sexta-feira, 26 de julho de 2024

As cinquenta tonalidades dos elefantes olímpicos

 

As cinquenta tonalidades dos elefantes olímpicos


A publicação em Portugal do livro Jogos de Poder, do investigador e ex-atleta olímpico Jules Boykoff, é apenas o mais recente capítulo de uma longa lista de denúncias sobre o problemático universo das Olimpíadas, nomeadamente ao nível dos muitos “elefantes brancos” deixados em herança às cidades organizadoras. Mas se agora tendemos – e bem! – a olhar com desconfiança o fenómeno dos Jogos, mais importante se torna sublinhar que nem só da cor da neve se fez este reino de paquidermes.

 



Se o caldeirão olímpico falasse ou, mais bem dito, cantasse, à semelhança dos seus primos saídos das histórias de bruxas, talvez se sentisse tentado a recorrer, no momento em que a tocha se aproxima, ao Dá-me Lume de Jorge Palma, marcando assim, com um toque de humor, o ponto alto da cerimónia de abertura, ela própria, por sua vez, muito provavelmente o ponto alto de qualquer edição dos Jogos Olímpicos. Sendo Paris a cidade anfitriã da próxima, seria certamente um bom momento para os largos milhares de portugueses que, misturados nas quinhentas mil pessoas previstas nos números da organização, irão assistir, ao vivo, à grande inovação desta XXXIII Olimpíada: a transferência, pela primeira vez, do interior de um estádio para um genuíno ambiente urbano, da sempre espectacular inauguração do evento.

Conjugar esta surpreendente decisão – tomada sob o signo da abertura popular e da facilidade de acesso, e considerada tão relevante que foi dada a conhecer ao mundo através do Presidente Macron lui-même – com a da não construção de um estádio olímpico de raiz – optando-se, ao invés, por utilizar o Stade de France, um equipamento em funcionamento regular desde o Campeonato do Mundo de Futebol de 1998 –, deu origem a um coro de elogios, proferidos dentro e fora do Hexágono, que revelou bem o cansaço de largas parcelas da sociedade (e das respectivas carteiras) com a multiplicação de “elefantes brancos”, uma espécie que nunca correu qualquer risco de extinção desde que se mostrou ao mundo (eventualmente na forma de Torre de Babel) e que costuma encontrar na ecologia dos grandes eventos condições óptimas de reprodução.

De facto, depois de décadas a ler notícias e a ver imagens de instalações olímpicas abandonadas, das piscinas extraordinárias e caríssimas cuja água nem ao Natal seguinte chega até aos pavilhões outrora resplandecentes engolidos pelo mato logo na primeira Primavera, não é de estranhar que os contribuintes – e mesmo quem não contribui – fiquem aliviados por saber que a organização de uns Jogos, preocupada com o futuro e consciente das experiências passadas, pretende evitar “gigantismos” e aposta na contenção dos egos e dos custos que os costumam suportar. Quando essa filosofia de sobriedade mostra a sua força em Paris, uma cidade normalmente obcecada com a grandeur, junta-se ao alívio a surpresa: se até a capital de Luís XIV, Napoleão, Charles de Gaulle e Mitterrand, sede de um vasto Clube das Inutilidades Magníficas com sócios do jaez do Grande Arche de La Défense (300 mil toneladas de vaidade em forma de betão, vidro e mármore), começa a perceber as vicissitudes financeiras e ambientais da pompa, então há esperança para a tão debatida sustentabilidade do mundo.

Posto isto, que não é pouco e muito menos irrelevante, talvez seja igualmente justo sublinhar, numa subjectiva e discutível tentativa de separar o trigo do joio, que nem todos os milhões, ou biliões, quiçá triliões gastos em 128 anos e 32 edições das Olimpíadas modernas tomaram a forma de escandaloso desperdício, um pouco como se os estádios, sem excepção, aproveitando-se do seu design, tivessem assumido o papel de gigantes retretes onde lunáticos e perdulários decisores despejaram sem tino nem proveito camiões e camiões de dinheiro. Sobre esses casos, quase incontáveis, não há falta de relatos e de falatório. Quanto aos outros, os que honraram a despesa com uma obra marcante, muitas vezes revolucionária e ainda em usufruto, têm sido mais raras as crónicas, pelo menos nos últimos anos, uma realidade algo injusta que merece reparação.

 

776 a.C.



A chama que irá “dar lume” ao caldeirão parisiense, e que se encontra neste momento na parte final de uma viagem de 101 dias e 10 000 “passagens de testemunho”, foi acesa no passado mês de Abril em Olympia, a cidade grega localizada no Peloponeso onde toda esta alegre confusão teve início. Cumprindo a lei de ferro dos eventos, chegámos, entretanto, às três dezenas de modalidades e dez milhares de atletas, mas nesse longínquo ano de 776 a.C., quando ocorreu a primeira edição, tudo se resumia a uma corrida a pé entre duas pedras, afastadas entre elas, ao que parece, 192 metros. A essa distância se deu o nome de stadion, palavra que foi em simultâneo utilizada – não sabemos se por falta de inspiração, preguiça ou simplificação comunicacional – para baptizar a prova em si e também a pista onde foi disputada, uma construção simples que ainda lá se encontra, ao lado de várias outras antiguidades em ruínas (nomeadamente o Templo de Zeus, casa da desaparecida estátua esculpida por Fídias, uma das sete maravilhas do mundo), todas obviamente inscritas na lista de Património Mundial da UNESCO.

