quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Verão Quente (4ª e última parte).

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Domingos Amaral, de Pará de Minas.
Quem foi? Resposta aqui
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# – O enredo policiário



A trama de Verão Quente oscila entre a extrema linearidade e o cúmulo da complexidade. Até o narrador fica confuso com esta ambivalência. O livro resume-se, diz o Departamento de Contabilidade do Grupo LeYa, a “quatro balas assassinas, uma revolução confusa e dois milagres improváveis” (p. 15). Mas, às tantas, fica o enredo tão embrulhado que o narrador confessa que “tudo parece um pouco rebuscado de mais para ser verdade” (p. 256). De facto, no livro entra um mundo inteiro, desde sexo à bruta, betinhos do Porto, capitães de Abril, espiões do Grupo dos Nove e até elogios a Amaro da Costa e Freitas do Amaral por terem tido a coragem de votar contra a Constituição da República – coragem que, como é sublinhado na página 180, Sá Carneiro não teve (“O Freitas e o Amaro da Costa tiveram-na, ao contrário do Sá Carneiro”).

Para que não restem dúvidas de que Freitas do Amaral e Amaro da Costa tiveram mais coragem do que Sá Carneiro, Domingos Freitas do Amaral insiste. Agora, já não é Bebé do Porto que homenageia o exemplo do CDS e dos seus founding fathers. É Julieta que, com a conivência do narrador, recorda que a “Assembleia da República” (sic) aprovara “uma Constituição onde se diz que Portugal vai rumo ao socialismo”. Mas – atenção! – com “os votos contra dos deputados do CDS”. Remata Julieta, a fechar: “– Nem o Sá Carneiro foi capaz disso”. De facto, Sá Carneiro não foi capaz disso. Nem disso, nem de fazer uma coligação de governo com o Partido Socialista. Nem disso, nem de ser ministro de um governo liderado pelo engº José Sócrates.

Até pela sua extrema pobreza, o enredo de Verão Quente conta-se em poucas palavras. Comecemos pelo patriarca da família. Referindo-se a seu pai, Dom Rodrigo Silva Arca, Julieta diz que “apostou ‘no cavalo errado’ no dia 25 de Abril”, entregando-se nas mãos de Spínola. Nas palavras da filha, Dom Rodrigo e Spínola eram “dois meteoritos perdidos naquele universo”. Com esta lição de Astrofísica, ficamos a saber que os meteoritos se perdem no espaço. E, de acordo com o narrador, Dom Rodrigo e o general Spínola “chocam frontalmente com o planeta revolucionário em que Portugal se transformou” (p. 76). Coitados. Sendo amigo de empresários importantes, os “Mellos” e os “Espíritos” (sic), Dom Rodrigo acaba preso em Caxias.

O cenário decorre no palacete construído por Rodrigo Silva Arca na Arrábida, que arquitectonicamente, diz-nos o narrador, se assemelha ao castelo de Moulinsart, onde vive o capitão Haddock (!). A 3 de Agosto de 1975, num dos muitos quarto da mansão, aparecem mortos, com quatro tiros no lombo (“junto ao coração”), Miguel, o marido de Julieta, e Madalena, a irmã de Julieta. Julieta, essa, encontra-se estatelada no andar de baixo, ao fundo da escadaria, com a pistola na mão. O acidente deixa-a a semanas em coma e, em resultado disso, Julieta perde a visão para sempre. Desconhecemos se a queda de uma escadaria pode levar à perda da visão, mas confiamos, uma vez mais, nos conhecimentos médicos de Domingos Amaral, um autor escrupuloso que certamente não iria escrever uma coisa destas sem previamente se informar, sem se documentar. Julieta é presa e condenada a 16 anos de cadeia, ainda que não sejamos informados por que motivo o tribunal não se interrogou sobre o facto de a assassina jazer no chão do andar térreo, inanimada, enquanto os cadáveres repousavam quietinhos no piso de cima. Não passou pela cabeça aos juízes que Julieta poderia ter sido empurrada? Naquele tempo revolucionário, os “juízes eram parciais”, diz o advogado de defesa. Reforça a ideia: na comarca de Setúbal, “os juízes eram comunistas ou de extrema-esquerda”. E, por isso, trataram de condenar sumariamente aquela filha da alta burguesia. Em todo o caso, não houve recurso, de agravo ou de apelação? Terminou tudo assim, logo em pleno Verão Quente? Continuamos sem perceber como se condena à “pena máxima” uma pessoa que jazia no local do crime, inanimada. Havia um móbil para o duplo homicídio, é certo: Julieta apanhara o marido e a irmã envolvidos numa cena amorosa, ainda que apenas nos “preliminares”. Além do móbil do crime, havia também a arma, uma pistola colocada na sua mão. É estranho, em todo o caso, que uma pessoa rebole escadas abaixo, com tal violência que perca o sentido da vista, e se mantenha agarrada a uma pistola. Não acham?

