segunda-feira, 28 de maio de 2018

Demasiado perfeita?




 
Circula na Internet uma imagem demasiado perfeita. Dizem ser de uma órfã iraquiana que desenhou a figura da mãe a giz, no chão, tirou os sapatos e adormeceu no regaço materno. De cima, o fotógrafo captou o momento, tudo sem uma falha. Longe de mim afirmar que a imagem não é pungente. Parece-me, no entanto, demasiado pungente. Nunca nos esqueçamos que, antes das fake news, a manipulação fotográfica já existia, e à grande. Mais, as imagens manipuladas são talvez a maior fake new do nosso tempo. Será o caso desta fotografia? Fica a dúvida, pois não consegui obter praticamente nenhuma informação sobre a imagem (o que, aliás, reforça a desconfiança e a dúvida). Para mais, vejam como circulam imagens em tudo semelhantes:



  


Ferrante, napolitana.

 
 

 
A Nápoles de Ferrante. Um fotoensaio do The Guardian, escrito por Sophia Seymour, que fundou a empresa Looking for Lila, percursos pela cidade da amiga genial. Também do maior interesse, este artigo da The New York Review of Books.
 
1964
1955
 
 
 
E agora, para os fãs fanáticos, a adaptação da tetralogia ao écran, com actrizes escolhidas, seleccionadas e orientadas por Elena, a misteriosa.
 


 
 
 
 

sábado, 26 de maio de 2018

Ritos de passagem da sociedade do espectáculo.

 
 
Martin Parr 
 
 
 
Eis um rito de passagem da sociedade ocidental contemporânea:
 
Um grupo de doze pessoas de ambos os sexos, quase sempre jovens, é escolhido como representante da comunidade social com as mesmas características e, por extensão, toda a nação, numa prova de transição em que têm de se exibir de forma a tornarem-se conhecidos de toda a sociedade que assiste. A prova permite aos noviços passarem a fazer parte da casta dos privilegiados (os que, mesmo sem especialização ou ascendência nobre, são amados pela sociedade e alimentados por ela). 
 
Os candidatos à passagem, escolhidos de entre a massa anónima, começam por ser apresentados à sociedade; são impedidos de se fazer acompanhar de elementos pessoais e a sua identidade é substituída por outra forma de anonímia, reduzida ao seu nome de baptismo ou diminutivo, o que os torna mais representativos, ou símbolos, de partes da sociedade, pois deixam de ser indivíduos específicos, se bem que anónimos. Nenhum indivíduo pode fazer a prova duas vezes, pois apenas a primeira vez conta.
 
A prova a que o grupo é submetido inclui a separação das famílias e do resto da sociedade, momento difícil em que os noviços se despedem dos seus entes queridos no limiar do território pré-destinado em que serão postos à prova. Esta área espacial e simbólica de transição está totalmente fechada a todas as pessoas do mundo exterior, excepto aquelas que, em segredo, participam na organização e prossecução das cerimónias e das provas, pessoas estas que a sociedade desconhece mas geralmente aceita.  Se algum dos noviços sair do território, não poderá voltar a tocar o seu chão, tal como os outros mortais, podendo, porém, qual deus ex machina, descer dos céus e contactar os noviços. O território é, portanto, considerado chão sagrado durante a prova. O território tem a forma de casa, lugar de inúmeros rituais. A casa é diferente das casas do mundo exterior. Ela é tabu para o mundo profano que assiste à prova. Os iniciados em prova não podem passar da porta principal do território para fora, sob pena de serem expulsos. A porta é instituída como limiar simbólico entre o território da iniciação e o mundo exterior.
 
Começa então o verdadeiro período de teste, período de transição. Depois dum rápido reconhecimento do território, a prova prolonga-se depois por um longo período de 120 dias. Os candidatos são então submetidos,  sob apertada vigilância da sociedade, a várias provas, mas a prova fundamental é apenas comportamental e de representação do seu próprio personagem.
 
Durante a prova, não podem de maneira nenhuma ter contacto com o mundo excepto através dum alto sacerdote ou director de cerimónias; nada sabem do que se passa com as suas famílias nem no resto do mundo; têm de mostrar que a sua personalidade se molda e agrada a todos; têm de saber gerir a sua vida íntima de forma a que não choque o grupo e a sociedade que os observa mas, ao mesmo tempo, têm de chamar a atenção sobre si mesmos e, se possível, ultrapassarem as expectativas.
 