Pai de todos os estádios, incluindo do Municipal de Braga, cujo custo total de 192 milhões de euros poderá ter sido uma homenagem à unidade de medida acima referida, o stadion de Olympia foi utilizado regularmente até 393 d.C., ano em que o Imperador Teodósio, entre outras medidas de combate ao paganismo, decretou o fim da versão 1.0 dos Jogos Olímpicos. Se estes onze séculos de perseverança dos materiais seriam já um excelente indicador ao nível da amortização do investimento na infra-estrutura desportiva, perdoe-se o jargão económico, melhor ficaram os rácios quando os responsáveis por Atenas 2004 decidiram lá fazer a prova de lançamento do peso, aumentando a vida útil do recinto para uns invejáveis 2780 anos, marca apenas superada pela vida útil do defesa central Képler Laveran Lima Ferreira, mais conhecido por Pepe. A responsabilidade pelo complicado legado desses J.O. na capital grega, que cumprem agora o 20.º aniversário, terá, pois, de ser procurada noutro lugar, a começar talvez na cobertura de 256 milhões de euros idealizada por Santiago Calatrava para o estádio principal, e que se encontra, neste momento, interdita por risco de colapso.

Não tendo sorte com as construções recentes, a Grécia, numa daquelas ironias que talvez lá tenham sido representadas teatralmente pela primeira vez, parece ter boa fortuna com as antigas. É que além do complexo de Olympia, algo deslocado neste texto por não estar directamente relacionado com as Olimpíadas da era moderna, alberga também nas suas fronteiras o Panatenaico, um estádio que nasceu em Atenas ainda na Antiguidade, sendo depois progressivamente abandonado até à ruína, com o mármore que o compunha a ser roubado e utilizado noutras obras por empreiteiros dinâmicos e com espírito de iniciativa, espécie rara mas que de vez em quando aparece, e vendo algumas das suas maravilhas a emigrarem, como por exemplo o Trono de Biel, exposto actualmente no Museu Britânico. Entretanto, após extensos trabalhos arqueológicos desenvolvidos durante o séc. XIX, o Panatenaico é totalmente reconstruído com o famoso e nobilíssimo mármore branco do Monte Pentélico, o mesmo que faz brilhar o Pártenon à luz do tórrido sol grego, numa operação milionária patrocinada por homens de negócios de bolsos fundos que tinha em vista os J.O. de 1896, ou seja, os primeiros da modernidade. Agora que caminhamos para os trigésimos terceiros, parece justo reconhecer, a título de balanço, que o Kallimarmaro (“beleza em mármore”), nome pelo qual também é conhecido, se portou bem, aguentando décadas de eventos variados, inspirando, com o seu misterioso túnel de acesso e com a sua simplicidade clássica em forma de ferradura, vários arquitectos, incluindo alguns pouco recomendáveis como o nazi Speer, e, aspecto importante, sem nunca ter tido qualquer problema com a cobertura, eventualmente pela prosaica razão de não ter nenhuma.

 

 


(Estádio Panatenaico)

 

 

Oito anos depois, em St. Louis, Missouri, continuaram bem tramados os carecas, sujeitos aos escaldões pela igual falta de um tecto. Por outro lado, desviando a atenção para o que estava debaixo deles, puderam desfrutar dos Jogos em grande segurança estrutural, uma vez que as bancadas foram construídas com a então inovadora tecnologia do betão armado, nessa época em fase de desenvolvimento. A aposta, imbuída de pioneirismo, foi ganha, e ainda hoje lá nos podemos sentar para assistir a jogos ou a provas de atletismo, o mesmo acontecendo com o vizinho Francis Gymnasium, um espaço que, além da prática desportiva, costuma ser escolhido para acolher os debates entre candidatos a Presidente dos Estados Unidos, sempre excelentes oportunidades para se trocarem juízos sobre bons e maus investimentos.

Os mais atentos terão reparado que Paris 1900 não foi referido, algo que acontecerá também com Londres 1908 e com mais uma ou outra edição, pois em não havendo obra marcante ou duradoura, ou, quem sabe, havendo ignorância do signatário sobre obra que afinal até tenha existido, delas se guardará de Conrado o prudente silêncio. Não é porém o caso dos Jogos de Estocolmo (1912), Paris (1924) e Amesterdão (1928), todos merecedores de alguma atenção, quer pela perenidade geral dos estádios que os acolheram, os três ainda no activo, quer por algumas particularidades dignas de nota: o recinto sueco, sendo dos mais pequenos de sempre, foi um dos que mais recordes do mundo viu serem batidos na história do atletismo, numa excelente demonstração da máxima “less is more”; o francês, construído sob uma apertadíssima restrição financeira, conseguiu proteger os carecas do sol com uma desafiante cobertura de ferro suportada por apoios mínimos, demonstrando dotes de engenharia (civil e financeira) que podem ainda ser apreciados, uma vez que o estádio, exactamente 100 anos depois, será um dos palcos de Paris 2024; o holandês (ou será paísbaixês?), esse, saído do estirador de Jan Wils, arquitecto fundador, na companhia de Mondrian, van Doesburg e Gerrit Rietveld, do grupo De Stijl, seria, só pelo génio do criador, um lugar a ter em conta – não por ser um exemplo desse movimento marcado pela ortogonalidade e forma cúbica revestida a cores primárias, mas por representar a “outra vida” de Wils, ligada ao expressionismo do tijolo vermelho característico da “Escola de Amesterdão”. Ademais, pormenor decisivo, foi dele a ideia de fazer renascer a chama olímpica da antiguidade grega, tendo construído uma elegante e grandiosa torre para servir de “castiçal”, embelezando ainda mais um estádio já de si lindíssimo – que o digam os benfiquistas, que de lá trouxeram, numa época pré-maldição, a sua segunda taça de campeões europeus.