No quarto, detalhe relevante, “não havia esperma”, somos informados na página 97. É compreensível, tanto mais que os cadáveres estavam ainda vestidos, ou quase (Madalena estava em topless). Assim, torna-se bastante reduzida a probabilidade de existir esperma num quarto em que um casal é morto a tiro, com as roupas ainda no corpo. Se ainda estavam vestidos, para quê falar sequer na presença ou ausência de esperma? O pai de Redonda, segundo esta relata, é morto com os calções de banho vestidos e a tia, essa, “tinha ainda a cueca do biquíni colocada” (p. 98). Sublinha Redonda, “mas estava com as maminhas à mostra” (p. 98). As maminhas, sempre as maminhas, fazem nova aparição em Verão Quente. O casal foi morto, portanto, quando se encontrava nos “preliminares” (p. 97). “Mortos antes do truca-truca… É azar, não achas? Mortos sem proveito”, na pitoresca linguagem de Tomás. Eis uma razão mais do que suficiente – e plausível – para não existir esperma no quarto. “Não é surreal?”, pergunta Redonda ao narrador, a dado passo. Respondemos nós: é surreal; sim, é bastante surreal. 

Tudo apurado, a coisa era assim, simples, em 1975: se Otelo e os SUV’s ganhassem, Álvaro, que era uma toupeira do Grupo dos Nove, teria sido acusado da morte de Madalena. Como perderam, acabou Julieta por ser incriminada e Álvaro foi alvo de uma tentativa de homicídio. Ou seja, se a História não tivesse tomado o rumo que tomou, talvez Julieta não tivesse passado dezasseis aninhos na penitenciária. A História é uma realidade complexa, de facto. E estranha. “Os homens de Otelo” avisam Álvaro, apanhado a espiar para os Nove, que logo que conquistem o poder ele seria “eliminado”. Com um método “simples”: “a acusação de ser o mandante de um crime passional” (p. 275). Quer dizer: se tivessem alcançado o poder, Otelo e os SUV’s iriam levar Álvaro a tribunal. Como não o conseguiram, tentam matá-lo, em mais um acto terrorista das FP-25. Mas não teria sido mais simples matá-lo logo em 1975? E porque iriam ter o trabalho de o levar a tribunal? Mais: haveria tanta garantia de que os tribunais o iriam condenar? Otelo Saraiva de Carvalho tinha mesmo gosto em complicar as coisas. Quando podia ter despachado o traidor Álvaro, não o fez. Só depois, anos depois, em finais de 1983, é que as FP-25 o tentam matar, num atentado nos Olivais. Mas, com grande destreza, o antigo capitão de Abril bate-se com galhardia contra as FP-25: “Levei a mão direita ao coldre que usava no sovaco […]. Saquei da pistola e ripostei” (p. 278). Senhor leitor, um conselho de amigo: para sua protecção, e da sua família, traga sempre consigo um coldre nas axilas. Registe-se que, por essa altura, as FP-25 mataram um cúmplice de Álvaro, o tenente Rafael, que apareceu morto na banheira. Senhor leitor, outro conselho: evite os banhos de imersão.