O isolamento é importante. Sem o isolamento, os noviços não estariam postos à prova nem poderiam simbolizar todo o seu grupo e a sociedade. Durante o período de transição, os noviços estão em clausura.  São humilhados, mas, ao mesmo tempo, tratados como privilegiados, precisamente por estarem fora da sociedade mas postos à prova por ela.
 
Assim, enquanto se encontram no território, os candidatos não precisam de roubar ou pilhar os bens necessários à sobrevivência porque a comida e outros bens de consumo aparecem regularmente numa região intermédia do território, por uma porta não consagrada, oferecidos pela sociedade. São oferendas.  Os noviços não têm de trabalhar, apenas de conviver, transaccionar palavras, gestos e afectos e cumprir tarefas que mostrem a sua capacidade de viver em grupo, de servir a sociedade e de defender a dignidade da sua vida privada quando a ela regressarem.  Em parte, eles têm já de simular ― de aprender a viver ― a suposta vida de ócio dos privilegiados da sociedade.
 
Os noviços devem obediência ao poder oculto da prova e obedecem naturalmente. Entre si, o comportamento esperado é o da igualdade e da camaradagem, sendo os conflitos existentes os que resultam da oposição entre a individualidade e a incorporação no grupo.
 
Os candidatos têm de mostrar o seu corpo. A nudez é importante enquanto se encontram no território pois ela associa-se a três dos valores máximos do grupo social em que se inserem: a juventude, o sexo e a sobrevivência da sociedade. Desta forma, a organização do território, com a mistura dos rapazes e das raparigas, proporciona a concretização de encontros amorosos e sexuais. A nudez é voluntária ou (quase) provocada, pois é preciso realizar-se o reconhecimento de que cada candidato da prova é realmente um homem ou uma mulher e capaz de realizar o acto da procriação.  Através dos contactos semanais com o director de cerimónias, os jovens são espicaçados a desenvolverem relações amorosas e sexuais. O sacerdote fomenta os namoros, ou esponsais. Os comportamentos de cortejamento e sexuais podem ser mais livres durante a prova, aceitando-os a sociedade facilmente sem que os envolvidos sejam por isso condenados. A promiscuidade seria condenada, mas não a exibição pública do acto sexual durante a prova. Aqueles que chegam a isso são de alguma forma premiados pela sociedade em estados seguintes. Em resumo, os comportamentos afectivos e sexuais podem ser diferentes por se tratar de um período transitório.
 
 
Martin Parr
 
Tal como a nudez forçada, pode haver outros momentos de humilhação, pois o noviço «deve ser uma tábula rasa, uma lousa em branco, na qual se inscreve o conhecimento e a sabedoria do grupo, nos aspectos pertinentes ao novo 'status'. Os ordálios e humilhações, com frequência de carácter grosseiramente fisiológico, a que os neófitos são submetidos, representam em parte, a têmpera da sua essência, a fim de prepará-los para enfrentar as novas responsabilidades e refreá-los de antemão, para não abusarem de seus novos privilégios. É preciso mostrar-lhes que, por si mesmos, são barro ou pó, simples matéria, cuja forma lhes é impressa pela sociedade».[1] Estas provas de humilhação coexistem, portanto, com o acarinhamento dos iniciados enquanto futuros prováveis privilegiados. Os dois contrários não são considerados contraditórios, pois fazem parte da transição.
 
O sacerdote não deve intervir na vida interna do território nem deve tomar partido por nenhum dos membros do grupo. Estes, por seu lado, não devem tomar atitudes anti-sociais, por exemplo violentas, sob risco de expulsão imediata do território.
 
Semanalmente, o mundo exterior contacta com os noviços, individualmente. Cada candidato é chamado a uma zona isolada do território, um lugar considerado de recolhimento e de contacto com o deus ex machina, a sociedade que observa, e tem de responder a todas as questões do director de cerimónias, representante da sociedade. À distância, numa assembleia também com características de lugar de culto, a sociedade assiste, estando presentes as famílias dos jovens junto do sacerdote.
 
Nestas cerimónias semanais, a prova complica-se. De duas em duas semanas, os candidatos têm de escolher quem acham que deveria ser submetido à expulsão do território. Trata-se de uma decisão difícil, pois têm de tomar em conta as personalidades próprias dos seus companheiros e, em simultâneo, o seu comportamento em grupo. Têm também de considerar a sua própria posição em relação com os outros noviços. Cabe depois à sociedade escolher qual dos mais votados pelos candidatos é expulso, o que sucede na semana seguinte, no mesmo local onde os representantes da família e da sociedade estão reunidos em assembleia sob a chefia do sacerdote.
 

