sábado, 19 de julho de 2014

Não escrevam no Facebook dos mortos.

 
 
 

Fotografia de Inge Morath
 
 
 
Não é andar em cima do túmulo, mas anda perto. Sei que as pessoas fazem aquilo numa pressa de confortar, num repente de fofura, num instinto de bondade, mas se deixassem o instinto e usassem a cabeça talvez chegassem à mesma conclusão que eu: há qualquer coisa de errado nessa mania de escrever no Facebook de quem acabou de morrer ou de quem já está morto há muito tempo. Não sei precisar qual é o pecado destes salteadores de murais, mas sinto que o acto é ofensivo. No mural de famosos ou de anónimo, é coisa que não se faz.
Se somos íntimos da pessoa, é patético usarmos o Facebook porque devemos dar as condolências à família no local apropriado. Se não somos íntimos, é patético fingirmos uma comoção íntima. Porventura, é isto que me irrita: a banalização das condolências, o comércio de pêsames. “Dar os sentimentos”, como diziam meus avós, é um acto pessoal e analógico que não deve entrar no circo virtual. Prestar a última homenagem só pode ser um contacto corporal e quase secreto. Sim, quase secreto, como a senha do computador. As condolências são apenas para o ouvido da mãe, mulher, filho ou irmão do falecido. Não se colocam assim num estendal para centenas ou milhares cuscarem na net. Dar os sentimentos requer silêncio, e não há silêncio na net. Mesmo com colunas desligadas.
Mas, se calhar, o pecado está na própria página do Facebook que continua a existir enquanto o seu proprietário já está na morgue. É como se o perfil de Facebook fosse um avatar com vida própria e sem respeito pelo fundador. Sim, há qualquer coisa de errado na perpetuação do Facebook de quem já morreu. Mais uma vez, percebo o instinto caridoso da malta que perpetua a página: querem transformar aquele Facebook numa espécie de mausoléu, querem ter um cemitério à mão de semear. Contudo, se não se importam, volto a dizer que a morte é um assunto demasiado sério (e analógico) para ficar tão exposto ao circo virtual. Se querem prestar homenagem ao falecido, desloquem-se até ao cemitério e coloquem umas flores (analógicas) no túmulo. Eu sei que este acto não é likável, mas é o único aceitável. Não facebookizem a morte.    
 
Henrique Raposo
 
Expresso – Diário, 30 de Junho.
 
 

2 comentários:

  1. por falar em mortos, li algures, que vitor constancio morreu no dia 9 do mês de julho!

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  2. O Henrique Raposo é quase tão virtuoso (a rima é involuntária) como o seu colega Daniel Oliveira, mas padece da mesma falta de sentido do ridículo, quer-me parecer. Ele não terá também opinião sobre o pauperismo ou o ultramontanismo?Urge publicá-la, não se aguenta esta espera.

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