Vinte e oito anos depois, em 2003, Julieta e a filha deslocam-se a umas termas, nos arredores de Coimbra. Uns dias antes, passearam pelos arredores, entre serranias. Poeticamente, “saem do carro e escutam o vento, sentadas nas rochas”. Um pastor acerca-se delas, contando-lhe histórias antigas, lendas de assombração. “Carros que em ponto de morto sobem estradas inclinadas” (esse mito urbano passa-se geralmente em Sintra) e “um cão que ressuscita depois de ser atropelado por um camião”. Curiosamente, o cão ressuscitado “volta a ser cão novamente” (p. 27). Antes de morrer, o cão tinha sido o quê? Uma lesma, um porco-espinho, um escritor sem talento? A ressurreição canina deve-se ao poder miraculoso das águas da região. Também graças a elas, Soraia, a massagista do hotel termal, consegue engravidar do marido. Já falámos de Soraia: morena, com cerca de 40 anos, ostentava uma “cara bonitinha”, “embora um pouco rústica” para o gosto do narrador. Soraia e o marido queriam um filho, mas nada.  Fora o cabo dos tormentos: o rapaz tinha os espermatozóides “preguiçosos” e, para os “espicaçar”, o casal tudo tentara – “uma alimentação cuidada, exercícios físicos, bebidas especiais e toda uma série de métodos de ajuda à procriação”. Após o coito, Soraia chegara a ficar deitada com as pernas mais altas do que a cabeça, para que os espermatozóides do marido “pudessem aproveitar a força da gravidade na correria a caminho dos seus óvulos”. Apesar da gravidade, nada de gravidez. É grave. Porém, Soraia descobrira há semanas que se encontrava grávida do marido. Isto, claro, enquanto toca ao de leve os testículos do narrador, a grande porca. “Para Soraia, haviam sido os banhos no spa a dissolver a preguiça dos ‘bichos’! As águas da região eram, todos o diziam, dotadas de minerais únicos, de propriedades energéticas invulgares, e isso, ao fim de pouco tempo, provocara alterações químicas no marido, possibilitando-lhe um ganho de produtividade sexual que noutras paragens não existia!” (p. 39). As águas milagrosas produzem também efeitos (milagroso) em dona Julieta. Certa manhã, passou quatro horas com a cabeça dentro de água. Não só não se afogou nessas quatro horas de submersão aquática como subitamente recuperou a visão perdida há quase três décadas. Verão Quente, um grande livro. Até o Correio do Minho gostou e sugeriu a leitura.   

No romance, além desta alteração química, também existe logo química entre o narrador e Redonda : “a nossa química nascente”, na p. 33, e “a boa química que cresce entre mim e Redonda”, na p. 258.  Redonda é, porém, um “quebra-cabeças”. Compreende-se, atendendo à “conjuntura afectiva difícil da sua vida” ou, se quisermos, à “dinâmica negativa daquele casal”, um “casal tenso, com uma impressionante falta de harmonia”.

Mas voltemos ao domínio do sobrenatural. O livro é pontuado por fenómenos estranhos, que cruzam a Engenharia Mecânica e a Philosophy of Mind. Nesse campo, aparece na página 11 uma “catapulta cerebral” e, na página 21, um “buraco negro na cabeça”. E, na página 173, entra em acção um perigoso “martelo pneumático mental”. Nada disso é de estranhar num autor que, na sua opus magnum, o formidável Enquanto Salazar dormia…, colocara o narrador a ser atingido duas vezes por “uma bola de demolição” (p. 407). Páginas imorredouras da literatura pátria.

Em Verão Quente, além de sexo à farta, há também misticismo, escrevendo-se que Julieta voltara a ver “como se um sopro do Espírito Santo a tivesse atingido” (p. 222) e que a verdade verdadeira se escondia “nas catacumbas do seu ser” (p. 304). Agora, era só abrir as “comportas da sua alma” (p. 305). Abertas as comportas, “solta-se o monstro, a besta negra que ainda vive dentro dela” (p. 305). E a besta negra, agora à solta, lá dá entrada na Casa das Letras, a recibos verdes, e aí vai perpetrando romances como este. 

Graças às águas milagrosas, que fazem renascer cães atropelados por camiões e, em simultâneo, dão vigor aos espermatozóides do marido da massagista Soraia, Julieta Silva Arca recupera a visão. Em Lisboa, consulta três oftalmologistas, nenhum encontrando uma explicação científica para o fenómeno. Mas, do mesmo passo, nenhum utiliza a palavra “milagre”. Invejosos. Segundo Julieta, não usam essa palavra por “insegurança profissional” ou “mesmo ciúme divino” (p. 101). Recomendam-lhe que evite “pancadas na cabeça”, o que parece ser um avisado conselho clínico. De facto, mesmo para os que nunca perderam o dom da visão é sempre de evitar pancadas na cabeça. Por isso, tenha cuidado se decidir comprar este livro de Domingos Amaral.  

