quinta-feira, 15 de maio de 2025

Um ovni delicioso.




Será uma pena, deveras pena, que as pessoas não comprem e não leiam este livro julgando que se trata de uma biografia de Julio Iglesias. Porque o não é, sendo-o. Mas já lá vamos.

Como será uma pena que as pessoas não comprem e não leiam este livro por não gostarem de Julio Iglesias, por o acharem ou “foleiro” ou machista ou narcisista ou, pior ainda, vazio e desinteressante.

Esta não é uma biografia para os amantes de Julio Iglesias, ainda que também o seja ou possa ser. Para isso, no entanto, existem obras mais volumosas e informadas. Nenhuma delas, porém, com a qualidade literária excepcional, absolutamente excepcional, deste livro.

A ironia é um caminho à beira do precipício e quem a pratica está sempre em risco de cair no ofensivo escusado ou no engraçadismo balofo. É por isso que este livro é uma obra literária notável, a vários e muitos títulos. Por ter um estilo original e fazer uma abordagem originalíssima a uma vida alheia, uma aproximação que não encontramos em lugar algum, nem nas melhores biografias brasileiras ou anglo-saxónicas. Acima de tudo, por saber conter-se nos limites da graça suave, mordaz q.b., do humor inteligente, talentosíssimo. Nada há, porém, de ficção ou inventanço ou, praga dos nossos dias, da autoficção enganosa, desonesta nos propósitos e nas intenções. Tudo aqui é factual e verificado, não vá o diabo (ou o Julio) tecê-las. Em simultâneo, este não é um ensaio académico maçudo e chato, à la française, sobre Julio Iglesias e o seu mito.

O que é este livro, então? Um ovni delicioso. Não é biografia exaustiva, daquelas que contam tudo e a par e passo. Não é essai intelectual. Não é um exercício de ficção ou pseudoficção. É, talvez, chamemos-lhe assim, uma «narrativa biográfica», de uma subtileza tremenda, que nos leva até Julio e às suas muitas e desbragadas intimidades, e que nos descreve, como poucos, a Espanha do tardofranquismo e os desmandos da corrupção em democracia.  Percebemos como ali tudo é em grande e à grande, como somos uma versão em miniatura do país vizinho, na violência e no fervor das paixões, na dimensão planetária das suas estrelas da pop, na escala dos muitos escândalos, na ligação às Américas do Sul e do Norte, esta conquistada por Julio com muito engenho e arte.

Leiam este livro para além ou apesar de Julio (mas também, se quiserem, por causa de Julio e das nostalgias). Leiam-no como um exercício e uma lição de escrita. Leiam-no pelo prazer de ler, aqui plasmado em cada linha, em cada metáfora inesperada, em cada imagem desconcertante ( o Dr. Iglesias, pai, maravilhoso, espanholíssimo!).   

Magnífico, imperdível, e o mais que se diga.

 

                                                                                        António Araújo 

 



domingo, 11 de maio de 2025

Ensaios Policiais, de João Eloy.

 








aqui falei das Memórias de João Eloy, primorosamente preparadas pelos seus descendentes, Maria Madalena Eloy e Pedro Eloy.

          Este livro é, por assim dizer, a continuação do anterior, mantendo-se o seu óbvio e manifesto interesse histórico.

Diante de nós desfila a criminalidade lisboeta dos tempos da República, histórias de homicidas e curandeiros, de pornografia, de prostituição infantil, da perseguição aos homossexuais, então chamados «invertidos». E um capítulo fabuloso sobre a prática da «empenhoca», ou seja, da cunha, matéria também versada, por exemplo, em Memórias de um Chefe de Gabinete, de Tomás da Fonseca.

          É tempo, é mais do que tempo, de diversos investigadores se juntarem para fazer uma história do crime na Belle Époque portuguesa, prosseguindo depois pelos anos 1920 e pelo Estado Novo adentro. Há muita gente com trabalho feito, Maria João Vaz, Diego Palacios Cerezales, Gonçalo Rocha Gonçalves, Luís Bigotte Chorão, Tiago Pires Marques, Leonor Sá, Paulo Guinote, just to name a few. Só falta uma instituição universitária ou um editor esclarecido para concretizar este projecto, que sem dúvida teria enorme êxito junto do grande público.

          Até lá, fiquemos com estes Ensaios de João Eloy, imprescindíveis para reconstruir as luzes e as sombras das nossas polícias, dos nossos ladrões e, no fundo, do que fomos e, em parte, em boa parte, ainda somos.


                                                                                                António Araújo


 

Manuel Artesano (1949-2025): o bobo do bombo.

