sexta-feira, 7 de julho de 2017

O Fim do Império (II): a via legal.

 
 
 
 
 
 
 
 
O Fim do Império (II): a via legal
 
3. Sobre as independências
Quanto ao modo, a descolonização portuguesa desenvolveu-se por acordos de independência – tal como acontecera na maioria dos Estados da África francófona. Outras eventuais modalidades registadas pelo direito internacional seriam: um acto unilateral (decisão do país colonizador, deliberação da ONU ou declaração unilateral de independência) ou a via da devolution (concessão progressiva de independência, que prevalecera no Império britânico). Acresce que, com a evolução do princípio da autodeterminação para direito à autodeterminação e independência dos povos coloniais, a descolonização autonomizou-se enquanto modo específico de formação do Estado por separação da sua metrópole e passou a ter natureza jurídica (assim se distinguindo da secessão).
Os acordos da descolonização foram negociados entre o Estado português e os movimentos de libertação de cada território sem intervenção significativa de terceiros – nomeadamente da ONU, sempre «uma presença débil»[1], embora  apadrinhadora. Resultaram sim da «irresistível»[2] convergência entre os movimentos de libertação nacional e o MFA, num quadro interno e internacional muito favorável aos nacionalistas africanos[3]. Kenneth Maxwell chega mesmo à conclusão de se ter assistido a uma «vitória silenciosa da diplomacia africana e não-alinhada»[4], salvo no caso de Angola em que esta fracassou rotundamente.
Houve, historicamente, vários tipos de acordos de independência, por exemplo, as chamadas “conferências constitucionais”. Embora na doutrina tal não seja manifesto, os acordos da descolonização portuguesa – dados os seus sujeitos, objecto e fins – devem qualificar-se como acordos internacionais, ou seja, convenções regidas pelo direito internacional. Tiveram formalmente um precedente histórico-jurídico nos acordos de Évian, assinados entre os representantes do Governo francês e da Frente de Libertação Argelina, em 18 de Março de 1962. Mas também existiram diferenças substanciais entre ambos modelos, tanto mais que os acordos de descolonização portugueses omitiram as questões relativas à chamada “sucessão de Estados”. Longa e penosamente negociados, os Acordos de Évian regularam (em três partes) o cessar-fogo, as garantias de autodeterminação e a organização de poderes públicos na Argélia durante o período transitório, e, além disso (aqui residirão as maiores diferenças com o modelo português), definiram cautelarmente a solução de independência da Argélia, as garantias quanto ao exercício de direitos dos argelinos e dos franceses residentes, os princípios de cooperação económica e financeira e foram sujeitos a duplo referendo, em França e na Argélia.
Já quanto à execução, ocorreram variadas violações, sobretudo dos Acordos de Évian e do Alvor. Os efeitos colaterais foram semelhantes na violência e desagregação social que provocaram, muito embora a descolonização portuguesa tivesse sido promovida pelos militares em guerra (e não contrariada, como ocorreu com os oficiais “putchistas” franceses, que mantiveram uma organização armada secreta, a OAS), e – ainda comparando – mais apressada e rapidamente absorvida[5].
 
4. O modelo jurídico-politico
O enquadramento jurídico foi formalmente cuidado: decorreu da Lei da Descolonização, de 27 de Julho de 1974, da Comunicação do Governo português à ONU, de 4 de Agosto, e dos princípios consagrados nos sucessivos acordos. O seu desenvolvimento foi acelerado, pois determinado pela conjuntura portuguesa, pela situação concreta de cada território e por factores internacionais. Decisivamente, as negociações iniciaram-se com os movimentos de libertação mais fortes (PAIGC e FRELIMO), tendo a situação militar condicionado o comportamento da parte portuguesa e a aceitação de três condições prévias (ao próprio cessar-fogo), impostas em conjunto pelos movimentos de libertação: (1) reconhecimento do direito à autodeterminação e independência de todas as colónias africanas portuguesas; (2) reconhecimento da sua legitimidade; e (3) exclusividade de representação. Ressalvando o caso (especial e mais complexo) de Timor, foram estas condições – resumindo precisamente o estatuto jus-internacional alcançado pelos movimentos de libertação nacional[6] – que acabaram por determinar e caracterizar a chamada “descolonização portuguesa”, pois os acordos limitaram-se a definir as vias de formação dos novos Estados e a regular a técnica de passagem de poderes, proporcionando apenas uma «independência sem descolonização»[7].
Salvo quanto à Guiné-Bissau – em que se limitou ao reconhecimento de Estado – Portugal aprovou, na sequência e em aplicação dos respectivos acordos de descolonização, as seguintes quatro leis constitucionais para regularem a orgânica transitória do poder político até à declaração de independência: para Moçambique (Lei n.º 8/74, de 9 de Setembro); para Cabo Verde (Lei n.º 10/74, de 15 de Novembro); para Angola (Lei n.º 11/74, de 27 de Novembro); e para S. Tomé e Príncipe (Lei n.º 12/74, de 17 de Dezembro).
A proclamação (unilateral) da República da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973, e o seu reconhecimento de jure, em 10 de Setembro de 1974, na sequência do Acordo de Argel celebrado entre o PAIGC e o Governo português, foram o primeiro passo da desintegração do Portugal colonial. A descolonização portuguesa dependeu (sempre) de dois factores principais: o tempo e o reconhecimento da autodeterminação. Em consequência da posição imóvel historicamente assumida, o Governo português ficara refém do muito propalado “efeito dominó” e, recebendo a “secessão” guineense ainda no seu mandato, Marcelo Caetano não tivera «a autoridade necessária para, de um momento para o outro operar uma viragem inesperada»[8].
Aliás, a falta de «uma estratégia de saída» passara mesmo a possibilitar a eventualidade de sucessivas declarações unilaterais de independência por todas as partes, perante o envolvimento do próprio Governo português em estranhas negociações com o PAIGC e misteriosas conspirações quanto a Angola e Moçambique[9]. Neste final algo descontrolado do Império Português, a separação dos territórios coloniais do Estado metropolitano podia mesmo ter-se transformado em desmembramento e só a Lei da Descolonização e o reconhecimento de jure da República da Guiné-Bissau abriram a via à independência rápida e geral, negociada e acordada com os movimentos de libertação nacional, como impunha o direito internacional. 
A descolonização portuguesa prosseguiu um modelo jurídico-político, que a configura, perante o precedente da Argélia, como «quase original»[10]. Tal modelo fundou-se, sobretudo, numa legalidade interna e internacional favorável aos movimentos de libertação nacional: no especial direito da descolonização criado pelos movimentos de libertação em desenvolvimento do direito à autodeterminação e independência dos povos coloniais e na Lei n.º 7/74, lei constitucional portuguesa fruto do “25 de Abril de 1974” e expressão «típica desta singularmente legalista revolução»[11]. Tal como no precedente caso da Argélia (que, quase até ao fim, a França defendera como sendo parte integrante do seu território nacional), aliás também exemplo e bastião para os movimentos de libertação nacional, o colonialismo português acabou sob condições tormentosas em tempos de luta armada e legitimidade revolucionária[12].
 
