quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Da aventura como modo de vida.

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"Era um homem do século passado dotado de um carácter, comum aos jovens do seu tempo, em que conviviam o cavalheirismo, o espírito aventureiro, a presunção, a amabilidade e o desenfreamento. Olhava com desprezo as pessoas da época actual."

León Tolstói, "Infância, Adolescência e Juventude"

 

 

Da aventura como modo de vida é um título que me devolve aos meus tempos de teenager consciente, quando lia edições antigas de L´Illustration, dos anos 20 e 30, e sonhava com um tempo em que ainda havia espaços por descobrir.

Imaginava a primeira metade do século – e o século era o vigésimo – como uma época em que sobrevivia uma certa ingenuidade, alimentada pela crença nas virtudes da civilização. Ainda se era racista sem constrangimento e sem vergonha. Acreditava-se até que a eugenia permitiria aperfeiçoar a humanidade à la carte. Todas essas pretensões seriam desmentidas nesses cinquenta anos pela loucura de homens que se pretendiam civilizados e superiores.

Tempos fascinantes, portanto. Um tempo em que havia verdadeiros aventureiros, porque a palavra "aventureiro" ainda se não tinha degradado. Hoje, um aventureiro é um temerário inconsciente ou, no superlativo, quem, tendo poder, conscientemente brinca com o futuro dos outros.

Naquela época, a palavra aventureiro remetia, mais do que para o exótico, para o misterioso. Perante o mistério de sempre – o Homem –, ainda subsistia o mistério dos espaços, do primitivo, do desconhecido. Um aventureiro era, então, alguém que se entregava à descoberta e à revelação dos últimos mistérios.

Simultaneamente, naqueles anos a técnica começava a intrometer-se, mas sem aniquilar o risco. Os novos meios – a motorização, a reprodução das imagens, as comunicações à distância – davam mais tonalidades ao misterioso. Aproximavam-no sem comprometer o nosso espanto. É o momento em que se mostra o estranho com imagens reais e com relatos tempestivos, sem se perder o encanto. Esticavam-se os últimos limites da terra, do ar e do fundo dos mares. Restaria, depois, a aventura espacial, mas esta, empresa de Estado, não ofereceria o mesmo romantismo.

O verdadeiro aventureiro era um grande individualista. Por isso, a história tende a ignorá-lo. É assunto predilecto da petite histoire. Pois ainda bem: não sendo historiador, não sou parte na querela dos historiadores. Mas desgostam-me denúncias inquisitoriais e tornam-se-me repelentes os que se comprazem em descobrir fascistas onde não os há, não compreendendo que, se tanto fosse fascismo, o fascismo não era nada.

Parece, pois, perfeitamente adequado começar esta série com um aventureiro que ficou na história, erroneamente, como um protofascista, associando-o ao homem que mais fez pelas comunicações à distância, também ele, à sua maneira, um aventureiro: Gabriele D´Annunzio e Guglielmo Marconi.
 
Gabriele D'Annunzio
 



D´Annunzio, o poeta egocêntrico que amava as mulheres e a natureza. Esse era o ídolo que as mulheres seguiam, como se pode ver num filme de 1974, ano da nossa revolução. Luigi Comencini dirigia então a maravilhosa Laura Antonelli e o mais plácido Michele Placido, em "Mio Dio, come sono caduta in basso!". A propósito, Fiume também foi uma experiência de liberdade nesse domínio. Contam alguns relatos que o desenfreamento sexual tomou conta da cidade.



Mussolini e D'Annunzio, 1925
 
D´Annunzio também foi um revolucionário que liderou pela palavra e pelo exemplo. Herói espectacular na Grande Guerra, que tanto desejou. Aventureiro porque criou uma das grandes aventuras do século XX: o Estado de Fiume. Daí figurar como precursor de Mussolini, sendo esse o estigma que perdura de D´Annunzio.





 
 
 
Mas o que foi o Estado de Fiume? Milícias nacionalistas italianas, seguindo um líder ditirâmbico, tomam em Setembro 1919 uma cidade associada à Coroa Húngara (hoje Rijeka, na Croácia), para forçar a sua integração no Reino da Itália. E lá permanecem por um ano, reclamando a qualidade de cidade-Estado e chegando a declarar guerra à própria Itália.

Recorda-se a nota do Governo da Reggenza Italiana del Carnaro:

"A Regência é obrigada a considerar-se, a partir das 18 horas do dia 23 de dezembro de 1920, em estado de guerra com o Reino de Itália".