 


https://www.publico.pt/2025/05/11/desporto/noticia/manuel-caceres-artesano-19492025-bobo-bombo-2132154





Fajã Grande, ilha das Flores.

 

                                                           Fotografias de Onésimo Teotónio de Almeida






quarta-feira, 7 de maio de 2025

No nosso império com pés de barro ninguém voltou da guerra inteiro.

 


 

O que empolga na cadência deste romance é a estuante singeleza pontuada pela multiplicidade de ritmos literários, engrena-se numa prosódia que nos faz lembrar o que de melhor se escreveu no neorrealismo e na espiral da escrita dominam marcações expressionistas e até uma poderosa metáfora em desacerto com a cronologia da narrativa, pois aparece inaugurada a maior ponte suspensa da Europa, ali no vale de Alcântara e a sair em Almada, e segue-se uma convulsão que, bem vistas as coisas, é o anúncio de uma revolução com algumas analogias com a que tivemos em abril de 1974. Este primeiro livro de Nuno Duarte, coroado pelo Prémio Leya 2024, mais do que o despertar de um escritor é uma apoteose ao fervor da leitura.

Tudo se vai passar na década de 1960, os protagonistas nem chegam à categoria de gente remediada. Victor Tirapicos teve dois anos na prisão porque roubou havendo fome, saiu de um lugar de Sintra e veio para a Alcântara, para o Pátio do Cabrinha, é acolhido por um tio sapateiro, alguém que faz as chuteiras do Atlético Clube de Portugal, o Victor dar-se-á bem com o tio Artur e a tia Ema. Ali no Pátio vive gente que tem nome, tal como a Cesaltina e a Cordália, o Manuel Cheirinho, o Ângelo Barraquinho, o Rui Folha e dentre em breve uma rapariga muda que trabalha na fábrica do chocolate Regina. Victor vem à procura de trabalho, vai ser construída a ponte sobre o Tejo, os norte-americanos estarão profundamente envolvidos, trarão 70 mil toneladas de aço e tecnologia de ponta. Já estamos com a guerra colonial em Angola, far-se-á a ponte e nessa altura haverá três frentes da guerra. Victor tem muito enlevo no seu irmão Quim, tudo fará para que o mano chegue à universidade. As relações com o pai ficaram estragadas, não perdoou ao filho aquele roubo de batatas.

Entra em cena a menina dos chocolates Regina, chama-se Dália, é muda, comunica com o que escreve numa pequena sebenta. O Victor trouxe a experiência de anos numa serralharia da Abrunheira, será admitido nos trabalhos da ponte. A atração Dália-Victor é rápida e pujante, circulamos por tudo quanto é Pátio do Cabrinha, vai crescendo o clímax para os trabalhos da construção, e haverá momentos em que Nuno Duarte nos consegue assombrar com a saga de tal empreendimento, escrevendo coisas como esta:

“A grandiosa obra entrou numa fase decisiva, todos os dias os cabos principais eram esticados de margem a margem, desenrolados em bobinas com sem quilómetros de fio de uma ancoragem à outra, aos quatro fios de cada vez, a roda a levá-los para um lado e depois a voltar, a trazer outros quatro, como se fosse uma roca de fiar gigante, e a deixá-los no local certo onde eram postos junto dos restantes por operários como o Victor e como o Vicente e como o Ivo e como o Tito, lá em cima no passadiço onde o João quase ficara sem mãos. Mais de duzentos operários por turno, espalhados ao longo do cabo, ao longo da ponte sem nome que se construía sobre o rio Tejo. Dois turnos por dia, dezasseis horas a levar e a trazer fios que, todos juntos, formavam os cabos da ponte, em pouco mais de três meses estavam os milhões de fios unidos, a máquina humana que construía a ponte estava afinada como um instrumento de precisão, os muitos homens que eram os seus componentes, operários, técnicos e engenheiros funcionavam com a cadência de um metrónomo. E, lá em cima, o Victor mirava o mundo.”

Há taberna e há bêbedos, a PIDE anda atenta, irá buscar o Rui Folha. As obras da ponte atraem meio mundo, os norte-americanos pagavam bem, naquele final de 1962 já ali trabalhavam 1500 homens, ficaremos embrenhados por este cenário em que o estaleiro era um imenso labirinto de barracões e material, há cada vez mais gente, há mesmo um Lenine e um João Pança, este é eletricista e veio de Niza, viverá uma experiência que podia ter dado um acidente mortal, Victor é analfabeto, mas vai encontrar quem lhe ensine as primeiras letras, o Ângelo Barraquinho.

