segunda-feira, 3 de abril de 2017

O simbolismo de Blimunda, segundo José Saramago.

 
 
 


 
 
         Em fins de Abril de 1988, celebrou-se na Universidade de São Paulo, na cidade de São Paulo e em Campinas, um magno congresso internacional de Filologia, Linguística e Literatura, às dimensões do imenso país que é o Brasil, e entre os participantes contava-se também o omnipresente José Saramago. Ainda não tinha recebido o Prémio Nobel de Literatura, mas já era famoso internacionalmente, a ponto de poder afirmar-se, sem receio de errar, que, apesar das vastas centenas de participantes, vindos de todos os quadrantes do globo, podia chamar-se a esse congresso o congresso de José Saramago, tal foi a visibilidade que os meios de comunicação social do Brasil, desde a imprensa à rádio e à televisão, deram ao homem e à obra.
         No dia em que o Cônsul Geral de Portugal em São Paulo deu uma recepção em honra dos congressistas, vi-me eu, a determinado momento, por mera casualidade, a conversar com Pilar del Río, a jovem companheira de José Saramago. À distância dos anos, não me lembro, como é natural, dos tópicos constantes dessa conversa, mas lembro-me, como se fosse hoje, que lhe contei o que me tinha acontecido no dia em que eu estava a reler o Memorial do Convento, no contexto de um seminário sobre o romance português contemporâneo que ia dar durante a tarde desse dia.
Era por volta das onze da manhã do dia 22 de Março de 1988 e estava eu sentado numa poltrona, de lápis na mão, como é meu hábito, para ir tomando notas e ir sublinhando palavras, linhas ou parágrafos que me parecessem relevantes, a reler o dito romance, quando, sem saber como, enfiei a ponta do lápis no olho direito, mesmo estando de óculos postos (uso óculos desde os dezoito anos). Embora tenha experimentado uma pequena dor, não dei qualquer importância ao caso. De maneira que continuei serenamente com a leitura até à hora do almoço. Terminado o qual, entrei no carro e dirigi-me à minha universidade para às três da tarde dar início ao seminário. Como o número de alunos rondava pela meia dúzia, dava o seminário no meu escritório.
Se bem que notasse que algo de anormal se passava com o meu olho direito, por a dor ir aumentando paulatinamente e as lágrimas me irem brotando dele sem cessar, fazia de conta, como também é meu costume, que não era nada de cuidados, pelo que continuava a comentar o Memorial do Convento, como se nada fosse. Porém, decorridos uns quarenta e cinco minutos, uma das minhas alunas, com mais espírito de observação do que eu, chamou-me a atenção para esse meu olho. A minha resposta foi dizer que não se preocupasse, que não era nada de importante que merecesse cuidados especiais. Mas, volvidos alguns minutos, essa mesma aluna pediu-me que, por favor, interrompesse o seminário e fosse ver-me ao espelho, na casa de banho oposta ao meu escritório. Com certa relutância, acedi ao conselho dela e notei uma coisa que me inspirou uma certa preocupação: o olho direito estava a lacrimejar incessantemente e banhado em sangue. De maneira que, a insistência dessa aluna e de todos os seus colegas, interrompi o seminário, meti-me no carro e dirigi-me à sala de urgências do hospital da vila em que então morava – e ainda moro: Manchester Memorial Hospital, a quinze milhas de distância, aproximadamente, da universidade. Lembro-me que quando me encontrava a umas três ou quatro milhas do hospital as dores eram tão excruciantes e a visão tão deficiente (os olhos têm o condão da simpatia mútua), que dei comigo a perguntar-me se conseguiria chegar ao hospital. Com o auxílio do meu bom São Cristóvão, lá cheguei, sendo imediatamente atendido por uma enfermeira. Visto logo a seguir pelo médico de serviço, recordo-me de ter levado dele um valente raspanete por não me haver dirigido imediatamente ao hospital, logo que