 
D´Annunzio seria, em 1924, nobilitado pelo rei. Príncipe de Montenevoso! Nada mal para quem declarara guerra à Itália quatro anos antes ...

É certo que o fizera para salvar ... a Itália, porque, naquele mesmo dia de dezembro de 1920, "Il Comandante" proclamara que "Avremo la gloria di soffrire insieme per l´Italia bella".

Assistindo à distância, um então apagado Mussolini aprenderia naquele exemplo dos rituais – as canções, as camisas negras, os discursos da varanda, o braço em riste  –, o modo de conduzir as massas para aquilo que pretendia ser o renascimento da Itália e, mais grandiloquente, da própria Roma milenar. Pouco depois da marcia su Fiume, Mussolini começou a falar de uma marcia su Roma: a revolução, escreveu então, "começou em Fiume e será concluída em Roma."

Mas o que foi verdadeiramente a cidade de Fiume nesse ano louco? Um empreendimento nacionalista radical, decerto. Mas também uma experiência libertária, com laivos profundos de anarco-sindicalismo.

O Estado Livre de Fiume aprovou uma constituição, La Carta di Libertá del Carnaro. Nela perpassam as loucuras simpáticas de D´Annunzio. Por exemplo, quando se proclama "na Regência de Carnaro a música é uma instituição religiosa e social (...) a música, a linguagem do ritual, tem poder, acima de tudo, para exaltar os feitos e a vida do homem."

E não se tratava apenas de adorar as marchas militares. Arturo Toscanini, em Novembro de 1920, levou a Fiume a sua orquestra sinfónica, para aí tocar à liberdade. Contudo, os cínicos dizem que D´Annunzio quis constitucionalizar a música porque a sua amante da época era uma bela pianista...
 
Carta di Carnaro
 
 

Mas a Carta de Carnaro é também uma expressão do sindicalismo revolucionário que, nos anos do fim da Grande Guerra, teve múltiplas manifestações. 1919 foi o ano da revolução mundial. O ano em que, em Lisboa, a Voz do Operário oferecia aos seus sócios cursos para os ensinar a administrar a coisa pública porque a tomada do poder estava iminente.

A Carta começava por fixar, num dos três artigos de fé essenciais, o valor do trabalho como forma de acrescentar beleza ao mundo, fórmula seguramente de D´Annunzio. De seguida, passava para ideias mais concretas, o que terá sido devido ao co-redactor da Carta, o sindicalista Alceste de Ambris. A igualdade de todos os cidadãos, a limitação do direito de propriedade, a reafirmação da dignidade do trabalho, a educação pública com inspiração multiétnica, um estatuto de igualdade para as mulheres, com a consagração legal do divórcio, a liberdade religiosa, o sufrágio universal, os direitos políticos fundamentais, os tribunais especiais para questões laborais, são dele. E, também, a organização em corporazioni baseadas em categorias produtivas. Bem, nem todas. A exótica décima corporação, a das "misteriosas forças do progresso e da aventura (...) uma espécie de oferta votiva do génio do desconhecido ao homem do futuro", constituindo admirável, embora involuntária, evocação do nosso tema, não pode ter deixado de ser da lavra do poeta.

A verdade é que uma cidade, com milhares de habitantes e sitiada, resistiu mais de um ano. Como foi abastecida? Com a cumplicidade da Federazione dei Lavoratori del Mare, do sindicalista Giuseppe Giuletti, próximo de Alceste de Ambris. O anarquista Errico Malatesta também foi um dos amigos de Fiume. Recordemos o título do livro de Claudia Salaris: Alla festa della rivoluzione: Artisti e libertari con D´Annunzio a Fiume.

Tudo isto abriu caminho ao fascismo? Talvez. Não por D´Annunzio, mas malgré lui. Os melhores dos seus amigos sindicalistas, que evoluíram para o nacionalismo e tiveram alguma esperança no fascismo, cortaram depois com Mussolini. A Carta de Carnaro e Alceste de Ambris inspiraram Alfredo Rocco e a lei corporativista de 1926, mas não mais do que isso. Na verdade, os fascistas queriam sindicatos para, através deles, o Estado controlar a sociedade. Enquanto estes sindicalistas – e não serão todos assim? –, queriam os sindicatos para, através dos melhores elementos da sociedade, controlar o Estado.

