais, dos pontos de encontro dos diferentes povos, a natureza das convivências, como a Zona J se reciclou em o Bairro do Condado, onde a cultura esteve ausente até há poucos anos. “A revolução começou há cerca de dez: em 2006, criou-se a Biblioteca de Marvila, seguiu-se o projeto cultural Galeria Underdogs, de Vhils (artista português Alexandre Farto), com o propósito de tornar a arte acessível por via de exibição do trabalho de artistas nacionais e internacionais. Surgiu, então, a Fábrica Braço de Prata, espaço que alberga eventos de todo o tipo. Mais recentemente, ali perto, ouvimos falar da chegada Hub Criativo do Beato, uma incubadora de criatividade situada no antigo complexo fabril do Exército. E, claro, estava presente a Casa Conveniente, a par da companhia de teatro Cepa Torta.”

A Casa Conveniente derrubou muros, instituiu uma cultura de proximidade, apareceram artistas no fado, hip-hop, impôs-se a arte urbana, emergiam as gerações já nascidas em Portugal.

E vamos agora aos três tiros mortais que Evaristo Marinho desfechou em Bruno Candé com uma semiautomática Walther PP de calibre 7,65 mm. As gentes espavoridas, desoladas, perplexas, interrogavam-se sobre o móbil do crime, prontamente se aflorou a palavra racismo. Consultando os jornais da época vejo como se passou por cão por vinha vindimada sobre a saúde mental de Evaristo Martinho. Este antigo combatente encontrara uma vez Bruno na dita avenida de Moscavide, houve uma troca azeda de palavras, Evaristo não se escusou a proferir ofensas e a dizer que matara pretos durante a guerra, isto só para sublinhar que o seu crime de ódio vem de longe, está identificado, existem até associações que procuram acolher antigos combatentes com stress de guerra que levam uma vida de inferno e destroem a família, e há mesmo livros que falam de Evaristos identificados, por vezes autênticos farrapos humanos. Tenho para mim que este ator tão esperançoso, que deixou três filhos menores, um punhado de notas magníficas espalhadas pelas gavetas da sua casa, amável, sonhador, teve um dramático encontro com um desses doentes desse ódio recalcado. E é muito tocante o termo desta narrativa em volta de um homem bom destruído por ódio racial:

“Bruno era o tipo de pessoa que jamais esperava gritos de revolta, canções revolucionárias e homenagens em palco. Jamais pensaria que a história colonial da qual a família nasceu e cresceu foi a mesma que o matou. A guerra levou um português até Cadi Candé Marques, encontro que fez nascer Olga, Carla e Fernando; também foi a guerra que conduziu a guineense até Lisboa, à Zona J. A mesma guerra que tornou um homem revoltado e armado que acabaria por trazer a Cadi a pior dor de uma mãe. O que pensara Candé de um homem que ameaça, a plenos pulmões, ter matados ‘pretos’ na guerra, violado mulheres africanas e ter uma arma em casa pronta a matar outros?

Creio saber o suficiente para adivinhar que Bruno viu neste homem uma amargura curável, travada antes do primeiro tiro, com uma cerveja e uma conversa à mesa.”

De leitura obrigatória para todos aqueles que queiram investigar os porquês de uma guerra colonial onde ainda decorre um sofrimento vivo a que a sociedade se alheia, tratando-o como um mal menor, como uma raiva que gradualmente se extinguirá quando o último antigo combatente fechar os olhos.


Mário Beja Santos


São Cristóvão pela Europa (219).

 

 

Ainda no departamento do Nord, mesmo no ponto mais ao Norte da França, existe uma pequena comuna chamada Spycker. Nela foi erigido em 1932 um monumento a São Cristóvão. Foi-o pelo cura da aldeia com o apoio do Bicycle Automobile Club Dunkerquois.

A legenda é Regarde Saint Christophe et va-t-en rassuré curiosamente equivalente à legenda medieval que acompanhava o Santo: olha para São Cristóvão e parte sossegado.

 


Na cidade de Cassel, que dá o nome a mais do que uma batalha ao longo da História, situa-se o Museu da Flandres (a francesa) que ocupa o Hotel de la Noble Cour. Aqui o Marechal Foch instalou o seu quartel-general durante a I Guerra Mundial.

 


Hoje é um museu que se dedica em especial à promoção da arte flamenga do Século XV à actualidade.

Obra-prima da colecção é um óleo sobre madeira cuja autoria tem sido alternativamente atribuída a Joachim Patinir (1485-1524) e a Quentin Metsys (1466-1530). Representa uma paisagem com São Cristóvão e o Menino Jesus.