 



(Estádio Olímpico de Amesterdão)

 

 

Mania das grandezas

E eis-nos assim chegados à década de 30 e aos dois colossos que a marcaram, um deles sob o signo do espanto e optimismo, por ter sido possível ao engenho humano de uma nação construir tal poderosa maravilha, o outro sob o signo do espanto e pessimismo, por ter sido possível ao engenho humano de uma nação construir tal poderosa maravilha. A diferença? O gigantismo de Los Angeles 1932 era patrocinado por uma democracia liberal consolidada, com as suas virtudes e defeitos bem conhecidos de todo o mundo; o outro, de Berlim 1936, era um projecto de poder de um sistema político misterioso instituído três anos antes, um regime que se apoiava numa ideologia nazista ainda pouco transparente quanto às suas verdadeiras intenções, mas da qual o que se ia sabendo não augurava nada de bom.

À parte isso, o assombro. Cem mil lugares – uma escala nunca vista – em ambos os casos; noventa portões de acesso no de L.A., permitindo uma evacuação total em pouco mais de 15 minutos; uma capacidade logística no de Berlim que garantia conseguir enchê-lo, compra dos bilhetes incluída, enquanto o Diabo – ou o próprio Hitler – esfregava um olho. Em relação à durabilidade, nada parece haver a apontar: o recinto californiano, que recebeu Carlos Lopes no final dos 42.195 metros do nosso contentamento, já acolheu as Olimpíadas de 1932, as de 1984, e prepara-se agora para uma nova aventura em 2028, colocando a fasquia das reutilizações num nível difícil de ultrapassar; o intimidante palco germânico, por seu lado, não durará certamente, à semelhança do III Reich, os mil anos previstos pelos megalómanos nazis, mas lá continua de pedra (muita) e cal (pouca), após várias renovações, muitas provas de atletismo, nomeadamente um campeonato do mundo, e centenas de jogos de futebol, incluindo dois mundiais da FIFA, um deles, em 2006, com direito a uma histórica cabeçada de Zidane.

 


(Parque Olímpico de Berlim)

 

Desviando-nos substancialmente da linha do tempo, num salto importante para perceber um contraste revelador, importa falar sem delongas de Munique 72, os segundos Jogos realizados na Alemanha, tristemente célebres pelo atentado terrorista contra a delegação de Israel, mas arquitectonicamente felizes pelo sublime trabalho de Günter Behnisch, Frei Otto (que era também engenheiro) e Günther Grzimek, paisagista responsável por implantar na capital da Baviera um parque exemplificativo do seu conceito de “verde democrático”. Construído especificamente para servir de antítese à experiência nacional-socialista de 1936 – projectar poder através de formas neoclássicas de rigorosa geometria e de pesadas placas de pedra aparelhada –, o Parque Olímpico de Munique é um prodígio de leveza e de abertura, e o estádio nele plantado (é a palavra certa, pois está significativamente enterrado no terreno), com a sua delicada cobertura ondulada, é uma obra tão bem feita que consegue até disfarçar a tremenda complexidade técnica e consequente inovação estrutural que permitiram a sua existência. Imitando uma teia de aranha, caso as aranhas fossem do tamanho de dinossauros, a “tenda”, que cobre uma larga parcela dos equipamentos desportivos, precisou de 436 km de cabos de aço para garantir a própria sobrevivência contra ventos e nevões, uma membrana protectora de milhares de metros quadrados de um arrojo poucas vezes visto, embora nada esmagador por estar sabiamente harmonizado com colinas, lagos e árvores. O que esmagou, claro, foi o custo da brincadeira, sacos carregados com o poderoso marco alemão a caminho do bolso dos empreiteiros que ergueram a canópia, movimentaram milhões de metros cúbicos de terra e executaram as fundações com quase 40 metros de profundidade, e dos muitos engenheiros, técnicos e cientistas que tudo isto possibilitaram a partir de laboratórios e centros de investigação. Em sua defesa, porém, diga-se que na História da Humanidade em geral, e na dos J.O. em particular, já se gastou bem mais em coisas bem menos fabulosas.

 



(Parque Olímpico de Munique)

 

 