Quando a experiência de Fiume se aproximava do fim, em Novembro de 1920, o The New York Times titulava: "D´Annunzio puts councils in charge, replaces high Fiume Army commanders with younger officers, calls it democratization". O Comandante – e que evocações não suscita hoje este título –, já não confiava nos mais velhos, nos mais sérios. Promoveu os conselhos e, neles, os mais radicais, os dispostos a tudo.

É bom não esquecer que o próprio Gramsci, em 1920, defendia uma utopia libertária baseada... nos conselhos. E que mesmo Lenine terá dito, num congresso em Moscovo, que "D´Annunzio é o único verdadeiro revolucionário italiano". A União Soviética seria o único Estado a reconhecer o Estado livre de Fiume. Isto se descontarmos o facto de o Atlas Mundial Dadaísta "Dadaco" ter reconhecido formalmente Fiume como cidade italiana ...

Esta versão irredentista dos conselhos faz-nos desconfiar da esperança que Hannah Arendt depositava nos conselhos (embora ela se reportasse ao papel dos conselhos na Hungria de 56), essa organização espontânea das massas que dizem “não” e querem outro rumo.

A questão é esta: como garantir que, nesses momentos cruciais, a "festa da revolução" não conduz à opressão? Como assegurar que a experiência dos conselhos, sem instituições ordenadoras, não redunda na emergência de um líder carismático que domina as massas tocando a corda sensível dos instintos?

Não é por acaso que na língua alemã a palavra seduzir – verführen – tem origem numa palavra – führen  – que significa guiar, conduzir. A sedução pela palavra mais não é do que uma coerção sublimada que a vítima acolhe com amor pelo líder. Temam-se, pois, as manifestações espontâneas e as multidões carecidas de quem as guie e dispostas a seguir o primeiro que se proponha tê-las por sequazes. Podem acabar, aqui sim, num novo fascismo.

 
 
 
Mas, uma vez que nos situámos no registo da petite histoire, terminemos com um episódio anedótico. Em Setembro de 1920, Guglielmo Marconi, velho amigo do poeta, navegou até Fiume a bordo do seu iate Elletra, incumbido pelo primeiro-ministro Francesco Nitti de dissuadir D´Annunzio da sua aventura.

Quando, no dia 21, entrou no porto da cidade sitiada, ouviram-se ovações da multidão de milicianos que aguardava no cais o herói da ciência. Durante dois dias, Marconi deliberou com o amigo. A certa altura, D´Annunzio foi ao Elletra servir-se do potente emissor de rádio do cientista para enviar uma proclamação – mais uma – pedindo apoio a todos os Estados do mundo. No momento de partir, dirigiram-se à varanda de onde D´Annunzio arengava aos seus homens, para que este produzisse outro dos seus discursos inflamados. De seguida, foi oferecida a Marconi uma prenda: uma metralhadora pesada que foi instalada no deque do Elletra.

Em 1924 a mulher de Marconi quis o divórcio para casar com o marquês Libório (que nome!) Marignolo. Sucede que o divórcio não estava previsto na lei italiana. Mas em Fiume, apesar de terminada a revolução, mantinha-se em vigor o direito da família revolucionário. Marconi e a mulher foram para lá, fixaram residência e naturalizaram-se. Passou a ser-lhes aplicável a lei da nacionalidade, a lei de Fiume. Então, divorciaram-se. Ambos sabiam que, poucos dias depois, Fiume seria integrada na Itália e que aquele direito da família deixaria de estar em vigor. Mais importante, Marconi recuperaria automaticamente a nacionalidade italiana. Mas continuaria divorciado. Uma outra espécie de Divorzio all´italiana (de Pietro Germi, 1961, com Marcello Mastroianni, bem melhor que Placido, e Stefania Sandrelli, incomparavelmente pior que a Antonelli).
 
Divorzio all´italiana, 1961
 

O divórcio só seria legalizado em Itália em 1 de Dezembro de 1970, muito depois da morte de Marconi. Um belo exemplo de fraude à lei em matéria de direito internacional privado. O mesmo fez Jean Monnet, para casar em 1934 com a italiana e casadíssima Sílvia. Esta adquire a nacionalidade soviética apenas para se divorciar. De imediato, Jean e Sílvia casam-se em Moscovo e o seu casamento seria reconhecido pela ordem jurídica italiana. Mas essa é outra estória.

 

José Luís Moura Jacinto
 

 

 

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