terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Saraiva, Sena e Salazar.

 
 
Paula Rego, Salazar a Vomitar a Pátria, 1960
 
 

Foi durante o congresso internacional camoniano, realizado em Abril de 1980, na Universidade de Toronto, no Canadá, para comemorar o IV Centenário da morte de Camões. Entre os conferencistas e participantes, encontrava-se também António José Saraiva.
Pede a modéstia que cale, mas manda a verdade que diga que, para agradável surpresa minha, António José Saraiva, camonista de mérito e humanista respeitável, teve a amabilidade de elogiar a minha comunicação – “Leitura alegórica do Auto dos Anfitriões de Camões” (publicada primeiro na revista Bracara Augusta, Janeiro-Junho de 1980, e depois no meu livro Leituras Alegóricas de Camões e outros estudos de literatura portuguesa, Lisboa, IN-CM, 1999) – e de se pôr a conversar e a confraternizar comigo, tendo esse facto sido o início de um intermitente convívio transatlântico que viria a prolongar-se pelos anos fora.
No penúltimo dia do congresso, se não me engano, o Cônsul Geral de Portugal em Toronto deu uma solene recepção e um opíparo jantar a todos os congressistas e a algumas pessoas gradas da comunidade luso-canadiana. Em determinado momento, no decorrer dessa recepção e desse jantar, António José Saraiva, em visível estado de euforia, mas com a maior lucidez e na melhor das disposições, aproxima-se de mim e diz-me estas palavras textuais: 
- Ó Cirurgião, vamos fazer uma irreverência?
Refeito do meu espanto, perante uma saída dessas, voltei-me para ele e perguntei-lhe que tipo de irreverência tinha em mente.
 - Por exemplo - apressou-se ele a sugerir  - tiramos os casacos e as gravatas, subimos para cima de uma mesa, pedimos silêncio, e gritamos bem alto: - Viva Salazar!
Dizer da minha estupefacção diante de tal proposta é desnecessário. É que António José Saraiva, historiador da literatura e cultura portuguesas, crítico literário, ensaísta e autor, em parceria com Óscar Lopes, da melhor História da Literatura Portuguesa do seu tempo, era para mim, acima de tudo, o homem que professava ostensivamente o Marxismo e que, entre 1960 e 1974, conhecera as agruras do exílio, ou, pelo menos, do autoexílio, durante o regime salazarista. E, sendo assim, ele, para mim, poderia ser tudo, menos admirador público de Salazar, mesmo que essa proclamação de admirador fosse feita em tom festivo e irreverente. Mas, feita essa estranha e bizarra proposta, António José Saraiva desceu do mundo onírico e fantasista em que por momentos gravitara e voltou ao mundo prosaico da realidade. Com o que quero dizer que, na nossa condição de cidadãos livres, ele e eu, alegres e oriundos de um país finalmente democrático, depois de longas décadas de ditadura, brindámos à nova democracia portuguesa e divertimo-nos muito durante essa recepção e esse jantar e noutros momentos do congresso, e que António José Saraiva não voltou a falar-me de irreverência idêntica à que me propusera durante a recepção dada pelo Cônsul Geral Português em Toronto.
Vieram as férias de Verão desse ano lectivo e, como de costume, parti para Portugal, a fim de fazer pesquisas literárias nas bibliotecas e nos arquivos portugueses e visitar a família e os amigos. Quase logo após a minha chegada, encontrei-me com António José Saraiva na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde ele era então professor. Após os cumprimentos, perguntei-lhe o que pensava da política portuguesa.
Sem se fazer rogado, António José Saraiva informou-me em tom maior, sem quaisquer reticências nem ressalvas, que Portugal estava a saque; que a Revolução de Abril tinha falhado redondamente; que a tão apregoada “descolonização exemplar” tinha sido desastrosa; que o ensino andava pelas portas da amargura e que a vida académica portuguesa não passava de uma farsa e de uma fraude. Que me dava um exemplo. Dias antes, dirigindo-se ele para uma sala de aula na Faculdade de Letras, alguém lhe dá uma palmadinha nas costas, dizendo:
- Então, Colega, como está?
          Ele volta-se e qual não é o seu espanto quando dá com os olhos na pessoa que assim o cumprimentava. É que se tratava, nada mais, nada menos - dizia-me António José Saraiva com mal disfarçada raiva, à mistura com uma visível dose de desânimo e de tristeza - de um indivíduo que ele conhecera vagamente em Paris, durante o seu exílio político, indivíduo que fazia uns vagos cursos numa vaga universidade francesa de classe inferior. Um rapazola – prosseguiu ele -, sem quaisquer credenciais e sem qualquer cultura, que tomara de assalto, como vários dos seus comparsas, um posto de professor na Universidade de Lisboa e noutras universidades do país. Que perante essa e tantas outras misérias a que a chamada Revolução dos Cravos levara Portugal só havia um remédio para pôr ordem nas coisas públicas e governar esse país ingovernável: restaurar a monarquia e inventar um reizinho, uma figura de cariz paternal, à imitação de Salazar.
Ao ouvir essas palavras, disse a António José Saraiva que eu lhe fizera uma pergunta séria e que agradecia que me desse uma resposta séria, começando por lhe chamar a atenção para a injustiça que fazia a si próprio e a tantos outros professores competentíssimos a quem o regime ditatorial de Salazar tinha fechado as portas das universidades portuguesas, unicamente por razões políticas, e a quem a Revolução de Abril, num acto de louvável justiça exemplar, lhas tinha aberto.  
Perante esta minha observação, António José Saraiva disse-me que, independentemente de reconhecer esse facto irrefutável, nunca falara tanto a sério como nesse momento. Que se eu não vivesse do outro lado do Atlântico e visse bem as coisas por dentro, como ele as via, a toda a hora, pensaria da mesma maneira que ele.
Essas palavras de António José Saraiva deixaram-me tão intrigado, que eu, quando uns dias depois me encontrei com a Professora Maria de Lourdes Belchior, não resisti a referir-lhe esse facto. Que não podia ser – apressou-se ela a dizer. Que ela não acreditava nisso. Que eu não conhecia António José Saraiva. Que ele estava certamente a brincar comigo. Mas eu insisti que ele me garantira que falara a sério. Que, aliás, eu tinha precedentes. E para lhe provar a razão de ser da minha afirmação, contei-lhe o episódio ocorrido em Toronto, em 1980, por ocasião do congresso internacional camoniano. Que não senhor: ela tinha a certeza que António José Saraiva não pensava assim – rematou categoricamente Maria de Lourdes Belchior.
Ora aconteceu que quando, uns dias mais tarde, a Maria de Lourdes Belchior e eu nos íamos sentar para almoçarmos juntos num restaurante de Campo de Ourique, na Rua do Patrocínio, demos com os olhos em António José Saraiva, sentado a uma mesa sozinho, a acabar de almoçar. Fomos cumprimentá-lo e António José Saraiva convidou-nos a sentar-nos à mesa dele, o que nós fizemos. À sobremesa, eu encaminhei a conversa para a política portuguesa, a fim de tirar a prova real às convicções políticas de então de António José Saraiva. Depois de ele proferir os maiores horrores sobre a situação política, social, económica e cultural de Portugal, eu perguntei-lhe que remédios aventava ele para solucionar essa deplorável situação. E a resposta dele não se fez esperar. “Essa deplorável situação” resolvia-se com a restauração da monarquia, com um reizinho, uma figura paternal, à imitação de Salazar. Só dessa maneira se poderiam governar os portugueses, o povo mais individualista e ingovernável do planeta - concluiu António José Saraiva.
A Professora Maria de Lourdes ficou boquiaberta, mas convencida de que, na realidade, era assim que pensava por esse tempo António José Saraiva. 
Um dia contei estes factos à D. Mécia de Sena, já depois da morte do marido. Ficou ela surpreendida? De maneira nenhuma. Surpreendida ficaria se António José Saraiva persistisse na ortodoxia marxista que tinha publicamente assumido para atingir os seus objectivos políticos e académicos. Que Jorge de Sena tinha percebido isso há muito tempo. Uma das provas encontrava-se na dedicácia com que o mimoseara (aos que porventura não saibam esclareço que as Dedicácias de Jorge de Sena são as herdeiras legítimas das Cantigas de Escárnio e Maldizer dos nossos virtuosos e castos avoengos medievais). Que, continuou Dona Mécia, tendo vestido em jovem a farda da Mocidade Portuguesa e tendo sido legionário, António José Saraiva ainda um dia voltaria ao culto salazarista. Que se eu o não sabia, que ficasse a sabê-lo: o Marxismo de António José Saraiva tinha sido recebido em segunda mão, do irmão de D. Mécia, Óscar Lopes. Esse, sim, tinha lido e compreendido Marx e tinha abraçado o Marxismo-Leninismo em jovem. Que pela sua filiação no PCP (Partido Comunista Português), pela sua firme profissão de fé no Marxismo-Leninismo e pela sua prática fiel, sofrera ele as consequências e estivera preso e fora impedido de ensinar numa universidade portuguesa, enquanto não chegou a Revolução de Abril. O Marxismo de António José Saraiva, pelo contrário, prosseguiu D. Mécia, tinha sido colado com cuspe, o que aliás me tinha sido dito, vários anos antes, pelo próprio Jorge de Sena, mas a que eu não tinha dado a atenção que essa informação – e afirmação - de Jorge de Sena merecia, por nesse tempo eu ainda não conhecer pessoalmente António José Saraiva.
 