introduzira a ponta do lápis no olho. É que a córnea estava perfurada. A única coisa que ele podia fazer por mim naquele momento era dar-me uma forte dose de antibióticos, analgésicos potentíssimos e pôr-me um penso no olho direito, tapar-mo à pirata, e recomendar-me que na manhã seguinte fosse consultar sem falta o Dr. Nix, um oftalmologista excelente de Manchester, dizendo-lhe que ia da parte dele. E eu assim fiz. E o bom do Dr. Nix começou a tratar do meu olho direito, receitando gotas apropriadas, aplicadas de hora a hora, e um unguento, aplicado todas as noites, ao deitar-me, na esperança de que a córnea perfurada viesse a refazer-se, sem que fosse necessário proceder a uma operação, evitando dessa forma um risco muito sério. E quando se esperava que a córnea viesse a refazer-se no espaço de uns seis meses, aconteceu que levou mais de dois anos. E por quê? Porque, quando a córnea já parecia quase refeita, lá era eu despertado com um toque de telefone, obrigando-me assim a abrir o olho direito repentinamente, num acto reflexo, em vez de abri-lo suavemente, esfregando e abrindo-o a pouco e pouco, como o Dr. Nix me recomendava.
Ah! Recordo-me agora da razão que me levou a contar este facto, mais ou menos nos termos em que vai aqui narrado, a Pilar del Río. Foi o eu ter pedido licença para aplicar umas gotas no olho direito, no decorrer da nossa conversa.
         Durante esta nossa conversa, iniciada a três, continuada a dois e retomada a três, esteve José Saramago a ser entrevistado para uma estação de rádio e para uma estação de televisão. Terminadas as entrevistas, juntou-se a nós. E a primeira coisa que Pilar lhe disse foi que o Professor Cirurgião tinha uma história interessante para lhe contar. Que ele tinha que ouvi-la. De maneira que, a instâncias de ambos, repeti a José Saramago o que tinha acabado de contar à companheira dele. E foi eu concluir a narração da história de má memória e José Saramago a proferir estas palavras mais ou menos textuais:
         - Que coisa tão estranha e tão incrível! Parece impossível. É que Blimunda até é símbolo de luz.
         Claro que eu não lho disse então, mas certamente que o pensei. E por que o pensei, entrego-o hoje aqui ao ventre faminto da computadora, depois de, através dos anos, ter contado esta história autêntica a vários colegas e amigos. E que pensei eu afinal? Que a saída de José Saramago me fez lembrar, mutatis mutandis, o célebre gesto daquela velhinha engelhada e curvada pelos anos e interiormente movida pelo zelo religioso, ao levar piedosamente uma abada de achas à fogueira que estava a reduzir a cinzas o famoso herege e mártir Jan Hus. Segundo a lenda, o gesto da zelosa velhinha arrancou dos lábios moribundos de Jan Hus esta famosa exclamação: - O sancta simplicitas!    
 
António Cirurgião
 
 
 
 
 
 

3 comentários:

  1. Sorry, mas não entendi o final nem a relação com a imolação de Jan Hus.

    ResponderEliminar
  2. Será a história de Blimunda uma criação inteiramente original de Saramago? Há anos dei com uma descrição, num dos vários livros de viagens que se escreveram sobre Portugal no século XVIII, de uma mulher de Sintra com poderes sobrenaturais que logo me fizeram recordar a Blimunda. Não dou com o livro, agora que queria confirmar. Seria o James Murphy?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ok. Os escritores ou descrevem o que pensam ser o real ou imaginam-no ou recriam-no. Aliás li algures que o/um escritor escreve sempre em torno do mesmo tema. Mas continuo a não ver a relação com Jan Has. Também tenho uma história de lesão da córnea que poderia contar de maneira bem humorada mas eu fui mesmo e conduzindo ao banco do hospital ao ver o globo ocular cheio de sangue. O humor negro começou no momento em que dei entrada e continuou no sábado seguinte, quando tive de lá retornar.

      Eliminar