 

 

Finalmente a Igreja de São Vaast em Hondschotte, a pouco mais de um quilómetro da fronteira com a Bélgica, contem uma imagem do nosso Santo. Foi reconstruída no Século XVII após incêndio devastador em 1582:

 



 

                                                            Fotografias de 22 de Abril de 2023.

 

                                                                                                José Liberato






sábado, 27 de maio de 2023

São Cristóvão pela Europa (218).

 

 

Em Abril, passei também por dois departamentos franceses situados no Norte do País: um apropriadamente chamado Nord, o outro o departamento de Pas de Calais. Ambos pertencem à região de Hauts de France.

No departamento do Nord, comecei por Valenciennes, cidade que pertenceu ao Ducado da Borgonha como grande parte desta Região. Aqui Carlos o Temerário reuniu o 12º capítulo da Ordem do Tosão de Ouro. Foi o último sob a égide da Borgonha, na Igreja de São Paulo, destruída na Revolução Francesa juntamente com o Convento dos Dominicanos:

 


 

Já aqui mostrei a estátua de são Cristóvão, da autoria de Pierre Schleiff (1601-1641) que está no Museu de Belas Artes de Valenciennes e é proveniente da Igreja de São Nicolau.

No exterior encontra-se uma réplica:

 


A poucos quilómetros, na comuna de La Sentinelle, existe um nicho com uma pequena imagem representando o nosso Santo:

 



Em Gouzeaucourt, uma pequena Capela de São Cristóvão tem uma imagem no topo:

 



 

 

                                                                            Fotografias de 22 de Abril de 2023

 

                                                                                                              José Liberato







quarta-feira, 24 de maio de 2023

São Cristóvão pela Europa (217).

 

 

Obra-prima da pintura europeia do Século XV é o retábulo Agnus Dei da autoria sucessiva dos irmãos Hubert Van Eyck (1366-1426) e Jan Van Eyck (1390-1441).

Inaugurado em 1432, foi encomendado para a Catedral de Gand, a Catedral de São Bavon ou São Bavão em português.

Objecto de um profundo restauro foi colocado em 2020 na Capela do Santíssimo Sacramento em condições excepcionais de apresentação.

A sua história é muito atribulada. Esteve em risco de ser queimado pelos iconoclastas, foi roubado por Napoleão e esteve exposto no Louvre. Caído Napoleão, foram devolvidos alguns painéis, mas outros foram vendidos ao Rei da Prússia e expostos num museu em Berlim.

Foram roubados na I Guerra Mundial pelos alemães que os reuniram aos que já estavam na sua posse, mas perdendo a Guerra, tiveram de os devolver na integralidade

Em 1934 dois painéis foram roubados, mas só um foi encontrado. O exibido hoje é uma cópia.

Durante a II Guerra Mundial esteve depositado em Pau em França, mas foi apreendido por Hitler. No final da Guerra é colocado numa mina de sal na Áustria e salvo pelos Monuments Men de ser dinamitado. Há um filme de George Clooney sobre este grupo de militares.

Trata-se de um políptico que pode ser apreciado fechado e aberto. Fotografei-o não obstante os reflexos.

Fechado é assim:

 


Estes painéis já foram amplamente descritos pelo nosso amigo Ademar Marques pelo que não vou repetir o que ele escreveu.

http://malomil.blogspot.com/2021/10/em-busca-do-tosao-de-ouro-portugues-de.html

Só sublinhar o aspecto interessantíssimo de haver quem defenda que o modelo que serviu para a imagem da Sibila de Cumas (terceiro pequeno painel a contar da esquerda em cima) ser na realidade Isabel de Portugal, Duquesa da Borgonha, que havia casado em 1430 com o Duque da Borgonha Filipe III o Bom.

Lembremos que Jan Van Eyck veio de propósito a Portugal pintar dois retratos da princesa, filha do nosso rei D. João I. Foram enviados ao Duque por dois caminhos diferentes, mas nenhum deles chegou aos dias de hoje, embora existam cópias.

 


Quando aberto, o retábulo apresenta-se desta maneira gloriosa:

 




Mas trago o retábulo aqui por alguma razão…

É que no painel da direita em baixo podemos ver São Cristóvão conduzindo os peregrinos. Curiosamente não se vislumbra o rio habitual na iconografia. Apresenta-se como gigante, descalço e com o seu cajado.

 

 


 

Esta é a Catedral vista do exterior:

 

 

Numa outra capela da catedral encontramos ainda uma imagem do nosso Santo:

 


 

                                                                        Fotografias de 24 de Abril de 2023.

 

                                                                                                        José Liberato






domingo, 21 de maio de 2023

Carta de Bruxelas.