O desastre

Sem nos afastarmos muito, cronologicamente falando, basta avançar uma edição, para Montreal 76, rumo a um dos maiores desastres financeiros – e não só – de sempre. Os admiradores do projecto, tentando equilibrar a balança, não deixarão de referir a monumental torre inclinada, responsável por gerir a abertura e fecho da cobertura do estádio, e, sem dúvida, um dos símbolos mais visíveis e reconhecíveis da cidade actualmente. Impressiona, de facto, mas não tanto como as fotografias da cerimónia de abertura, onde no lugar da torre se veem apenas gruas e pontas de varões de aço, símbolos inconfundíveis de obras não terminadas. A dita-cuja chegou mais tarde, mais concretamente em 1988, com um ligeiro atraso de três Olimpíadas, e continuou a ser paga até 2006, com um ligeiro desvio orçamental de 1300%. Valeu a pena, todavia, pois ainda se conseguiu abrir e fechar o tal tecto umas dezenas de vezes, antes de se tornarem tão evidentes os problemas que não restou outra opção senão trocá-lo por outro, solução que durou até o tal outro, por sua vez, começar também a dar problemas, e assim sucessivamente, numa novela que, 48 anos volvidos, continua em exibição, montada num argumento que incluiu corrupção, caos no estaleiro, greves infindáveis, atletas olímpicos misturados com trolhas que tentavam desesperadamente “segurar as pontas”, desmoronamentos de pedaços de betão com várias toneladas, feridos, processos em tribunal, incêndios, falhas estruturais, e a quase falência do município. Com a cidade ainda dividida entre aqueles, pessimistas, cujo derradeiro sonho é a demolição do paquiderme, e os restantes, optimistas, que acreditam que tudo acabará por correr bem se continuarem, ad aeternum, a regá-lo com dinheiro, é provável sermos ainda presenteados, durante muito tempo, com a única herança evidente e indiscutível destes Jogos, a saber: as anedotas.

 


(Estádio Olímpico de Montreal com uma cobertura)

 



(Estádio Olímpico de Montreal com outra cobertura, em direcção a mais uma, e assim sucessivamente)

 

 

Comparadas com Montreal, as restantes barracadas olímpicas, por maiores que tenham sido, parecem sempre diminutas e aceitáveis, no mínimo passíveis de contraditório. Por isso, e também pela promessa inicial de concentrarmos a atenção nas edições que equilibraram minimamente os custos com um legado decente, passemos ao de leve pelo património de Moscovo 80 (o estádio Lenine, que entretanto foi rebaptizado como Luzhniki, conta apenas com a fachada original, pois tudo o resto foi demolido e reconstruído para o FIFA 2018; e sendo essa fachada, em estilo neoclássico, um derivado fora de prazo do Olímpico de Berlim, não teria vindo mal nenhum ao mundo se tivessem deitado tudo abaixo); e de Seoul 88 (uma obra interessante, de um arquitecto interessante, onde nada de interessante se passou desde a cerimónia de encerramento); e de Atlanta 96 (um estádio sem interesse nenhum, substituído logo em 1997 por outro, também sem interesse nenhum, e entretanto por um terceiro – sim, adivinharam – igualmente desinteressante; como todas estas metamorfoses foram planeadas e orçamentadas por americanos, é provável que o legado financeiro não tenha sido mau, mas o patrimonial, esse, não existe); e de Londres 2012 (é verdade que o neofuturista Centro Aquático da arquitecta Zaha Hadid, estrela mundial da arte do estirador, primeira mulher a receber o Pritzker, “rainha da curva” e de muitas outras designações elogiosas, é, de facto, um magnífico exemplar da “WOW! architecture”, e talvez seja até, como referiu à época o Presidente do Comité Olímpico Internacional (COI), uma obra-prima, mas os orçamentistas conseguiram meter tanta água como as próprias piscinas, e a brincadeira derrapou até aos 300 milhões de euros, um valor que só se justificaria se os atletas tivessem exigido nadar em champanhe francês); e do Rio 2016 (“OLIM(PIADA)”, escreveu um brasileiro anónimo numa vedação do Parque Olímpico, dando à luz um resumo provavelmente mais certeiro do que injusto); e, por último, de Tóquio 2020, um caso que se compreende melhor a partir da anterior edição nipónica, quase seis décadas antes e na mesma cidade: os Jogos de 1964.

 


(Centro Aquático de Londres)

 


Não parecem existir grandes dúvidas de que a boa vontade de cidadãos e contribuintes em relação à organização de Olimpíadas tem vindo a diminuir, uma disposição mental que provoca a redução do número de cidades candidatas e a multiplicação de acções de protesto contra quem se chega à frente. O escrutínio cada vez mais intenso e profissional, responsável por boa parte deste estado de espírito, levanta, contudo, problemas de comparação entre iniciativas recentes e iniciativas antigas, quando o exame das relações de custo-benefício por parte de jornalistas, investigadores ou activistas não era tão desconfiado e minucioso.

Salta, porém, à vista, mesmo aceitando que os japoneses de 1964 gostavam tanto de desperdiçar dinheiro como os seus descendentes de 2020, que antigamente o desperdiçavam melhor. A Arena Budokan e, principalmente, o Pavilhão Yoyogi, da autoria de Kenzo Tange, ambos intensivamente utilizados durante os últimos 60 anos, são obras emblemáticas da arquitectura do Japão, não sendo exagero atribuir à segunda o estatuto de prodígio estético e estrutural. Tange era um conhecedor profundo da tradição japonesa e também um entusiasta do Modernismo, pelo que abordou o equipamento olímpico com as mais avançadas tecnologias construtivas disponíveis (que lhe permitiram erguer o maior espaço coberto sem pilares jamais visto), inspirando-se todavia nos templos xintoístas para desenhar as suas linhas onduladas e arrojadíssimas coberturas, quase uma “pele” suspensa numa rede de cabos de aço.