Além do regresso da visão de Julieta, outro milagre se produz. De facto, segundo o narrador, há dois milagres no livro. A devolução da vista e o facto de Julieta começar a ter flashbacks recorrentes. Volta não volta, lá temos um flashback. Nas palavras de Verão Quente, a isto chama-se “teoria do ‘buraco negro’”. Nas nossas palavras, a isto chama-se um expediente batidíssimo que os autores trapalhões, pouco imaginativos e muito preguiçosos utilizam ad nauseam na escrita de livros policiais de quinta categoria. Assim, com flashbacks e buracos negros a abrirem-se (!), todas as pistas são dadas aos narrador, sem qualquer esforço. No livro, o suor é gasto na cama, não à mesa de trabalho. No Verão Quente, de facto, ninguém trabalhou. Bernardo Souto, o “Bebé”, cinquentão da Foz, vive dos rendimentos. Redonda e a mãe aguentam-se à conta de Tomás, o tanso loiro de olhos azuis. Mas Redonda, atenção, é uma moça esperta. Tem “talentos escondidos”, uma espécie de perspicácia natural para fazer negócios e ganhar dinheiro. Sem esforço, claro. No final, quando o narrador e Redonda se aproximam amorosamente e se preparam para juntar os trapinhos, aquele gaba-lhe o dom para ganhar dinheiro fácil no mercado de capitais: “– Ainda bem, que tens jeito para as finanças, podes tratar das minhas contas, sou péssimo nisso… Um dia tentei jogar na bolsa e perdi uma fortuna. Redonda aconselha-me: para ser bom investidor é preciso não ter emoções com o dinheiro, ser frio, estabelecer objectivos, nunca se iludir com subidas ou descidas. E conclui: – Tudo o que sobe, desce” (pp. 290-291). Verão Quente  é um achado. Até conselhos de investimento – sensatos, prudentes – nos são oferecidos pela módica quantia de € 15,90.

O dinheiro é a força motriz do sexo feminino: “o dinheiro é muito importante para as mulheres, mesmo quando afirmam o contrário”, refere o narrador (p. 172). A deliciosa Redonda é um bom exemplo: só se divorcia de Tomás depois de conseguir fazer um negócio milionário com o seu patrão. Concretizado o negócio, que torna mãe e filha tremendamente ricas, Tomás é despachado com grande limpeza.

Não admira que procure vingar-se. Aparece de súbito na página 259, colocando ao narrador a seguinte questão: “– Ó meu cabrão, quem julgas que és?”. Bem poderia o narrador ter respondido que era um assalariado do Grupo LeYa e a coisa teria ficado por ali. Mas não. Manteve-se mudo, o grande estúpido. Tomás aborda a problemática num ângulo  um pouco diferente: “– Já comeste a mãe e agora queres comer a filha, meu cabrão?”. E de novo o narrador se mantém calado. Redonda, mais afoita, teve de sair em sua defesa. Tomás discordou desta atitude: “– Não o defendas, minha puta!”. O narrador disse, então, para os seus botões: “Isto está bonito”. O diálogo prossegue, tendo Tomás desgraduado o narrador, de “cabrão” para “caramelo”. Até o narrador fica perplexo perante tal despromoção: “Passei de cabrão a caramelo, será uma promoção ou uma despromoção?”. A conversa, que decorria amena junto ao Portinho da Arrábida, entre falésias e gaivotas, só é interrompida quando Redonda pega numa faca e a coloca junto à garganta de Tomás, que ficou “petrificado”. De onde terá surgido a faca? Aguardemos por uma 2ª edição de Verão Quente. Nesta edição, de Junho de 2012, a faca surgiu ali por um acaso. A navalha estava a dar uma volta pelo distrito de Setúbal, tranquila, sem fazer mal a ninguém, e, olha, decidiu meter-se na mão de Redonda – e na garganta de Tomás. Redonda, já dona da situação, espezinha o ego do marido. Confessa-lhe um segredo assombroso: manteve-se casada porque o patrão de Tomás lhe disse que, se acaso se divorciasse, Tomás seria despedido (“– Tinhas-me apresentado ao teu patrão, se te deixasse ele despedia-te. Foi ele quem mo disse!” – p. 263). O patrão de Tomás tinha “consideração” por ela e, enquanto o matrimónio perdurasse, haveria segurança no emprego. No fundo, Redonda era uma altruísta: mantinha-se casada com um homem que não amava apenas para que este não fosse parar ao Rendimento Social de Inserção. Estranha-se é a atitude do patronato, como sempre abjecta. Como tinha “consideração” por Redonda, obrigava-a a manter-se casada com um idiota de que não gostava. “– Não vales nada! Eu sei bem o que o teu patrão diz de ti. Só não te despediu porque tem consideração por mim, percebes?”. Por acaso, não percebo. Mas a vida tem destas contradições.   