 





                                                                    O regresso das palavras

 


O texto com que Charlotte Delbo abre o livro, A Medida dos Nossos Dias, incluído em Auschwitz e Depois (CFB Editores, 2018, pp. 315-321), intitula-se significativamente «O regresso». Não se trata de tornar a uma Ítaca abandonada a contragosto e tomar posse do mundo que nunca se perdeu: os rostos familiares, os objectos ordenados como lhes compete, as ocupações próprias de uma condição social e os deuses que zelam pela harmonia do todo. Através dos perigos arrostados, Ítaca permanece o Norte magnético: corrige os desvios, anula os erros e, sobretudo, é a memória que vivifica, que tanto mais estende as suas asas acolhedoras e fiéis quanto mais demorado e acidentado é o regresso. Quanto mais longe dela, mais brilha a origem. À memória que guia Ulisses como a varinha do vedor indica a água, fonte da vida, responde a memória que guia Penélope nas suas astúcias, de olhos postos no que há-de vir. O reencontro será feliz e rico: uma realidade confirmada e potenciada pelo tempo vivido.

A experiência concentracionária do regresso é de outra ordem.  A viagem de regresso, conforme descrita por Delbo, desrealiza gradualmente as sobreviventes, como se o mundo normal arrebatasse a vida dos regressadas.  Em primeiro lugar e, num aparente paradoxo, depois da fome concentracionária, no próprio corpo, «[v]ia-as [as companheiras] a transformarem-se sob os meus olhos, tornarem-se transparentes, tornarem-se vagas, tornarem-se espectros.» Uma tal desaparição física, corpórea, não é um dado, um facto bruto. Pelo contrário, deriva da experiência mais originária da perda de sentido. É a linguagem que dá a medida da realidade. Por isso, Delbo acrescenta de imediato «[a]inda as ouvia, mas começava a não perceber o que diziam.» A libertação, o ansiado regresso, não é o reencontro com um mundo abandonado, o reconhecimento em comunhão com o que lá ficara, paciente, esperando. À chegada, o mundo desapareceu, os outros desapareceram, o próprio eu solta as amarras; erra, desliza, flutua, são os verbos que Delbo usa repetidamente. Fora do mundo, «[n]ão sentia nada, não me sentia existir, não existia.»  Para se reapossar do mundo é necessário – precisamente o oposto de Ulisses e Penélope – um esforço de memória, «mas porque dizer: um esforço de memória se já não tinha memória?» A cabeça esquecida é a cabeça vazia, incapaz de reflectir, «como reflectir, quando já não se possui uma única palavra, quando se esqueceram as palavras todas?» E, no entanto, esse momento de suspensão da continuidade do eu é necessário como uma reacção química que aparentemente isola os elementos de um composto. É nele que se funda a passagem entre duas condições de vida incomensuráveis. Uma passagem entre uma linguagem concentracionária que Primo Levi por momentos julgou possível, como se pudesse existir uma experiência verdadeira do Lager, verdadeira precisamente no sentido de ser dada numa linguagem própria, sem um denominador comum com a linguagem normal. Uma linguagem que não fosse uma linguagem do mundo da vida, da experiência humana, mas da morte, da morte em vida. O tempo da incompreensão a que se refere Delbo não deixa de poder ser compreendido. Significa isso que também nesse meio tempo houve linguagem, por mais tacteante que tenha sido. Com ironia, e sempre com espanto, interroga-se: «Quanto tempo fiquei assim, em suspensão de existência? (Como vêem, depois voltei a encontrar as palavras).» A resposta à pergunta está dada entre parêntesis: o tempo durante o qual não encontrou as palavras. Esse é o tempo em que o seu corpo não tinha peso, a sua cabeça não tinha peso, chegando ao extremo do que começara com a desrealização das companheiras, também elas sem peso, também elas sem palavras compreensíveis. Um exemplo claro que evidencia a ligação umbilical aos outros e ao mundo, por esta ordem e pela linguagem.