 

(Pavilhão Yoyogi, Tóquio)

 

 

Também em Roma, quatro anos antes, e na Cidade do México, quatro anos depois, foi o mundo presenteado com vasta perícia e refinado gosto. Nas Américas, sob a orientação de Augusto Pérez Palacios, um arquitecto atento à importância de valorizar os edifícios através da articulação entre as várias disciplinas das belas-artes, o Estádio Olímpico em forma de cratera, precursor da pista de atletismo em tartan, espantou tanto o povo como as elites, homenageando a cultura e a geologia locais com a utilização de rochas vulcânicas como material de construção, numa inspirada referência que transformou os atletas em personagens quase literais do romance Debaixo do Vulcão de Malcolm Lowry. A cereja em cima do bolo, colocada pelo volumoso Diego Rivera, um artista que sem dúvida gostava de doces, consistiu num extraordinário relevo cuja imponente dimensão só não é maior devido à interrupção dos trabalhos por morte do muralista. Integrado na principal cidade universitária mexicana, o estádio, em conjunto com muitas outras obras do campus, foi devidamente reconhecido pela UNESCO, no ano de 2007, como Património da Humanidade. Quanto aos jogos romanos de 1960, destacou-se Pier Luigi Nervi com o seu domínio absoluto da arte do betão armado. O Palazzetto dello Sport não é o único filho olímpico do inovador e patenteado “Sistema Nervi”, mas é possivelmente o mais elegante, com a sua cúpula em infinitos losangos, assinatura de autor admirada e reconhecida em qualquer faculdade de engenharia ou arquitectura do mundo. Um Panteão do séc. XX, construído em tempo recorde graças ao revolucionário método de pré-fabricação, e com um custo total de 263 milhões de liras, mais ou menos o preço actual de um gelado numa esplanada da Piazza Navona. A vizinhança, essa, é complicada, constituída pelos edifícios desportivos que Enrico Del Debbio, Luigi Moretti e Costantino Costantini, sob as ordens de Mussolini, projectaram no Foro Italico para servir a candidatura da capital italiana à organização dos J.O. de 1940 (que nunca chegaram a ocorrer por causa da II Guerra Mundial). Utilizados 20 anos depois, a complicação não deriva da falta de beleza, grandeza ou funcionalidade, mas sim, pelo contrário, do excesso dessas características num ambiente de manifesta estética fascista. Perante as estátuas do Stadio dei Marmi ou a piscina coberta do Palazzo delle Terme, entre toneladas de carrara e travertino, não há maneira de escapar ao fascinating fascism, título do ensaio que Susan Sontag, pensando em artistas como Leni Riefenstahl, escreveu em 1975.

 

 


(Estádio Olímpico Universitário, Cidade do México)

 


(Palazzetto dello Sport, Roma)

 


(Stadio dei Marmi, Roma)

 


(Palazzo delle Terme, Roma)

 

 

Os Jogos da Austeridade

Traumatizados que estamos com as derivas perdulárias, em alguns casos na ordem das dezenas de milhares de milhões de dólares, facilmente esquecemos que estas, embora caracterizem boa parte dos 128 anos de Olimpíadas modernas, não os representam na totalidade. Em Helsínquia 52, por exemplo, parecem ter tido lugar uns Jogos modestos e eficientes, com o Estado a assegurar o financiamento de infra-estruturas de longo prazo (vias rápidas, ferrovias, um novo aeroporto, tudo ainda em pleno funcionamento) e a receita dos bilhetes e da publicidade a ser encaminhada para as restantes despesas. E o legado patrimonial, bem amparado na solidez intemporal do melhor funcionalismo vanguardista nórdico, está ainda de óptima saúde, não obstante a esbelta torre do Estádio Olímpico, durante décadas um símbolo da Finlândia independente e moderna, poder agora ser vista, à luz dos irritantes novos códigos de conduta, como uma manifestação de “masculinidade tóxica”.

 



 

Já em 1956, pelo contrário, a “toxicidade” dos machos tinha amplo apoio e carinho popular, razão pela qual um jogo de pólo aquático entre a invasora URSS e a invadida Hungria ficou para sempre na memória colectiva, comentado com respeito e admiração apesar de ter consistido numa manifestação de orgulho ferido vingado ao soco e ao pontapé. O “ringue” onde tudo se passou, e que era afinal uma piscina radicalmente original ao nível estético e estrutural, ainda lá está, reconhecido pelos australianos como uma herança valiosa das Olimpíadas de Melbourne, um equipamento em forma de pirâmide invertida cuja firmeza ficou definitivamente provada no tumulto com que os milhares de adeptos nas bancadas responderam ao “banho de sangue” proporcionado por soviéticos e húngaros. Ademais, construído no espírito do minimalismo de materiais, não pesou muito no bolso dos contribuintes, tendo sido mais caro, contudo, do que o somatório financeiro de todas as instalações desportivas inauguradas em Londres no ano de 1948: exactamente zero libras.

 


(Centro Aquático de Melbourne)

 

A cidade inglesa, na ressaca da guerra, optou por não construir nada de raiz, limitando-se a adaptar o edificado já existente, às vezes com um espírito de desenrascanço bem português, como quando foi colocada uma plataforma de madeira na piscina, que tinha 60 metros de comprimento, conseguindo assim encurtá-la para os 50 metros regulamentares. Não satisfeitos, assim que as provas de natação terminaram, com nítido domínio americano, encaixaram mais uns estrados em cima da água e deram início à competição de boxe, não à maneira do que viria a ser informalmente praticado em 1956 no centro aquático de Melbourne, mas rigorosamente de acordo com o previsto nos códigos desportivos.

