terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Charles Dickens - III

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Dickens, cujo bicentenário agora se comemora, estará entre nós morto “como um prego de porta/de aldraba”? Estará “mais morto do que um prego de porta/de aldraba”? Ou nem por isso?
Faça-se uma busca no Google e depressa se concluirá que tais expressões suscitam como resposta várias ocorrências... de traduções portuguesas de Dickens, A Christmas Carol in Prose: A Ghost Story of Christmas (1843).  É que é esta a expressão que surge logo nos primeiros parágrafos daquela narrativa, num momento em que o narrador se esforça por deixar absolutamente claro que a personagem Marley, que refere amistosa e informalmente como “Old Marley”, estava morto e bem morto. E porquê tanto esforço? E porquê tanta insistência por parte deste narrador, que nos trata tão informalmente, usando um estilo tão marcadamente oral? A resposta é: para se tornar absolutamente incontroverso que, quando Marley surgir, mais adiante no enredo, se trata de um fantasma, uma assombração.

“Morto que nem/mais morto do que um prego de porta/aldraba” é apresentada como tradução da expressão fixa em inglês “dead as a door-nail”, e, desde a primeira tradução portuguesa de 1863, é maioritariamente escolhida nas vinte e cinco versões textualmente distintas que apresentam o Conto de Natal ao leitor português.  Evidentemente, nada disto faz qualquer sentido em português.  É opaco, por isso se justifica a inexistência de outras ocorrências para além destas imaginativas traduções de Dickens.  E é tão variado o colorido das expressões fixas que, em português, poderiam ocorrer em vez desta violenta adesão ao texto em inglês:  “foi à vida”, “bateu a caçoleta”, “foi para os anjinhos”, “bateu as botas”, “esticou o pernil”, “foi desta para melhor”, “foi para o galheiro”, está “mortinho da silva”,  “morto e bem morto” ou “a fazer tijolo”.

Que motivos poderão justificar esta opção predominante por uma expressão desprovida de sentido em português? É certo que a expressão inglesa tem uma genealogia impressionante, remontando o seu uso a Piers Plowman (1350) ou a Henry, the Fourth, de William Shakespeare.  Mas o que poderá levar os tradutores a trabalhar aparentemente de costas voltadas para o seu público-leitor, ainda que acrescentando notas explicativas que o informam tratar-se de uma “locução proverbial em Inglaterra”, “locução inglesa”, ou de “dito inglês muito vulgar”, lendo-se ainda num dos casos: “como se costuma dizer, não sei bem porquê”. Pois é, nós também não.  Mas tentando adivinhar eventuais motivações: Que papel é que o tradutor assim define para a cultura portuguesa? Que papel atribui à língua portuguesa e às expressões fixas em português? Que papel atribui ao seu público leitor? Como define o tradutor a sua própria capacidade de intervenção, quando confrontado com um autor britânico canonizado, como Charles Dickens, uma obra canonizada, como A Christmas Carol (a obra de Dickens mais traduzida entre nós) e a língua inglesa, hoje em dia inquestionavelmente hegemónica?  Como é que opções como esta configuram, indirectamente, a relação entre as duas culturas, que a tradução tem de negociar? 
Decisões como estas tornam-se, afinal, muito reveladoras, sempre que evitamos o beco sem saída de nos ficarmos por afirmar que a tradução é boa/má, pois, como afirma um conhecido investigador em Estudos de Tradução: “If it were a matter of technical code-switching only, translation would be as exciting as a photocopier. Translation is of interest because it offers first-hand evidence of the prejudice of perception. Cultures, communities, groups construe their sense of self in relation to others and by regulating the channels of contact with the outside world” (Hermans, Theo. 1999. Translation in Systems. Manchester: St. Jerome. 95).
Será que nos agrada o modo como tais opções em tradução nos definem, implícita e indirectamente?

Alexandra Assis Rosa

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