Não faltam cenas canalhas, Tito Brandão, esteve na prisão com o Victor, procura atrair este para uma roubalheira, Victor recusa, haverá na ponte um roubo de monta, terá um enorme peso no desfecho do romance. Iremos ao campo do Atlético vê-lo jogar com o Belenenses, entra um biltre em cena, chama-se Josué, é sucateiro, saberemos mais tarde que é um monstro, aparecerá também no desfecho do romance. De vez em quando aparece ali o almirante Américo Thomaz, o tal Presidente da República corta-fitas, a obra cresce, o pai do Victor cada vez mais doente, não perdoou ao filho, mesmo nas vascas da agonia. Victor e Dália casam-se na conservatória, e começa a latejar forte na narrativa aquela guerra colonial, aqueles barcos pejados de militares que partem e chegam. Há tragédias na ponte, gente que morre, ninguém pode sobreviver daquelas quedas. A atmosfera do país é aqui retratada a corpo inteiro no olhar desta gente que se organizou como proletariado urbano naquele vale de Alcântara que começa a ter sumiço, a ficar deformado pelos imensuráveis arruamentos que conduzem à ponte, que põem fim aos negócios do tio Artur que tem cada vez menos meias solas para tirar.

A tragédia familiar vai focar-se no Quim, aquele mano tão amado por Victor, não continuou os estudos, partirá para a guerra, isto enquanto a ponte cresce. A guerra é um sorvedoiro de gente, Nuno Duarte entremeia com mestria a espiral da guerra inútil com todos os preparativos daquela ponte ter o nome de Salazar, há de premeio chuvas diluvianas e o Quim lá anda pelo norte de Moçambique, não com uma Mauser, mas com uma G3, é atirador especial, os habitantes do vale de Alcantâra foram escorraçados à força das barracas onde viviam, vão desaparecendo o Casal Ventoso e outros lugares que eram verdadeiros esgotos.

E temos um final apocalítico, haverá um cataclismo na inauguração da ponte, em 6 de agosto de 1966. Tudo irá mudar em Portugal, é a mensagem radiosa, seguramente metafórica de um regime que se colapsa e de Forças Armadas triunfantes. E é a hora de deixar uma derradeira mensagem: “Para ter justiça, não basta a esperança nem um partido que se utilize dela no nome, é preciso vontade, pois esperança sem vontade é coisa nenhuma. É a vontade que fará deste, talvez, um país melhor, mais justo, mais livre, mais próspero. Talvez um dia Portugal seja isso tudo, um país enfim moderno, com pontes, mas sem pés de barro. Haja esperança.”

Um belíssimo romance, é inevitável acreditar que temos um grande escritor na calha.

 

                                                            Mário Beja Santos

 


segunda-feira, 5 de maio de 2025

Carta de Bruxelas.

 










                                Fotografias de João Tiago Proença



São Cristóvão pela Europa (307).

 

 

 

Esta minha viagem pela Alemanha terminou por duas cidades situadas mesmo no Norte da Alemanha: Wallsbüll, a 8 quilómetros da fronteira com a Dinamarca, e Niebüll, a 18 quilómetros.

Na toponímia alemã, o sufixo büll refere-se a uma colina.

Em Wallsbüll existe uma igreja de São Cristóvão, hoje dedicada ao culto luterano.

A igreja foi construída no estilo românico no Século XII.

No interior uma imagem em madeira de carvalho assente numa pequena consola, do início do Século XVIII e representando o nosso Santo.

Também uma pintura da artista polaca Anna Sobol, nascida em 1946, apresenta São Cristóvão de forma original.

 

 




Em Deezbüll, a igreja dos Apóstolos foi construída em estilo gótico no Século XIII.

O elemento mais notável do interior, é um altar de abas do Século XV. Tem 16 imagens apresentando ao centro Cristo coroando Maria como Rainha do Paraíso. As restantes são as dos doze apóstolos, São Quirino de Sescia, um santo da Croácia cujo atributo é uma mó e o nosso São Cristóvão.

Na predela, uma Última Ceia pintada em 1916 pelo pintor local Carl Ludwig Jessen (1833-1917).

 




 

E assim terminei esta minha digressão pelo Norte da Alemanha.

 

                                     Fotografias de 3 e 4 de Fevereiro de 2025

 

                                                                        José Liberato




Leonila Vázquez (1936-2025): padroeira dos migrantes.

 



https://www.publico.pt/2025/05/04/mundo/noticia/leonila-vazquez-19362025-padroeira-migrantes-2131179