 
 
 
A expulsão não é um momento de humilhação. Pelo contrário, o candidato banido do território é recebido em festa e incorpora-se, de novo, na família, na assembleia e na sociedade. Aquele que, por sua livre iniciativa, deixar de participar nas assembleias seguintes, é ostracizado pelo sacerdote, pela própria assembleia e pela sociedade.
 
As expulsões prosseguem até ficarem apenas quatro e depois três dos noviços. Nessa altura, a prova apressa-se pois os candidatos que restam já não poderiam simular o comportamento em sociedade dentro do território.
 
A prova termina com a escolha pela sociedade de um vencedor, o qual é acumulado de prémios que toda a sociedade deseja, como automóveis e viagens; na realidade, todos os noviços expulsos, à excepção dos que se afastam voluntariamente, tinham permanecido integrados, através, desde logo, da sua presença nas assembleias semanais.
 
Esta é, em suma, a descrição de um rito de passagem que todos os membros das sociedades ocidentais contemporâneas conhecem: o Big Brother. O impacto deste programa nas sociedades em que foi apresentado revelou que o Big Brother foi ou é muito mais do que um programa de televisão, mais do que um «jogo de realidade», mais do que um «programa de realidade». O Big Brother disse respeito a toda a sociedade porque se organizou, se instituiu por completo do primeiro ao último instante como um rito de passagem.
 
Os ritos de passagem foram teorizados pelo etnólogo francês, filho de pai holandês, Charles Arnold van Gennep (1873-1957) na sua obra seminal Les Rites de Passage, publicada em 1909. Neste clássico da antropologia social, van Gennep classificou os ritos, ou actos mágico-religiosos (muitos sem significação religiosa), verificou a sua co-relação e a ordem em que eram realizados. O autor não se referia apenas aos ritos das «sociedades primitivas», mas também aos que se realizavam nas «sociedades desenvolvidas» do Ocidente ou da Ásia. Aliás, van Gennep encorajou o estudo etnográfico do folclore europeu.
 
No seu clássico, van Gennep define os ritos de passagem como os rituais associados a «uma passagem de uma situação a outra ou de um mundo cósmico ou social para outro»: mudança de estatuto, ou de estado, como por exemplo a passagem da juventude à idade adulta. Os ritos de passagem são de três espécies: «ritos de separação, ritos de transição e ritos de incorporação». Os ritos de separação «são proeminentes em cerimónias funerárias, os ritos de incorporação em casamentos. Os ritos de transição podem ter uma parte importante, por exemplo, na gravidez, nos esponsais e na iniciação». Van Gennep chama também aos três tipos «ritos pré-liminares (ritos de separação), ritos liminares (ritos de transição) e ritos pós-liminares (ritos de incorporação)», sendo o limiar ou liminar o estádio ritual onde se processa a mudança.[2]
 
Defendo que o Big Brother se constitui como um rito de passagem e, entre deles, como um rito de transição. A transição inclui também ritos de separação e de incorporação, absolutamente necessários para criar o ambiente mágico e construir a solidez social do programa de televisão, elevando-o muito acima do seu estatuto de objecto lúdico transmitido num mass media. A descrição do Big Brother que realizei na parte inicial deste artigo permite inscrevê-lo nos ritos de passagem tal como van Gennep o faz no seu clássico.
 
 

 
 
 
Os momentos principais da separação, transição e incorporação estão aí descritos, não sendo necessário descrevê-los em pormenor. A versão francesa do programa, com o nome Lof Story, e outros programas do mesmo tipo, apresentados sob os nomes de género reality shows ou reality games, como Masterplan, Bar da TV, Acorrentados, Academia de Estrelas, e Operação Triunfo, apresentam semelhanças profundas com o Big Brother nas características de ritos de passagem. Todos eles adaptam a estrutura e significados dos actos mágicos da sociedade ao género mediático televisivo, acrescentando-lhes o aspecto lúdico e humorístico duma sociedade hedonista, other-directed, e muito correlacionada com a televisão.
 
Todos eles têm uma cerimónia inicial de separação, todos têm as provas de iniciação durante o rito de transição, todos têm rituais de expulsão e de incorporação dos concorrentes, todos fazem do apresentador um sacerdote ou «director de cerimónias»  (a expressão é de van Gennep).
 
