domingo, 2 de abril de 2017

Memórias Perdidas - 15

 
 
 

 

Geralmente, nesta rubrica Memórias Perdidas fala-se de gente desconhecida, anónimos que quiseram legar à posteridade – e sob a forma de livro! – as marcas da sua existência efémera. Não é o caso destas Digressões Autobiográficas. O autor, Fernando Aguiar-Branco, foi uma figura pública sobejamente conhecida, nos meios forenses e não só. Foi um homem do Norte – o que, só por si, define um carácter, pelo menos para quem se assume como tal., na inteireza do seu modo de ver o mundo. Aguiar-Branco, aliás, parece ter interiorizado essa premissa,  assimilando uma noção íntima, pessoal e intransmissível, de honra. Talvez alguns a considerem antiquada, passadista. Mas ela atravessa de fio a pavio estas memórias da sua vida, a um ponto tal que a podemos considerar o eixo à roda do qual tudo o resto gira, tudo anda e se move, em ritmo compassado. Como se disse, esta noção de pundonor poderá parecer antiquada; mas, em várias ocasiões, Fernando Aguiar-Branco confessa sentir orgulho – honra, diríamos nós – em ser antiquado, até no que ao vestuário tange. Um dia, após o 25 de Abril, cruzou-se no Chiado com o general Câmara Pina, «e ambos íamos vestidos à moda antiga». O general de chapéu, o causídico com fato de três peças. Em quase todas as fotografias o vemos assim, quase dando a impressão, porventura acertada, que até aos domingos o Dr. Aguiar-Branco apertava o nó da gravata distinta.
Quanto ao mais, que mais interessa, o percurso de vida de um advogado, de alguém que sempre sonhou cursar Direito, seguindo a tradição familiar que anos volvidos transmitirá aos seus filhos. Os  pais, diz, «dominavam briosamente o português», não admirando por isso que estas Digressões Autobiográficas estejam muitíssimo bem escritas, num estilo refinado e elegante, que acusa, aqui e acolá, a formação jurídica do autor, o qual não desdenha utilizar de quando em vez um ou outro termo próprio do jargão das comarcas e das peças judiciais.
Porventura com excesso de humildade (ou desarmante e invulgar honestidade), confidencia ter sido um sofrível aluno da instrução primária – ou pior do que isso. Mesmo no liceu ou na Faculdade (de Coimbra, pois claro), Fernando Aguiar-Branco não se terá distinguido como um estudante de excepção, segundo o relato do próprio. Conquistou direito a acomodar-se na República dos Kágados e o seu nome chegou a ser ventilado para presidente da Associação Académica. Não tem pejo em confessar que, aquando da eleição para a presidência dessa ilustre agremiação, foi o único a votar contra o nome de Francisco Salgado Zenha. E de braço no ar, à vista de todos. Como, de resto, não tem problemas em proclamar-se admirador de Salazar, entusiasta da Mocidade Portuguesa (onde obteve alta graduação), crítico da mudança de nome da Ponte Salazar para Ponte 25 de Abril – sustentava que a Revolução dos Cravos nada fizera pela ponte, razão evidente para que esta, ao menos, fosse rebaptizada tão-só como «Ponte Sobre o Tejo». Também critica o facto de as estátuas ou referências a Salazar e a outras figuras do Estado Novo praticamente terem desaparecido da paisagem portuguesa, rural mas sobretudo urbana.
Desengane-se, porém, quem julgar que estamos perante um saudosista do antigo regime. Fernando Aguiar-Branco mostra-se um conservador-liberal, que defendia a ordem de outrora mas não deixou, na altura certa, no tempo que exigia coragem, de reclamar contra certos atropelos à liberdade. Foi deputado à Assembleia Nacional, mas entraria em conflito com Marcello Caetano – e, uma vez mais, por uma questão que, segundo ele, não era tanto política quanto de cortesia epistolar.
Estamos perante o retrato de um membro da burguesia nortenha, mesclada com aquilo que restava e resta da fidalguia de província, com casas solarengas e quintas verdejantes. Nasceu em Coimbra, na freguesia de Almedina, por um acaso académico: seus pais cursavam as Faculdades de Direito e de Letras. O pai de Fernando, ao contrário do filho, não tinha vocação de jurista, razão pela qual abandonou a prática do Direito, dedicando-se ao ensino – do português e do latim –, tendo produzido dois dicionários que, durante anos, foram obras de referência para gerações inteiras. Também sua mãe – personalidade fortíssima, pelo que percebemos – foi publicando manuais escolares, no domínio das línguas (português, francês, inglês). É aliás a referência materna que, aparentemente, prepondera na trajectória de Fernando Aguiar-Branco e, antes dele, de seus pais: «não havendo família do lado paterno, a vivência de meus Pais e filhos veio a desenrolar-se, a partir de 1925, nas terras de onde era oriunda a família de minha Mãe: na região do Minho (Vila Nova de Famalicão e Guimarães) e, de passagem, em Montalegre».  
Após passar pelo liceu Alexandre Herculano e pelo Colégio Almeida Garrett (onde foi marcado profundamente pelas lições de Filosofia do Padre Avelino Soares), Fernando segue para a Lusa Atenas. A sua estada em Coimbra foi passada na República dos Kágados, como se disse, e Fernando não foi, a crer nas suas palavras, um estudante brilhante. Mas, do mesmo passo, não se entregou à boémia. Cumpriu o curso, entre colegas que, segundo ele, eram maioritariamente «filhos de proprietários agrícolas, de funcionários públicos e da média burguesia». E acrescenta: «destes extractos sociais provinham os estudantes de Coimbra, na busca de uma licenciatura que lhes emprestaria prestígio social e também melhorias patrimoniais». Na época, uma das funções mais almejadas era a magistratura judicial, que, apesar do sacrifício da eterna errância de comarca em comarca, compensava os juízes com «o respeito, a todos os títulos merecido, que lhes tributavam as populações e os poderes públicos». O mundo de ontem.