         É que, logo a seguir, Redonda revela o motivo pelo qual se manteve casada com Tomás. A mãe observa: “– Não percebo como ficou tanto tempo casada com ele”. Julieta “suspira fundo”, olha para a mãe, e replica: “– Ainda se lembra onde estávamos há dois ou três anos?”. Pois é, estavam num apartamento minúsculo em Cascais. Ou, nas palavras do narrados: “Nesses tempos, Julieta é cega, as duas vivem com dificuldades, só o casamento melhora a vida de Redonda”. A filha coloca a questão em toda a sua crueza: “– Se eu me tivesse separado do Tomás, vivíamos de quê?”. Redonda passa, pois, de uma altruísta abnegada, a páginas 263, para uma materialista interesseira, a páginas 265. Assim, num ápice. A situação de mãe e filha não era risonha, por bandas de 2000, 2001. Os homens à sua volta, como Raul e Paulo, tinham batido a asa. “Comeram-nas, mas não as amaram”, diz o narrador. Feitas as contas, “resta Tomás”. Restando Tomás, pois fica-se com Tomás. “A troco de uma estabilidade económica mínima, [Redonda] permanece naquele casamento inglório, tortuoso e tenso” (p. 265).

         Mas, em poucos meses, tudo muda. A conjuntura socioeconómica altera-se radicalmente. Julieta mete a cabeça na água milagrosa e passa a ver, o narrador entra em cena para pagar as contas e ter as mamas de Redonda esborrachadas contra si e, acima de tudo, o milionário negócio com o patrão de Tomás “vai para a frente”. Tomás torna-se descartável e, como tal, é descartado. Redonda mostra de que massa é feita. Mas nada disso a impede de ser a heroína deste romance. A ausência de quaisquer princípios e o facto de ser mentirosa não impedem o narrador de a querer por companheira para toda a vida. Nunca subestimemos o poder de umas boas mamas.   
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         Não se dando por vencido, Tomás reaparece por bandas de páginas 290, 290 e picos. Nessa altura, já o narrador e Redonda se amavam. Que fazia o empregado de Domingos Amaral? Estava dentro de Redonda, obviamente. Tomás aparece-lhes no quarto, vestido de homem-rã (mas sem barbatanas), com uma pistola a apontar para o casal. Chama-lhes “filhos da puta” e “cabrões”. E remata: “eu fodo-vos a vida!” (também um oportuno "Puta de merda!"). Aponta ao casal, mas a pistola, molhada, encrava, no momento decisivo, o clímax em que Tomás iria cumprir a solene promessa de foder a vida ao narrador e a Redonda, a puta de merda. Página 294, atençãozinha aí, na plateia. Julieta irrompe na cena e dá com um remo na tromba de Tomás, que cai inerte. Portou-se, diz o narrador, como uma “padeira de Aljubarrota”. O narrador, que há instantes tinha saído de dentro de Redonda, encontrava-se desnudado. A mãe, Julieta, olha para o seu “baixo-ventre” e manda-o compor-se, que a GNR vem a caminho. Acompanha esta ordem com uma tirada de elite: “– É uma pena, mas tem de ser”. Redonda, encantada, chama-lhe “meu herói”. Julieta mete prego a fundo na boçalidade, advertindo a filha: “– Cuidado, olhe que ele está nu e o peru ainda se entusiasma!”