 
António Cirurgião
 
 
 
 

4 comentários:

  1. Para já não falar das patifarias que a mesma personagem fez a J. Rentes de Carvalho e que foram alvo de processo judicial em que AJS foi considerado culpado e condenado.

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  2. http://tempocontado.blogspot.pt/search?q=saraiva

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  3. Pode ser verdade, mas isso apenas evidencia o carácter irreverente, rebelde e sumamente independente de AJS. Para avaliar o seu mérito intelectual torna-se irrelevante a exigência de coerência política, que, essa AJS, claramente não a tinha. Mas a sua obra atesta com exuberância a sua originalidade analítica sobre temas da cultura portuguesa, bem como o seu domínio da Língua, equiparado aos melhores paradigmas históricos que conhecemos que se exprimiram nesta culta, doce e esbelta Língua, «última filha do Lácio». António Viriato, 13Dez2017

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  4. Pode ser verdade, mas isso apenas evidencia o carácter irreverente, rebelde e sumamente independente de AJS. Para avaliar o seu mérito intelectual torna-se irrelevante a exigência de coerência política, que, essa AJS, claramente não a tinha. Mas a sua obra atesta com exuberância a sua originalidade analítica sobre temas da cultura portuguesa, bem como o seu domínio da Língua, equiparado aos melhores paradigmas históricos que conhecemos que se exprimiram nesta culta, doce e esbelta Língua, «última filha do Lácio». António Viriato, 13Dez2017

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