A dada altura do curso, pensou Fernando empregar-se numa empresa pública, prática que, segundo ele, era muito seguida na época por colegas seus do curso liceal, oriundos de «boas famílias». Empregavam-se na Gazcila ou na Sacor com o pomposo nome de «inspectores» e tinham vida feliz, com elevada remuneração e pouco trabalho a fazer. A tentação era grande, mas a mãe cortou-a cerce. Para as despesas do curso, em lugar de se empregar, passou o jovem Fernando a contar com uma mesada do seu tio-avô Félix, sacerdote e conservador do Registo Predial em Santo Tirso. Por intermédio do doutor Abel Andrade, lente da Faculdade de Direito, enviava o tio Félix para Coimbra a mesada de Fernando; fazia-o por vale postal, «pois não era homem de cheques». Mais: «habituara-se, como era próprio de seu tempo, a pagar tudo em moeda corrente. Confiava pouco nos bancos. Receava que falissem». O mundo de hoje.  
Tendo apoiado os nacionalistas na Guerra Civil de Espanha, Fernando alinhou com os Aliados durante a 2ª Guerra, que viveu intensamente em Coimbra. Nessa altura – mais precisamente, em 1943 – foi sondado para «aderir ao comunismo», convite que declinou de imediato, e com veemência. A aversão ao comunismo, como se depreende destas memórias, prolongar-se-ia pelos anos fora, porventura até à morte. Era um homem da «direita moderada e conservadora, que respeita e defende os direitos e garantias fundamentais dos homens e dos povos e que repele os regimes totalitários».
Terminado o curso, regresso ao Porto. «A cidade do Porto, na década de quarenta, era ainda um burgo pequeno e com mentalidade e hábitos de vida bastante rurais. Todos se conheciam e sabia-se, com facilidade, por ser patente, quem era abastado, intelectual, político, profissional de relevo ou influente por qualquer outro motivo. A cidade vivia na dependência de meia dúzia de famílias, com poderes de influência». Terá mudado assim tanto, a Invicta?
Uma fotografia mostra-o a percorrer as ruas da cidade, impecavelmente hirto, de chapéu na cabeça e pasta na mão. Já um senhor, com apenas 25 anos de idade. Era então funcionário da Câmara Municipal do Porto, onde, segundo ele, «a rotina e a responsabilidade reinavam». O horário era contínuo: entrava-se às 11 da manhã e saía-se às 5 da tarde, sem intervalo para almoço. Mas, chegando a uma da tarde, claro está, cada um sacava da sua marmita e lá ia matando a fome, em horário de expediente; o odor e a higiene das salas de trabalho, naturalmente, ressentiam-se desta prática, para horror do jovem e ordeiro Fernando. Logo que pôde, partiu dali. Sabendo da existência de uma vaga no Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, concorreu ao lugar, beneficiando do apoio pessoal do Dr. Veiga de Macedo que lhe prometeu ir interceder junto de Oliveira Salazar. Se o fez ou não, não sabemos – mas o autor tem o cuidado de nos informar que, havendo candidatos mais classificados academicamente e que contavam com o apoio de cinco governadores civis, foi ele quem acabou por ser nomeado, corria o ano de 1948. A seguir, a vida do foro e, em resultado dela, a presidência da Fundação António de Almeida.
Católico, nunca se aproximou do CADC de Coimbra, que considerava demasiado conservador para seu gosto. Não admira, pois, a ligação que depressa estabeleceu com D. António Ferreira Gomes, mal este assumiu os destinos da diocese do Porto (e, mais tarde, com D. Manuel Martins). Estávamos em 1952, anos antes da famosa carta ao Presidente do Conselho. Aguiar-Branco mostra-se aqui um liberal, no sentido portuense da palavra, e essa marca é visível quando integrou os órgãos directivos da Ordem dos Advogados na cidade do Porto, promovendo conferências e palestras de nomes como Francisco Sá Carneiro, Francisco Salgado Zenha, Figueiredo Dias, Eduardo Correia, José Beleza, Rui Alarcão ou Mota Pinto. Previa-se uma conferência de outro advogado, Jorge Sampaio. Estava agendada para o dia 25 de Abril de 1974...
A revolução apanha Fernando Aguiar-Branco em Lisboa, onde se encontrava hospedado no Hotel Avenida Palace. Logo que pode, ruma ao Porto, confortado por saber que o golpe não implicava «domínio comunista» do país. «A partir da revolução, a minha acção política terminou», diz Aguiar-Branco; ainda assim, integrará as comissões de candidatura de Mário Soares e, depois, de Jorge Sampaio. A sua vida concentrava-se agora na Fundação António de Almeida. As últimas reflexões do seu livro são dedicadas a questões filosóficas sobre Deus, a vida, a morte. E assim terminam estas digressões autobiográficas, retrato de uma existência passada, como um dia será a de quem acabou de ler estas linhas.
 
 
António Araújo

 

 

 

 

 

2 comentários:

  1. Escapou-me aqui qualquer coisa... que fez o senhor de notável na vida, para além de andar de chapéu de três peças?

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  2. Escapou-me aqui qualquer coisa... que fez o senhor de notável na vida, para além de andar de chapéu de três peças?

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