Para a história ficou o epíteto de “Jogos da Austeridade” e Wembley, inaugurado em 1923 como Estádio do Império, serviu como sede do evento, tendo ainda aguentado mais meio século antes de se ver substituído por um dos expoentes da megalomania contemporânea, o The New Wembley, um dos campos da bola mais caros de sempre, com um custo de construção que daria para levantar do chão 10 estádios da Luz, e que ainda assim parece barato quando comparado com o rei do esbanjamento, o americano SoFi Stadium, orçamentado no valor de 35 (trinta-e-cinco!) recintos iguais ao utilizado pelo Benfica. Em princípio vamos vê-lo em L.A. 2028, mas, como se trata de um investimento privado, talvez não dê origem a demasiada contestação. Semelhante sossego também se sentiu em Pequim 2008, não por falta de estrondoso dispêndio público, mas eventualmente por falta de paciência das autoridades para níveis de ruído acima dos 30 decibéis de um murmúrio. O Estádio “Ninho de Pássaro”, esse, custou menos de 500 milhões de dólares, o que até parece pouco para essa soberba floresta de aço saída da imaginação da prestigiada dupla Herzog & de Meuron com a consultoria do artista Ai Weiwei, entretanto caído em desgraça junto do governo chinês, arriscando virar Wei AiAi, e que lamenta agora ter participado no projecto, actualmente um “elefante branco” com pouca utilidade prática, embora tão bonito e espectacular que se transformou numa atracção turística capaz de mobilizar milhões de visitantes por ano.

Foi talvez por falta de amor a essa espécie animal da família dos esbanjadoris maximus que a organização de Barcelona 92, um projecto maturado durante mais de meio século, aplicou todos os seus neurónios no desenvolvimento de um modelo diferente, desde essa altura utilizado pelo COI para responder aos múltiplos ataques de que é alvo por parte dos inúmeros críticos dos megaeventos em geral e das operações olímpicas em particular. Há certamente algum exagero nos elogios dirigidos à capital catalã, que também recorreu ao habitual esquema da suborçamentação prévia seguida de derrapagens póstumas, bem como a uma distribuição não equitativa dos benefícios do acontecimento. Ainda assim, tudo pesado e medido, parece ter sido de facto uma oportunidade devidamente aproveitada para melhorar a cidade no seu conjunto, da “criação” de uma imensa frente de praia à demolição de instalações industriais abandonadas, da renovação do sistema de transportes à limpeza de rios e construção de modernos sistemas de esgotos. Legado patrimonial relevante inaugurado propositadamente para as competições, talvez apenas o Palau Sant Jordi, uma arena multiúso desenhada pelo japonês Arata Isozaki, discípulo de Kenzo Tange e vencedor, tal como o seu mestre, do prémio Pritzker. Quanto ao resto da herança, sobressai a subida galopante de Barcelona nos rankings internacionais de turismo, para alegria de muitos e tristeza de outros tantos.

Considerados por várias personalidades como “os melhores de sempre”, os J.O. de 1992 não conseguiram reter esse título por muito tempo, não por culpa própria, sublinhe-se, mas devido à volatilidade do elogio, sempre pronto a voar, na companhia dos figurões olímpicos, para as edições seguintes. Foi assim que em Sydney, oito anos volvidos, Juan Antonio Samaranch, Presidente do COI, presenteou os australianos com o mesmo estribilho, num discurso que só foi bem recebido pelos locais porque estes o ouviram antes da conta de vários milhares de milhões de dólares ter chegado às suas casas na forma de impostos.

 

Pentatlo das Musas

Nas edições olímpicas da primeira metade do século XX, além dos prémios desportivos, eram também atribuídas medalhas a quem se destacava no mundo das artes, fosse na literatura e na música, fosse na pintura, escultura ou arquitectura. A manter-se essa extraordinária competição, Jørn Utzon, que desenhou a Ópera de Sydney, teria certamente ganho uma medalha de ouro na década de 70, quando essa obra foi inaugurada, isto apesar do seu custo astronómico, do atraso de 10 anos na construção, e da derrapagem orçamental de 1400%. Em certo sentido, podemos especular que não foi o despesismo olímpico que irritou os contribuintes da Austrália no ano 2000, mas sim o facto de esse despesismo, ao contrário do que aconteceu com a Ópera de Utzon, não se ter traduzido em algo que suscitasse espanto e deslumbramento por muito tempo, eventualmente para sempre. Nos campos charmosos das Inutilidades Magníficas, há pouco adubo disponível para o crescimento da exaustão fiscal.

A publicação em Portugal do livro Jogos de Poder, do investigador e ex-atleta olímpico Jules Boykoff (edição Zigurate, 2024), é apenas o mais recente capítulo de uma longa lista de denúncias sobre o problemático universo das Olimpíadas, nomeadamente ao nível dos muitos “elefantes brancos” deixados em herança às cidades organizadoras. Mas se agora tendemos – e bem! – a olhar com desconfiança o fenómeno dos Jogos, mais importante se torna sublinhar duas coisas: nem só de albinos se fez este reino de paquidermes, e de quando em quando, estranhamente ou talvez não, até esses dispendiosos exemplares da cor da neve conseguem a proeza de nos encantar.

 

                                                                            Sérgio Barreto Costa

 

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

 

quarta-feira, 24 de julho de 2024

São Cristóvão pela Europa (265).