De que passagem trata este rito Big Brother? Defendo que o Big Brother é um rito de transição do anonimato e da pobreza para a aristocracia do «ser-se conhecido» ou do estrelato nos mass media da sociedade do espectáculo contemporânea. Em resumo, o Big Brother é um rito de passagem da sociedade do espectáculo, é um rito de passagem que garante a iniciação no sociedade do espectáculo.
 
O facto de os concorrentes serem quase sempre jovens e disponíveis, bem como outras características do jogo, poderiam levar a confundir o programa com um rito de iniciação na idade adulta, com uma transição (namoro, esponsais) para a formação da família. Todavia, a sociedade tem aceite concorrentes menos jovens no lote de noviços e até candidatos casados. Além disso, o programa mantém a actividade sexual facultativa, o que não poderia deixar de ser nas sociedades de direito ocidentais. Na verdade, a sociedade não precisa de um rito público de iniciação desse tipo e, provavelmente, não o toleraria. O Big Brother não é, portanto, uma iniciação da idade adulta, não se relaciona com a «puberdade social» de que fala van Gennep, pois essa passagem deixou de ser ritualizada colectivamente no Ocidente, por ser desnecessário. Quando muito, o Big Brother representa uma «juventude social», não biológica, dada a forma como a ideologia da juventude se confunde com a sociedade do espectáculo.
 
A principal transição simbolizada e concretizada por este rito televisivo é, portanto, outra. Os concorrentes prestam-se a uma série de provas e de situações normalmente consideradas como humilhações (começando pela devassa da sua vida privada e pela exibição pública de toda a sua vida íntima incluindo a corporal, passando pela obrigatoriedade de exibição da nudez e terminando na exibição da sua actividade sexual) porque pretendem atravessar um limiar que lhes será extremamente benéfico: deixar de ser pessoas anónimas, despossuídas de riqueza e de estatuto social, e passar a ser pessoas «conhecidas», pessoas com estatuto social reconhecido pelos seus concidadãos. No passado, tal só era possível ― sem violência e sem trabalho produtivo ― através do casamento dum(a) pobre num escalão social superior. Na sociedade do espectáculo[3], ser-se conhecido é um estatuto altamente valorizado, pois significa a garantia de um modo de vida ou, pelo menos, do abrir-se de portas para inúmeras oportunidades de trabalho e para rendimentos acrescidos directa ou indirectamente com o aparecimento de oportunidades de negócio, além da suposta afirmação de personalidade que se lhe atribui errada mas automaticamente. 

 
 
A passagem do anonimato ao reconhecimento social e público é celebrado num espectáculo ou cerimónia (a que acima chamei assembleia) após a escolha dos eleitos por votação via telefone ou internet, não controlada pela sociedade mas por ela considerada como representativa de si mesma. O pós-Big Brother permitiu verificar que o jogo ou concurso Big Brother não tem apenas um único vencedor, o escolhido pelos votantes, mas vários ― nisso revelando, uma vez mais, o seu carácter de rito de passagem. De facto, a primeira edição do Big Brother criou vários «conhecidos» e não apenas o vencedor. Quatro concorrentes foram incorporados na aristocracia dos «conhecidos» ou colunáveis por terem constituído dois casais legítimos: o significado do programa foi, assim, acrescentado com os ritos de incorporação dos casamentos em programas posteriores, que legitimaram a própria instituição do programa enquanto rito de passagem. Uma outra concorrente, por ter alimentado um relacionamento com o vencedor, foi igualmente mantida no grupo dos «vencedores» sociais para além das regras do jogo, tendo participado num outro programa do mesmo canal, a TVI.
 
A passagem do anonimato e da pobreza (sendo aqui a pobreza não apenas económica mas a que se identifica com um anonimato social) à aristocracia da sociedade do espectáculo está ainda mais visível nos dois jogos lançados pela mesma produtora em 2001-2002, Academia de Estrelas, já apresentado em Portugal, e Operação Triunfo, já apresentado em Espanha. Neles, o objectivo é ― já não indirectamente, como no Big Brother ― a passagem directa ao estrelato do espectáculo (música pop, representação, dança, mímica, etc). O primeiro prémio da Operação Triunfo, a consagração como representante do «país» no concurso de canções da Eurovisão, significa de facto a concretização total, consumada, do objectivo do rito de passagem. Já num anterior concurso da mesma empresa[4], Chuva de Estrelas, estava presente a mesma estratégia de assegurar a passagem ao estrelato, através da promessa de gravação de um CD.
 