. E, como se já não bastasse a alusão ao entusiasmo do peru, a fina senhora ainda acrescenta: “– Os homens são uns sempre em pé, todo o cuidado é pouco”. A cena decorre exactamente vinte e oito anos depois do crime de 1975. A 3 de Agosto, nem um dia a mais, nem um dia a menos. Tomás estrebucha, metem-lhe na boca um pano de cozinha e não vale a pena gastar mais caracteres Times New Roman Tipo 14 com este idiota. Alguns pormenores apenas merecem ser realçados, pois adensam a comicidade da cenaça. Quando chega a GNR, é exactamente o mesmo tenente, “de pança e bigode”, que 28 anos antes deparara com os cadáveres de Madalena e Miguel, e Julieta estatelada no chão, de pistola em punho. Agora, estava agarrada a um remo de um barco, o que motiva o sagaz comentário do guarda republicano: “– A senhora tem sempre alguma coisa na mão, desta vez é um remo”. Domingos Amaral é mesmo um pândego, não acham? O tenente da GNR, arguto, afirma, peremptório: “Isto é violência doméstica” (p. 296). Como sabia ele que Tomás era casado com Redonda? E, já agora, chamar violência doméstica a uma tentativa de homicídio parece-nos um eufemismo jurídico (leia-se: uma calinada das grandes). Mas será sob a acusação de violência doméstica que Tomás se virá envolvido nas teias da justiça (cf. p. 311). Outra coisa: repararam que Julieta ficou ali, de remo na mão, longuíssmos minutos, até a GNR chegar? Outra ainda, decisiva, fatal: a arma, uma pistola, encravara por se encontrar molhada. Tomás, sempre estúpido, viera a nadar até à mansão Silva Arca, não tendo o cuidado de guardar a arma num saco. Tê-la-á trazido na mão? Ou à cintura? Em qualquer dos casos, uma coisa é certa: de acordo com as informações que recolhemos (e, claro, que podem ser contestadas...), AS PISTOLAS NÃO ENCRAVAM COM A ÁGUA. Claro que haverá problemas se se tratar de um mosquete antigo e a pólvora ficar molhada. Mas, apesar de o parecer, Verão Quente não é um filme de capa e espada, com pólvora e mosquetes. A menos que esteja semanas e semanas submersa, uma arma de fogo não encrava por ficar debaixo de água um par de horas. O oxigénio que se consome na queima não se encontra na água, mas  no próprio explosivo de base tripla: nitroglicerina, nitroglicol e nitroguadidina. Aliás, se o projéctil já estava na câmara... Bem, não vamos maçar os leitores com explicações de balística elementar. Tudo visto e resumido: de acordo com as informações que possuímos, este episódio em que uma pistola encrava por estar molhada só pode ter acontecido na imaginação de Domingos Amaral, nunca na realidade dos factos.  Daí que esta cena, uma cena absolutamente crucial na trama do romance, a cena em que o marido enganado tenta matar o narrador, se baseie num facto inverosímil, que não podia ter acontecido. É de admirar que o dr. Moita Flores, experiente criminologista, não tenha notado isso, na apresentação pública deste Verão Quente, no El Corte Inglés.
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Domingos Amaral e Francisco Moita Flores, na cerimónia de lançamento, aqui
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Bem, com pistolas que encravam na água, o melhor é irmo-nos todos deitar. Meu dito, meu feito: narrador e Redonda deitam-se juntos. Porém, ela evita intimidades. A noite, a célebre noite da pistola encravada, já fora agitada em excesso. Na manhã seguinte, de novo o narrador se esforça por se meter dentro de Redonda. Nova negativa (“Gosto de sexo de manhã, e estava com esperança que Redonda gostasse também, mas ela acordou a chorar, angustiada” – p. 299). Nada feito, portanto. Necas de pitibiriba.