 

 

 

A paróquia de São Cristóvão do Douro situa-se no concelho de Sabrosa. Dela se avista uma assombrosa vista sobre o chamado Vale do Pinhão em pleno Douro vinhateiro:

 


A igreja Matriz, muito remodelada ao longo dos tempos, está naturalmente repleta de imagens do nosso Santo:



Tem duas imagens no altar-mor sendo a central a mais antiga, curiosamente de pequeno formato, o que é pouco usual:


 

 


 Nas paredes duas telas. A primeira assinada por António Alves e datada de 1940. A segunda de autor anónimo:

 



Finalmente uma imagem num nicho, assinada por José Maria da Costa de Maximinos, Braga:


 

                                        Fotografias de 4 de Julho de 2024

                                                                José Liberato




segunda-feira, 8 de julho de 2024

São Cristóvão pela Europa (264).

 

 

Uma visita ao Norte de Portugal significa por vezes novos encontros com imagens de São Cristóvão.

Foi o que aconteceu em Tabuaço, município duriense pertencente ao distrito de Viseu e vizinho de Armamar que já aqui foi tratado.

A Igreja Matriz, dedicada a Nossa Senhora da Conceição, foi edificada no Século XVII, certamente a partir de uma igreja românica pré-existente. No seu interior uma imagem popular de São Cristóvão.

 



A Capela de Santa Bárbara, maneirista, construída no Século XVI, possui uma imagem recém-adquirida pela Comunidade.

 



 

Em local destacado, donde se avista a sede do concelho, uma estátua edificada em  2001, assinada por Anselmo Cardoso.

 



 

Em Santo Tirso localiza-se o famoso Mosteiro de São Bento que visitei várias vezes sem reconhecer uma imagem como sendo de São Cristóvão. Com efeito, o nosso Santo é representado de uma forma diferente. De pequena dimensão, frágil e imberbe. Na Capela de Santo Amaro.

Ao centro, Santo Amaro, à nossa esquerda, São Cristóvão. À nossa direita, Santa Rita.

A igreja é do Século XVII mas o mosteiro foi fundado antes da nacionalidade.

 




 

                         Fotografias de 4 de Julho de 2024.

                                                         José Liberato




domingo, 7 de julho de 2024

Para assinalar nove meses passados sobre o dia 7 de Outubro de 2023.

 


Os pogroms de 1819 foram o primeiro caso de violência anti-semita em larga escala na Alemanha e na Europa, depois da emancipação, preparada pelas Luzes e executada, em larga medida, por acção napoleónica. Data precisamente desse ano o grito hep-hep, acompanhado frequentemente de «espanquem os judeus até à morte» [schlagt die Juden tot]. A origem do grito está envolta em obscuridade e levou a que se aventassem hipóteses fantasiosas. Tendo aparecido no primeiro pogrom e difundindo-se a partir dele, concitou grande atenção, chegando a ser interpretado como uma espécie de santo-e-senha dos perseguidores cuja decifração permitiria compreender os acontecimentos. A solução mais acreditada consistia em ver no grito o acrónimo de Hierosolyma est perdita, um putativo canto ou grito de guerra dos cruzados no cerco de Jerusalém, ou até das legiões romanas no cerco da cidade mais de 1000 anos antes.  Uma tal teoria não tinha nenhuma sustentação – aliás, em estampas da época, a expressão aparece grafada Hepp, o que invalida desde logo uma tal conjectura. A hipótese mais verosímil atribui-lhe a origem num chamamento para reunir o gado, que terá sido adoptado nas arruaças anti-semitas. O grito generalizou-se a partir dos primeiros motins, que, durante esse ano, se alastraram a toda Alemanha, com especial virulência em Frankfurt, Hamburgo, Heidelberg, Leipzig, Dresden e Darmstadt, repercutindo-se inclusive na Dinamarca e na Polónia. A expressão manteve-se ao longo do século XIX e gravou-se na memória das comunidades perseguidas. Depois de 1945, não consta que tenha sido novamente ouvida.

Tudo leva a crer, no entanto, que já há um candidato para desempenhar o mesmo papel: you can’t hide. E não são só palavras


                                                    João Tiago Proença


quinta-feira, 27 de junho de 2024

Guardo esta carta fechada, voltei a pôr na folha lá dentro, encontrei um começo.

 

 

Por uso e costume, e manda o rigor de quem tem opiniões próprias, quem aprecia uma obra literária, não embandeira em arco com sinopses feitas por outros. Contudo, encontrei num jornal online de alunos de Comunicação Social da Universidade do Minho a referência ao livro A Palavra que Resta, de Stênio Gardel, Publicações D. Quixote, 2024, que passo a tomar como minha, como ponto de partida da leitura que pude fazer desta obra-prima:

A Palavra que Resta marca o romance inaugural de Stênio Gardel no universo literário, amplamente premiada, e mesmo em dois continentes.

A narrativa desenrola-se ao redor de uma antiga carta preservada por mais de meio século e jamais lida, que se torna a chave de uma jornada pessoal para Raimundo Gaudêncio. O homem carrega consigo não apenas a carta: há também a memória de um amor secreto e trancado na sua juventude. Analfabeto, Raimundo Gaudêncio nunca pôde decifrar o conteúdo daquela missiva, mas agora, com 71 anos, propõe-se aprender a ler, decidido a desvendar os segredos da carta e, com isso, curar a ferida emocional que o acompanha desde a juventude.

Nascido e criado na roça, Raimundo não frequentou a escola, pois desde cedo precisou de ajudar nas tarefas do campo. Há muito tempo, foi forçado a deixar a família e a sua vida no interior do Brasil para trás. Desse tempo, ele guarda apenas a carta que recebeu de Cícero, quando o amor proibido entre os dois foi descoberto. Cícero partiu sem deixar rasto, exceto aquela carta que Raimundo não sabe ler (pelo menos até agora).