 

 
 
 
 
Cabe perguntar por que razão a sociedade não identificou o Big Brother e outros reality shows ou reality games como ritos de passagem. Julgo que a sociedade não identifica ritos de passagem, apenas tem ritos de passagem. A sociedade não é consciente de que os ritos de passagem são ritos de passagem, mas vive-os como tal ― ou participa na sua representação como tal.
 
Um outro aspecto contribuiu até agora para mascarar essa característica vital deste tipo de programas: o facto de o programa ser de tal forma autónomo que parece desligado de fenómenos sociais tão enraizados como os ritos de passagem. Van Gennep chamava a atenção para este facto ao referir-se a «alguns padrões cerimoniais em que o período de transição é suficientemente elaborado para constituir um estado independente». Quer dizer, o rito ― neste caso o programa de televisão ― vale por si: «todas estas cerimónias têm os seus próprios objectivos».[5] Desta forma, «onde a transição possui uma autonomia própria» constitui-se «um sistema secundário inserido no todo cerimonial.»[6] A cerimónia (o programa) transforma-se num estado.
 
Este aspecto foi acentuado pelo antropólogo britânico Victor Turner (1920-1983). Na sua obra The Ritual Process, de 1969, ele considerou o período liminar dos ritos de passagem como uma entidade com autonomia suficiente para se constituir em formação social, caso das comunidades utópicas, como a dos hippies nos Estados Unidos nos anos '60, ou de ordens religiosas como os franciscanos. Essa transição, a liminaridade, acentua-se nas sociedades complexas.[7] Para Turner, o ritual deve ser visto mais como um processo do que um produto, o que é, para Horace Newcomb e Paul M. Hirsch, uma «noção raramente aplicada ao estudo da televisão e, no entanto, crucial para uma compreensão adequada deste medium.»[8]
 
Segundo Turner, a liminaridade tem propriedades diferentes, ou mesmo contrárias, às do sistema estrutural habitual da sociedade, que se podem ordenar em oposições ou discriminações binárias.[9] À lista, na ordem apresentada por Turner, acrescentou-se aqui o itálico para realçar as oposições que mais se manifestam nos reality shows com características de liminaridade:
 
Transição/estado
Totalidade/parcialidade
Homogeneidade/heterogeneidade
Communitas/estrutura
Igualdade/desigualdade
Anonimato/sistemas de nomenclatura
Ausência de propriedade/propriedade
Ausência de estatuto/estatuto
Nudez ou uniforme/distinções de roupa
Continência sexual/sexualidade
Minimização de distinções sexuais/maximização de distinções sexuais
Ausência de categorias sociais/categorias sociais
Humildade/justo orgulho de posição
Desatenção à aparência pessoal/cuidados com a aparência pessoal
Nenhuma distinção de riqueza/distinções de riqueza
Altruísmo/egoísmo
Obediência total/obediência apenas à categoria superior
Sagrado/secularidade
Instrução sagrada/conhecimento técnico
Silêncio/discurso
Suspensão de direitos e obrigações de família/direitos e obrigações de família
Referência contínua a poderes místicos/referência intermitente a poderes místicos
Tolice/sagacidade
 
A estas oposições podemos acrescentar a seguinte:
 
O presente, o agora/enraizamento no passado e extensão no futuro[10]
 
 

 
 
 
O que desde logo distingue os reality shows como o Big Brother das sociedades de liminaridade  descritas por Turner é precisamente o facto de, ao contrário dos noviços que pretendem entrar numa sociedade igualitária, os candidatos dos concursos se submeterem às características do período de transição precisamente para poderem deixá-las e melhorarem a sua posição social no exterior, por exemplo quanto à ausência de propriedade e de distinções de riqueza. A própria evolução do jogo se destina a fazer desaparecer o anonimato inicial dos noviços e a sua igualdade ritual, singularizando-os nas suas características próprias, aquelas que farão a sociedade exprimir-se sobre a sua presença ou expulsão do território ritual. O Big Brother é, assim um rito de passagem que acentua o desejo de afirmação do indivíduo na sociedade capitalista, de integração como vencedor, o que é o avesso das communitas descritas por Turner.
 