António Duarte Silva
 


[1] José Medeiros Ferreira, Cinco regimes na política internacional, Lisboa, Editorial Presença, 2006, p. 121.
[2] Kenneth Maxwell, “ Os Estados Unidos e a Descolonização Portuguesa (1974-1976)”, in Luís Nunes Rodrigues (coord.), Regimes e Império: as relações luso-americanas no século XX, Lisboa, Fundação Luso-Americana, 2006, p. 208.
[3] António Costa Pinto, O Fim do Império Português, Lisboa, Livros Horizonte, 2001, pp. 87/88, e Pedro Aires Oliveira, “A descolonização portuguesa: o puzzle internacional”, in Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires Oliveira (org.), O Adeus ao Império – 40 Anos de Descolonização Portuguesa, cit., p. 76.
[4] Kenneth Maxwell, “ Os Estados Unidos e a Descolonização Portuguesa (1974-1976)”, cit., p. 211.
[5] Especificamente sobre as entorses no caso argelino, entre vastíssima bibliografia, Guy Pervillé. “Accords d’Évian: les Français ont-ils été dupés?”, in L’Histoire, n.º 433/Março 2017, pp. 24/27.
[6] Com excepção da UNITA, à data ainda não reconhecida pela OUA. Ver António E. Duarte Silva, “Movimentos de Libertação Nacional, Descolonização e Formação do Estado”, in AAVV, Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Volume I, Coimbra Editora, 2012, pp. 383 e segs.
[7] A expressão é, original e sabiamente, de Aquino de Bragança, "Independence without Decolonization: Mozambique, 1974-1975", in AAVV, Decolonization and Africa Independence. The Transfers of Power, Yale University Press, Nova Haven e Londres, 1982. 
[8] Pedro Aires de Oliveira, “A Política Externa do Marcelismo: A Questão Africana”, in Fernando Martins (ed.), Diplomacia & Guerra, Lisboa, Edições Colibri, 2001,pp. 264.
[9] Por exemplo, Norrie MacQueen, “Portugal’s First Domino: ‘Pluricontinentalism’ and Colonial War in Guinea-Bissau, 1963-1974”, in Contemporory European History, 8, 2 (1999), p. 227. Sobre a eventualidade destas independências unilaterais de Angola e de Moçambique, também, entre outros, Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, Alcora , o Acordo Secreto do Colonialismo, Lisboa,  Divina Comédia Editores, 2013, p. 328
[10] Miguel Galvão Teles/Paulo Canelas de Castro, “Portugal and the Right of Peoples to Self-Determination”, in Archiv des Völkerrechts, 34.Band Heft 1, Março 1996, pp. 34/35. Note-se que estes Acordos de Évian eram, por obscurantismo, mal conhecidos  em Portugal e a delegação portuguesa foi surpreendida pela sua invocação nas primeiras conversações de Londres com o PAIGC (cuja delegação era assessorada por especialistas argelinos).
[11] Norrie MacQueen, A Descolonização da África Portuguesa - A revolução metropolitana e a dissolução do Império, Lisboa, Editorial Inquérito, 1997, p. 117.
[12] Em especial, sobre o êxodo das populações, Elsa Peralta, Bruno Góis, Joana Oliveira (coord.), Retornar. Traços de Memória do Fim do Império, Lisboa, Edições 70, 2017.

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