Com uma personagem principal tão humana e real, o autor deixa-nos presos a esta história desde as primeiras linhas. A sua escrita livre, em fluxo, torna-se atordoante para o leitor, não por ser críptica, mas por representar com maestria o turbilhão de sentimentos de Gaudêncio. É notável a forma como Gardel consegue transmitir as mais profundas angústias e os demais confrontos enfrentados por Raimundo.

Mais do que uma história de amor entre duas pessoas do mesmo género, A Palavra que Resta não é só um romance arrebatador sobre a repressão, o preconceito homofóbico e a violência física ou psicológica. É, acima de tudo, uma história de superação e de coragem para ultrapassar todos estes desafios.”

A primeira tentação é a de procurar catalogar a obra: que este romance pertence ao género da literatura homoerótica, no fundo houve o amor de Raimundo e Cícero, de que resta uma carta, cujo conteúdo é um completo enigma para o leitor. Acontece que este tipo de carpintaria literária, independentemente do tema, tem uma longa história, é um expediente com um poder catalisador, mas que também se pode limitar a uma mera e ofuscante pirotecnia. O que não é o caso deste livro, os valores infundidos podem reclamar-se do preconceito sexual, mas no caso vertente todo este amor escondido é uma peça clássica que pode perfeitamente decorrer numa relação heterossexual. Penso que posicionar esta escrita é uma operação de valorizar a sinceridade desta escrita, um amor transcendente, uma fidelidade amorosa que jamais perde a esperança. Então, não é que a primeira obra-prima da literatura mundial, que terá saído do punho de Homero, não fala de uma Penélope que aguarda a chegada de Ulisses, afastando todos que a pretendem?

O que domina esta pulsão da escrita é o uso de uma simplicidade, de um casticismo, de um processo ficcional em que se sente desde a primeira página que estamos a cavalgar num mundo de sentimentos nobres sob a pena da exclusão, somos engolfados na ilusão de que aquela carta irá restituir a dois longevos o que a juventude não permitiu, como se o mais importante não fosse mesmo o esplendente da esperança. O velho Raimundo Gaudêncio guardou a carta toda a vida, então começa a história, os pais descobrem aquele amor adolescente, dar-se-á a separação entre amantes. E agora voltamos ao velho Raimundo Gaudêncio que está a aprender a ler para depois regressar a um amor proibido que Stênio Gardel conduz com uma delicadeza ímpar: “Nas peles nuas, a saliva dos beijos e o suor dos abraços irrigavam, dentro deles, raízes fortes, de agarrar as tripas e o que mais tivesse dentro. Até a alma. E as raízes faziam das veias seiva e cresciam pelos poros como galhos trepadeiros em direção ao sol. Quando se tocavam, se engarranchavam e viravam uma planta só, com flor que se abria sobre o peito. Papoula amarela de cálice cor de sangue.”

Saberemos quase tudo do itinerário de Raimundo, chegou mesmo a procurar sexo em relações sem compromisso, tudo efémero, encontros nos cinemas porno, o texto intercala a sua relação com Cícero, os ambientes familiares, como Raimundo sobreviveu no trabalho, como os anos passaram, como um dia procurou voltar à terra natal, como Raimundo e Suzzanný travesti vivem juntos, aconchegados, é uma velhice serena: “Quando a gente sai na rua é desse jeito, fica segurando minha mão, ainda hoje tem gente que estranha, homem velho de mão dada com travesti velha, uns cochichando de um lado, uns olhando atravessado de outro, deixa estranhar, um dia eles aprendem, eu aprendi, eles aprendem, mas tem que querer, querer sair da ignorância, é quase como eu querendo aprender a ler e escrever, tomei a decisão de ver o mundo de outro jeito, me sentir mais dentro dele, porque a ignorância faz é isso, exclui, isola, e não era isolado que eu vivia?” Não é que estes dois velhos não tenham arrofos, mas tudo acaba bem.

Há lugares míticos, de lembrança inextinguível, é o caso daquela cruz no rio onde Raimundo e Cícero se iriam encontrar, o que não aconteceu. A irmã de Raimundo, Marcinha, entregou-lhe a carta de Cícero, e o fulgor desta escrita parece um chamamento à coragem do leitor, prosa magnética:

“eu fui deixando, fugindo, ainda estou é fugindo, fugindo de mim, como fugi muito tempo, agora tento fugir do que vou ser depois da leitura da tua carta, e eu trouxe ela aqui pensando em jogar no rio, tanta vez que já pensei dar cabo desse papel mas nunca fui até ao fim, tenho mais uma chance agora, deixar o rio dissolver e afundar tuas palavras, já que não vou saber mais de tu mesmo, e seu eu aprender a ler e puder responder, eu não ia poder te mandar e tu nunca ia descobrir o que eu escrevi, se pelo menos soubesse onde tu está, se tá vivo ainda, me esperando…”

É o derradeiro flashback, Cícero a entregar a carta a Marcinha, podemos supor tudo o que ela contém, talvez Cícero tenha dito que capitulava, ia desaparecer para outro lugar, ter outro destino, aquela exclusão era asfixiante, viveriam sobre o peso da vergonha. É que a esperança nunca morre, Raimundo sabe ler, aprendeu a ler e a escrever, é nesta liberdade que ele encontrou um começo.

Uma obra-prima absoluta. 


                                                        Mário Beja Santos