O que atrai da teoria de Turner neste contexto é, pois, a valorização da autonomia do período de transição, o que reforça a qualificação dos reality shows, pelo menos de alguns deles, como ritos de transição. Os reality shows são precisamente períodos de transição inventados para existirem como tal. E, o que é importante, permitem à sociedade que neles se revê sair de si e debater, defender ou pôr em causa alguns dos seus valores comuns, incorporando depois os resultados desse debate. O rito funciona assim, tal como a arte, como uma metalinguagem, «uma forma de compreendermos quem e o que somos, como se ajustam os valores e as atitudes, como os significados se modificam.»[11]
 
A essência da liminaridade, escreveu Turner, «encontra-se na sua libertação dos constrangimentos normais, tornando possível a desconstrução das construções ‘desinteressantes’ do senso comum, o ‘sem sentido da vida quotidiana’ (...) em unidades culturais que podem então ser reconstruídas em maneiras novas, algumas delas bizarras ao ponto da monstruosidade. (...)A liminaridade é o domínio do ‘interessante’ ou do ‘senso incomum’.»[12]
 
É também importante para este argumento a relação que Turner estabelece entre a liminaridade e os extractos sociais inferiores da sociedade. Enquanto rito de passagem, o Big Brother, com o seu período longo de liminaridade (quatro meses na sociedade contemporânea é um período longo), criado para permitir a transição a um estado social superior, dada a identificação correcta de «ser-se conhecido» com oportunidades de acumulação de riqueza, destina-se aos despossuídos de riqueza e de posição social. Nisso, também, se assemelha a manifestações de liminaridade a que Victor Turner chama «'os poderes dos fracos' ou, por outras palavras, os atributos sagrados em permanência ou transitoriamente do baixo estatuto ou posição.»[13] O Big Brother, bem como os outros ritos televisivos de transição para a aristocracia da sociedade do espectáculo, é um programa para os novos pobres, os pobres da sociedade do espectáculo: os despossuídos de dinheiro, de direito à palavra e de imagem publicamente partilhada e admirada. Faz parte do rito que toda a sociedade dê atenção aos iniciados marcados pelo seu baixo estatuto ou posição.
 
A chamada de atenção de van Gennep para a autonomia das cerimónias rituais e o desenvolvimento que Victor Turner atribuiu a esse período intermédio permitem enquadrar a importância que o Big Brother e outros reality shows ou reality games adquirem, aparentemente surgindo do nada e aparentemente desligados da realidade social profunda.
 
Mas, afinal, não poderia deixar de ser assim com o Big Brother porque ele é um programa de televisão e porque lhe cabia instituir o rito de passagem, instituir a transição, ou a sua representação, transição que a sociedade parecia exigir para dar aos seus filhos anónimos a possibilidade de acederem ao mundo maravilhoso da aristocracia da sociedade do espectáculo.
 
Julho de 2002
 
 
Eduardo Cintra Torres
 
 


[1] Turner, Victor, The Ritual Process (1969), Nova York, Ed. Aldine de Gruyter, 1995, p.103
 
[2] Van Gennep, Arnold, The Rites of Passage (1909), Londres, Routledge, 1970, pp.10-11.
 
[3] Utilizo a expressão «sociedade do espectáculo» neste e noutros artigos com o significado que lhe deu Guy Debord em La Société du spectacle (1967), Paris, Gallimard, 1992 e em Commentaires sur la société du spectacle (1988), Paris, Gallimard, 1992.
 
[4] Seria interessante investigar as relações entre os vários programas da Endemol, criados por ou sob a orientação de Jon de Mol, e estabelecer os contactos entre si e entre cada um dos ritos e os ritos de passagem tal como classificados por van Gennep.
[5] Op. cit., p.11
[6] Ibidem, p.185. Mais à frente, van Gennep reafirma ainda um ponto até então ignorado: «a existência de períodos transitórios que às vezes adquirem uma certa autonomia.» (p.191)
[7] Numa sociedade complexa, o Big Brother dificilmente se poderia constituir como fenómeno da sociedade inteira, como seria uma rito de passagem numa «sociedade primitiva», mas apresenta-se como tal na linguagem e na estrutura, sendo tomado como tal por uma grande parte da sociedade. É, aliás, a fundamentação antropológica do programa (chamemos-lhe assim) que explica a sua solução estrutural e, também, a sua solução estética.
[8] Newcomb, Horace, e Hirsch, Paul M., «Television as a Cultural Forum», in Newcomb, Horace (ed.), Television: the Critical View (2000), New York, Oxford University Press, 6ª ed., p.563.
[9] Turner, Victor, The Ritual Process (1969), Nova York, Ed. Aldine de Gruyter, 1995, p.106.
[10] Baseio-me em Turner, p.112.
[11] Newcomb e Hirsch, artigo citado, p.564.
[12] Turner, Victor, «Process, System, and Symbol: a New Anthropological Synthesis», Daedalus (Summer 1977), p.68, in Newcomb e Hirsch, artigo citado, p.563.
[13] Op. cit., p.109.