         Aproximamo-nos do fim. Há que despachar a coisa, pois o Verão espreita e Verão Quente quer estar presente em todas as praias de Portugal. Para ajudar na empreitada, que fazer? Julieta tem um novo flashback, claro. Desta feita, dá um uivo. O narrador fica impressionado: “nunca esperei ver um ser humano tão destroçado” (p. 303). Num ápice, Julieta vê tudo e vai contando o que a sua memória recupera. Mas, de súbito, nova paragem. Raul, solícito, pergunta-lhe “– Outro flashback?”. Julieta prefere um dry martini. E aponta o nome de Kurt.  

Assim, lá vai o narrador, coitado, a caminho da Costa Alentejana, onde se avista com o assassino, o alemão Kurt, “um homem muito magro e seco, como se o seu corpo tivesse sido chupado por dentro, um pneu a quem alguém tirou o ar” (p. 312). Uns anos antes, caíra de um pinheiro, e ficara paraplégico. Cá se fazem, cá se pagam. À semelhança de todos os homens da novela, Kurt possui uma visão pouco abonatória do comportamento de Madalena: “uma leviana, uma sem-vergonha, uma prostituta reles” (p. 314). Ainda assim, considera-a fisicamente “um belo naco” (p. 317).   

         O crime prescreveu, como é frequente num país em que romances como Verão Quente são sucessos de vendas. Agora, nada havia a fazer. Nada? Não é bem assim. Julieta vai dormir na endiabrada companhia de “demónios esconjurados” (p. 318). E o narrador lá consegue o seu intento: meter-se dentro de Redonda. “Entro finalmente dentro dela, agora é que vai ser, amá-la-ei até ao fim pela primeira vez, não vou parar…”. Cai o pano.  

 Em Verão Quente, não nos é indicada a profissão do narrador, a não ser esta mesma: ser narrador de um livro de Domingos Amaral. Mais um precário, portanto. Mas até nisso o rapaz se mostra pouco operoso, limitando-se a seguir na sua investigação os flashbacks que Julieta lhe vai dando, enquanto tenta a todo o custo encontrar um abrigo dentro das personagens femininas. Ninguém trabalha em Verão Quente, sendo Domingos Amaral, provavelmente, o que menos trabalhou em toda a história.
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A melhor parte do livro: a contracapa
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# – Entre o essai filosófico e o manual de auto-ajuda


A terminar, diremos que Domingos Amaral, autor nascido em 1967, com sete livros dados à estampa, tem uma qualidade que redime a sua prosa da manifesta falta de inteligência da escrita, da ausência completa do bom gosto e da subtileza. Na verdade, sem se aperceber disso, produziu um ensaio filosófico. Involuntário, é certo, mas denso e profundo. À maneira da literatura moral clássica, o produto das meditações domingueiras é condensado em epigramas e máximas, de modo a que as mesmas serviam de pautas ou regras de conduta que todos poderemos aplicar no governo das nossas vidas:

·  “Quando conhecemos uma mulher bonita, não a devemos apenas lisonjear, isso todos o fazem, mas sim ir directo ao que ela dá importância” (p. 19);

·  “Qualquer pessoa sabe que a culpa só muito raramente é de uma das partes, e quando se começa por aí uma explicação de um falhanço demonstramos raiva e ressentimento e não a serena aceitação de um fracasso mútuo” (p. 22);

·  “a raiva é uma emoção viva” (p. 22);

·  “um casamento é uma coisa muito difícil” (p. 22);

· “Acredito na alteração da ordem natural das coisas, seja lá qual for a causa; aquilo que não podemos explicar com a razão, só com o coração” (p. 26);

· “Prefiro o silêncio a qualquer lamento piedoso” (p. 32);

·  “Entre mães e filhas, há sempre alguma tensão” (p. 32);

·  “O que nos vale é que nada é definitivo na vida” (p. 33);

·  “Em teoria é sempre mais fácil seduzir uma filha quando temos a bênção explícita da sua mãe” (p. 34);

·  “Por vezes, tenho a sensação de que as mulheres falam entre si numa língua diferente da dos homens, cifrada, em código, impedindo-nos de as compreender” (pp. 35-36);

·  “Quão disparatados somos, ao procurar significados ocultos e imorais em situações tão banais para uma massagista!” (p. 37);

·  “Normalmente, as pessoas mais controladoras, e as mais ciumentas, são também as mais infiéis. Como agem assim, acham que o mundo inteiro é composto por gente igual a elas, e vivem aterrorizadas, receiam que lhes façam o mesmo que elas fazem aos outros. Homens e mulheres, nisso são muito parecidos” (p. 57);

·  “As mulheres bonitas e com corpos atraentes provocam sempre nos homens excitação” (p. 62);

·  “Ao longo de uma noite de insónia, o nosso cérebro parece que se aguça e nos proporciona uma lucidez adicional” (pp. 64-65);

·  “Quando nos fazem o retrato psicológico de alguém, temos tendência para imaginar o seu aspecto físico em concordância” (p. 82);

·  “Os homens são animais muito competitivos” (p. 89);

·  “As mulheres têm a traição no coração ou sou eu que sou um descrente?” (p. 90);

·  “é profundamente doloroso ver uma irmã a enganar-nos com o nosso marido” (p. 139);

· “a nossa moralidade tem tendência a defender quem nós gostamos” (p. 154);

·  “o que define a amizade quando nela cabe tanta coisa tão diferente?” (p. 173);

·  “a amizade nunca pode ser a consolação de um falhanço sexual, pois é a única relação escolhida e desligada dos instintos sexuais humanos” (p. 173);

·  “Uma coisa é brincar com um homem, tentá-lo excitá-lo; outra, completamente diferente, é tê-lo ao lado” (p. 176);

·  “Pois” (p. 177);

