segunda-feira, 4 de abril de 2022

A Lisboa do Estado Novo em plena Segunda Guerra Mundial.




A Lisboa do Estado Novo em plena Segunda Guerra Mundial:

Vibrante como um esplêndido thriller, ao nível do grande rigor historiográfico

 



Dez anos depois da primeira edição, este professor catedrático da University College London é republicado em Portugal, trata-se de uma investigação apuradíssima, uma escrita cintilante e altamente acessível, credora de leitura atenta, Lisboa: A Guerra nas Sombras da Cidade da Luz, 1939-1945, por Neill Lochery, Casa das Letras, 2021. O autor defende que Lisboa foi uma encruzilhada fundamental oferecida por um país neutral que acolheu gente de muitas nacionalidades em trânsito para outras paragens, aqui trabalhou um número impressionante de espiões e se constituiu um centro de comércio de minérios raros, por Lisboa passaram celebridades, desde os Duques de Windsor, o traidor britânico Kim Philby, a colecionadora de arte Peggy Guggenheim, os artistas Marc Chagall e Max Ernst, os escritores Graham Greene e Saint Exupéry, mas também oposicionistas do nazi-fascismo sujeitos a severa vigilância e postos a viver na Ericeira ou nas Caldas da Rainha, sobretudo.

É um tempo único de uma cidade em cujo aeroporto aterravam aviões dos Aliados e do Eixo, de onde os hidroaviões partiam para as Américas. A figura central era Salazar, ele considerava que a Segunda Guerra Mundial incorporava duas grandes ameaças para o país: uma potencial invasão alemã ou espanhola e a possibilidade de o país perder o seu Império, quando se tornou inevitável a derrota alemã, Salazar passou a viver obcecado por uma Europa onde os soviéticos tinham um papel determinante político. O ditador certamente não desconhecia que o anterior Primeiro-Ministro britânico, Neville Chamberlain, tentara aplacar a sofreguidão territorial de Hitler oferecendo-lhe Angola. Ao longo  da sua primorosa e aguda investigação, Neill Lochery marca a distinção dos dois períodos em que mudaram as prioridades de Salazar durante a guerra, numa primeira fase, entre 1939 e 1942, dedicou-se a evitar a ameaça de invasão por parte do Eixo e de 1943 até ao termo da guerra teve de lidar com as cada vez maiores exigências dos Aliados, para estes assegurar os Açores como plataforma de tráfego aéreo era primordial. O autor não esquece a importância do volfrâmio, ingrediente vital da máquina de guerra alemã, irá dar enorme controvérsia a sua venda até ser sustada em 1944. E há uma polémica que permanece, não só em torno desse volfrâmio como de outras exportações, como o autor alerta: “Durante a guerra, o ouro era uma forma de pagamento muito mais segura do que o papel-moeda, mas os Aliados punham em causa as origens de uma grande percentagem dele. Afirmavam que esse ouro fora, num primeiro momento, saqueado nos países ocupados pelos alemães e, mais tarde, tirado às vítimas do Holocausto. No final da guerra, os nazis contrabandearam ouro para Lisboa, de onde partia para o Brasil e dali se dispersava para a América do Sul. Alegadamente, a caixa-forte do Banco de Portugal alberga até hoje barras de ouro marcadas com as insígnias nazis. Numa revelação embaraçosa, a Igreja Católica portuguesa foi obrigada a admitir que pagou obras no Santuário de Fátima com barras de ouro nazi que tinha misteriosamente obtido do Banco de Portugal”.

Neill Lochery descreve o burburinho da cidade, havia o fausto da Exposição do Mundo Português que contrastava com o estado da capital-refúgio: “Decadente, pobre e a precisar desesperadamente de se reinventar, Lisboa era, em setembro de 1939, uma espécie de Bela Adormecida descurada. A poucos minutos a pé da elegância dos cafés do Rossio, nem o espetacular céu outonal, de um azul vívido, era capaz de ocultar o facto muitos dos outrora belíssimos edifícios da cidade revelarem agora as consequências de décadas de má manutenção”. E é detalhado na descrição da apresentação da cidade, que à noite era uma cidade barulhenta, com cães a latir e os galos a cantar. “Enquanto as luzes se iam apagando pelo resto da Europa, Lisboa permanecia intensamente iluminada: os anúncios publicitários a cintilar no topo dos edifícios juntavam-se à ofuscante luz branca dos postos de iluminação pública”.

Temos uma narrativa sobre Salazar e o salazarismo, como o regime se foi preparando para a guerra, edificando a estratégia da neutralidade, acolhendo os fugitivos do nazismo e do fascismo, e temos uma observação dada pelo escritor Arthur Koestler, refugiado em lisboa durante 7 semanas, aqui encontrou inspiração para escrever o livro Arrival and Departure: “Lisboa era o gargalo da Europa, a última porta aberta de um campo de concentração, a maior parte da superfície do Continente. Ao observar-se aquela interminável procissão, percebia-se que o catálogo de razões possíveis para se ser perseguido sob a Nova Ordem era muito mais longo do que até um especialista podia imaginar: na verdade, ia do austríaco monárquico a judeu sionista. Nações, religiões e partidos europeus, todos eles estavam representados naquela procissão, incluindo nazis alemães da fação opositora e fascistas italianos caídos em desgraça”. Dá-nos o ponto da situação dos refugiados, o ato heroico de Aristides de Sousa Mendes, a tentativa rocambolesca dos alemães em querer capturar o Duque de Windsor, são mostradas as organizações judaicas que procuravam encaminhar o povo perseguido para a América ou até para a Palestina, temos o quadro movimentado dos espiões e até dos agentes duplos.

A entrada dos Estados Unidos na guerra introduziu um elemento novo, a corrida quase desesperada para comprar volfrâmio por parte dos alemães, a descoberta pela PVDE de uma rede britânica que viera organizar um plano de destruições no caso de haver uma invasão alemã, foi um período de péssimas relações entre britânicos e Salazar, fala-se inclusivamente do voo 777A em que morreu o ator Leslie Howard e Wilfrid Israel, uma figura fundamental no apoio aos judeus. E temos os Açores, cobiçados pelos Aliados, Salazar a demorar a resposta, ainda temia represálias alemãs, foram negociações penosas, Salazar sabia que não podia recusar o apoio que lhe era solicitado.

Assunto inevitável e quase omnipresente é a questão do ouro nazi, a sua proveniência dos bens espoliados aos judeus ou pilhado dos países ocupados. “Em 1943, já era claro que havia ouro roubado aos judeus. Esse ouro provinha de dentes, relógios, anéis e outras joias das vítimas do Holocausto, que eram posteriormente derretidos pela Casa da Moeda Prussiana e, em Frankfurt, pela empresa Degussa. De seguida, o ouro era transformado em barras e recebia o selo oficial do Reichsbank, de modo a aparentar ter uma origem oficial. As barras eram enviadas para o Banco Nacional Suíço, que as comercializava normalmente. Por volta do final da guerra, os alemães esforçaram-se por salvar o ouro encontrado em território alemão e francês. Lisboa era um destino óbvio: ali, poderia ser vendido na bolsa ou contrabandeado para a América do Sul”.

Obra indispensável para conhecer a visão do historiador britânico sobre o desempenho do Estado Novo e a importância de Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial.

 


 Mário Beja Santos



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