quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Lisboa, 1941.

 
 
 
Annemarie Schwarzenbach (1908-1942)
 
 
 
 
A escritora, jornalista e fotógrafa suíça Annemarie Schwarzenbach (1908-1942) é bastante conhecida entre nós, graças a uma retrospectiva da sua obra fotográfica («Auto-Retratos do Mundo», no CCB, 2011) e à edição de dois livros, com chancela da Tinta-da-china: Morte na Pérsia e Auto-Retratos do Mundo. Menos conhecido é um breve livro intitulado Annemarie Schwarzenbach em Portugal (1941, 1942), que recolhe os artigos por si publicados aquando das duas visitas que realizou a Portugal. Coordenada por Gonçalo Vilas-Boas (que também assina uma excelente introdução), a colectânea desses textos, traduzidos por Maria Antónia Amarante, foi editada pelo Centro Interuniversitário de Estudos Germanísticos (Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra).
Não é este o momento mais adequado para falarmos da biografia extraordinária de Annemarie Schwarzenbach, limitando-nos a reproduzir o primeiro artigo que publicou sobre Portugal: «Lissabon – neues Leben in einer alten Stadt», saído em 19-III-1941 no Die Wetlwoche e traduzido entre nós, como se disse, num interessantíssimo livro coordenado por Gonçalo Vilas-Boas.   
 

Lisboa, 1941
Fotografia de Annemarie Schwarzenbach

 
 
 
Lisboa – vida nova numa cidade antiga
 
Em Lisboa, não se encontram muitas casas antigas que tivessem sobrevivido ao terramoto de 1755. No entanto, com as suas ruelas empedradas subindo as colinas, as largas escadarias, as fachadas barrocas das igrejas, lojas de vinhos, cafés e pátios orientais, há na cidade um carácter de antiguidade contemplativa; e a pétrea majestade de algumas frontarias palacianas com pesados portais, o esplendor do faustoso Mosteiro de Belém conferem-lhe um cunho de grandeza histórica enquanto a fresca brisa marítima e a doçura calorosa do sol, derramando a sua luz sobre os jardins e as colinas cobertas de oliveiras, lhe acrescentam uma nota de desembaraço e alegria de viver comum aos portos meridionais. Não me deveria ter surpreendido quando, não faz muito tempo, me dirigi ao endereço onde outrora funcionara a embaixada de um pequeno país abalado pelo início desta Guerra Mundial e, fora da cidade, a grande distância do centro, deparei com uma casa apalaçada que reunia todas estas características. Na ruela dominada pelo ruído dos cascos de cavalos, das peixeiras, das buzinas dos táxis, mal se abriam duas ou três janelas estreitas na parede da casa amarelo ocre que, no seu impressionante silêncio, lançava, ao sol do meio-dia, uma sombra indolente e solene. Algum tempo antes tinham-nos precedido, entrando pelo portão, duas carruagens, uma de dois e outra de quatro cavalos, dirigindo-se para a escadaria da entrada. Após a passagem, reinava agora um silêncio e uma frescura quase monacais. Enquanto esperava pelo criado que se apressara a subir a escada, tive ensejo de lançar um olhar ao pátio interior da casa onde floresciam, lado a lado, narcisos, cactos e camélias de um rosa profundo, de estilo mourisco. Depois, conduziram-me pela escadaria de pedra acima, passando pelas cópias enegrecidas de quadros a óleo espanhóis e romanos e, numa sucessão de salas luminosas decoradas com tapetes marroquinos e de Baccarat, tapeçarias e gravuras francesas amarelecidas, fiquei à espera do antigo embaixador que agora representa em Portugal a Cruz Vermelha do seu país.
         Em Ancara, havia alguns anos, conhecera o irmão que também era embaixador e tinha a paixão dos cavalos (…).
         Antes de me despedir dele, revelou-me o nome da ilustre família portuguesa em cujo palácio da cidade ele residia, por assim dizer na qualidade de refugiado.
         «Antes, a casa estava desocupada», explicou-me ele, «mas a catástrofe europeia que aniquilou todas as conquistas da nossa civilização ou as converteu em armas contra a humanidade sofredora, devolveu a Portugal um significado trágico no limiar de um mundo que está para se descobrir.»
         Esta conversa não foi a única do género que tive em Lisboa. Nos dias de hoje, a secção nacional da Cruz Vermelha da maioria dos países europeus tem representantes nesta cidade e o Comité Internacional de Genebra enviou um funcionário seu no passado mês de Novembro. A 22 de Dezembro, o primeiro barco da Cruz Vermelha largou do porto de Lisboa, rumo a Marselha, com um carregamento de donativos. Um comissário especial para os refugiados tem também um gabinete em Lisboa. 
 E isto é apenas um breve excerto do panorama que é o novo significado de Lisboa. Atente-se no seguinte: este é o último porto livre na costa europeia do Atlântico. Aqui aportam os paquetes da American Export Lines, a única companhia que ainda assegura o tráfego entre a Europa e os EUA. Aqui aportam os transatlânticos da América Latina e os navios de África e os clippers panamericanos. O Canal de Suez está encerrado; o Mediterrâneo volta a ser mais um lago interior vigiado por Gibraltar do que um mare nostrum. Quem quiser chegar à Índia, tem de contornar o Cabo da Boa Esperança, como nos velhos tempos, e o continente nego é imenso: os navios portugueses precisam de mais de quatro semanas para ir de Lisboa até Lourenço Marques, em Moçambique. Um amigo meu que foi enviado para o Egipto como observador militar ficou quase um mês retido em Lisboa, sem arranjar forma de chegar ao Cairo. E ele tinha passaporte e os vistos em ordem. Na grande sala de espera da Europa, estão sentados milhares de viajantes, uns sem papéis e sem direito de cidadania, outros sem dinheiro e quase todos sem uma autêntica esperança no futuro, aventureiros a contragosto, filhos empobrecidos e deserdados do nosso continente. A cidade do Infante D. Henrique, da qual, como de um recife, foram outrora lançados ao Atlântico os pequenos veleiros dos intrépidos descobridores, é hoje o ponto mais extremo da Europa de onde se espraia o olhar para Ocidente. Mas a atmosfera é diferente e no porto, à largada dos navios americanos, vêem-se muitas lágrimas.
 
Annemarie Schwarzenbach

 

 

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