· “Diz-se que muitas mulheres, quando acabam um amor importante, se reinventam olhando primeiro para o passado, e buscam nos antigos namorados um consolo” (p. 179);

·  “O amor não tem a ver com a prática nem com a idade, mas sim com o que temos cá dentro para dar” (p. 204);

·  “Os seres humanos mentem muito uns aos outros. Então nas coisas do amor é raro ouvir alguém dizer a verdade” (p. 216);

·  “Para as mulheres, a culpa é sempre dos homens, o que vale é que para estes a culpa é sempre delas, e assim será enquanto existirem seres humanos sobre a Terra” (p. 217);

·  “Merda. O país está a arder em fogos. E nós também” (p. 225);

         ·  “É difícil negar uma grande paixão, mesmo muitos anos depois” (p. 231);

         ·  “É sempre bom manter um trunfo na manga” (p. 235);

·  “Quando nos pedem que recordemos o que se passou há quase trinta anos, é normal que muitos de nós esqueçamos certos detalhes” (p. 246);

·  “a maior parte das vezes as pessoas não concretizam as ameaças” (p. 247);

·  “As feridas mudam as pessoas, as renúncias mudam as pessoas e as infidelidades também” (p. 265);

·  “É impressionante como as mulheres sabem virar a seu favor uma situação difícil […]. A culpa é nossa, dos homens. Somos tão gabarolas dos nossos feitos que ficamos cegos e não só pagamos um preço alto pela gabarolice, como também passamos ao lado da realidade feminina mais secreta, que acontece sem darmos por ela” (p. 301);

·O assassino volta sempre ao local do crime. Esta é uma máxima antiga que quase sempre se verifica” (p. 310).
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Concluindo, e bem vistas as coisas, o preço deste livro nem é caro. Nada caro, € 15,90 por uma obra humorística que tem sexo, história política, trama policial e ainda serve de manual de auto-ajuda, com sábios conselhos para orientarmos a nossas vidas. É uma desgraça completa em todas essas modalidades, mas no conjunto acaba por valer muito a pena. E a capa, toda sarapintada, é linda de morrer. Em entrevistas, o autor ameaça escrever uma nova obra de dois em dois anos.

Verão Quente é o último romance de Domingos Amaral. Mas, infelizmente, o último romance de Domingos Amaral nunca é o último.



António Araújo
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12 comentários:

  1. O meu caro António Araújo ostenta uma mestria singular!!
    No género, está entre os melhores que tenho lido!
    Mui grato e um bem haja para si,

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  2. Magnífico, os meus sinceros parabéns!

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  3. Caro Demolidor,
    Vejo que, para benefício colectivo, ingeriu uma sobredose da prosa de D.A. Não resisto, contudo, a deixar-lhe um derradeiro comprimido, desenterrado do blogue do dito (ecossistema em que se desenvolve a geleia de pensamento derramada, de biénio em biénio, para cada tupperware). Aqui fica: http://domingosamaral.com/17194.html
    Cumprimentos, B.

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    1. À atenção de putativos responsáveis: estes textos, este texto, de António Araújo deveria (quando mais não fosse, por razões profilácticas, mas por mais, bem mais) ser editado de forma ainda mais nobre. Era um serviço. E um gosto!

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  4. A maior sova desde que o VPV desancou o MST

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    1. E não esqueçamos do João Pedro George à (c)MRP.
      Brilhante! Está "tudo dentro do texto"...

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  5. Absolutamente delicioso, há muito tempo não seguia com tanto prazer uma analise tão certeiramente demolidora. Obrigado pelo prazer que me deu.

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  6. Filho de peixe sabe nadar, e normalmente nada nas mesmas aguas, pelo que não há lugar para qualquer surpresa.

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  7. brilhante! há algum tempo que não lia nada tão intelectualmente divertido. Não é fácil dizer bem de um Domingos Amaral, mas é preciso saber dizer mal.

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  8. Comprei porque não conhecia. O que me chamou a atenção foi o titulo e época. Embora critico e humorístico, pergunto como conseguiu escrever tanto sobre o assunto que não tem nada a ver com literatura.O meu exemplar vai para o ecoponto.O livro é execrável.
    m. martins

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  9. Para mim, o assustador não é tanto o livro, pois teve o mérito de dar origem a estes 4 posts em que o AA desanca magistralmente a prosa do sr. Amaral. O que me assusta é o facto de haver leitores para esta coisa e de essas pessoas votarem.
    bloody mary

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