O regresso às palavras, ou talvez melhor, o regresso das palavras faz-se pela recusa da possibilidade de uma linguagem do Lager. A linguagem dos homens normais retoma o seu lugar quando se nega o privilégio da verdade ao Lager, como se aquilo fosse a verdade do homem perante o qual a vida normal fosse falsa. Delbo dá conta da sensação de estranheza, de inautenticidade, no encontro com os outros e, ratificando o modelo hermenêutico do texto como um tu, com os livros. «Tal como baixava os olhos para não ver as caras porque as caras se despiam sob os meus olhos, porque, a partir do momento em que as fixava, via tudo das pessoas através das caras delas, e isso incomodava-me ao ponto de ser obrigada a baixar os olhos, e também me afastava dos livros porque via através das palavras. Via a banalidade, a convenção, o vazio. [...] Tudo, caras e livros, era falso, tudo me mostrava a própria falsidade [...].» A falsidade geral só pode ser medida pela linguagem pseudo-verdadeira do Lager, que é a linguagem adâmica satanicamente invertida. Em vez da identidade plena e feliz entre coisa e palavra, é uma identidade degradada, já não a identidade da vida mas sim a da morte em vida, como se o acto de desumanização fosse a verdade. Por isso, a descrição de Delbo do regresso das palavras não acompanha um processo de reconstrução da linguagem a partir de elementos quimicamente isolados. A palavra vem como palavras, num sistema impreciso, indefinível, enigmático: «Como é que tudo se passou? Não sei. Um dia, peguei num livro e lio-o.» Ou seja, deixou de «viver num mundo sem mistério». Não lhe é possível calcular esse momento em que passa a haver sentido; não por acaso, o logos grego foi traduzido por ratio mas também por verbum.

Num texto breve (Voltar do campo voltar ao normal, pp. 371-373), Delbo vê o regresso à vida como a saída da história. Que história? Não a história com maiúscula, a epopeia cumulativa da Humanidade, nem, em declinações famosas, a história que lê o passado à luz de uma ideologia. Trata-se antes da história que diz o que cada qual é, que o esbulha da sua interioridade; a história que transforma o homem numa superfície, sem mistério, sem perigo e, por isso, sem banalidade, sem inautenticidade e sem falsidade. Já não é história, é mitologia, que rouba o tempo e dele faz espaço exterior. É a palavra – fatum – que vem do exterior, avassaladora, cega como uma aluvião que soterra as casas e as vidas. Sair da história para entrar na vida não é um momento de criação que seja acessível aos não concentracionários. Dá testemunho do nascimento da linguagem e da vida antes da história. A vida regressada tem de excluir o horror absoluto como factor capaz de alterar todas as contas. O que não acontece por inércia, por esquecimento; mas por uma decisão. «Inspirar piedade, não, não queria, mas para admitir que Auschwitz não entra na balança do deve e do haver, precisamos de nos endurecer brutalmente.» (p. 412).  Se a luta de Jacob o deixou marcado por um poder superior a quem pede a benção, aos concentracionários a luta com o mal legou-lhes uma maldição: endurece-te brutalmente. Talvez Primo Levi ou Jean Améry tenham sucumbido a uma tal maldição, o que amplia a lista dos agravos. Charlotte Delbo não. Viu o mal e lutou. Talvez se tenha endurecido brutalmente, a forma de coxear que Auschwitz lhe impôs, mas venceu o mal regressando à vida, à vida toda, à vida até ao fim.

 

                                                                                                            João Tiago Proença

     






sexta-feira, 19 de maio de 2023

São Cristóvão pela Europa (216).

 


 

Mâlines (Mechelen em flamengo) é uma cidade da Bélgica cheia de História.

Sede do primeiro Tribunal de Contas, criado por Carlos o Temerário, é posteriormente a cidade de Margarida de Áustria, grande protectora do seu sobrinho Carlos V até chegar à maioridade.

A Igreja de São João Baptista é uma das inúmeras igrejas da cidade. Essencialmente do Século XIV é belíssima. Assistiu a todas as desgraças da História, em particular nesta Região: incêndios, explosões, guerras.

Em 2008, a igreja foi restaurada e nos trabalhos revelaram-se frescos do Século XIV que anteriormente se encontravam tapados. E, como é habitual, São Cristóvão surgiu.

Várias vezes visitei a igreja sem acesso aos frescos. Foi agora.

O estado de conservação não é brilhante, mas impressiona a descoberta de algo que esteve escondido durante vários séculos:

 



 

Antuérpia é a segunda cidade da Bélgica.

A Catedral de Nossa Senhora de Antuérpia é o monumento mais marcante da cidade. Pela sua dimensão (ocupa um hectare de superfície) e pelas suas obras de arte.

Nestas avultam várias telas de Peter Paul Rubens (1577-1640). Como sempre de grandes dimensões e de enorme beleza.

Dispunha da informação de que uma das telas representava São Cristóvão. Mas os quadros de Rubens na Catedral são quatro e nenhum é sobre o nosso Santo.

O mistério foi resolvido quando percebi que um dos quadros é um tríptico, susceptível de se fechar. Trata-se da extraordinária Elevação da Cruz. Depois de fechado o tríptico, lá está São Cristóvão:

 





 

                                                                      Fotografias de 23 e 24 de Abril de 2023

 

                                                                                                            José Liberato