quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Cartas de Bruxelas (3).

 






                                                                             Cruor et sanguis




Tell her everything’s all right. And there aren’t any more guns is the valley. As palavras de Shane perto do final do filme homónimo de 1953, realizado por George Stevens, deixam um gosto de boca utópico. A violência de Shane preludia uma ordem pacífica, doméstica e civilizada. O pistoleiro impõe o rule of law contra o poder o pessoal e arbitrário de um barão do gado; os homesteaders avançam, e o Estado avança com eles. A marca de água do sedentarismo e da lei são os ranchos e a agricultura. No fim dos combates, o último acto de violência suprime-se a si mesmo; à imagem e semelhança de Moisés, Shane não entrará na Terra da Promissão. Quem se tornou culpado de matar, o homicida com as mãos sujas de sangue – cruor era a designação que os romanos davam ao sangue derramado – não pode transpor o limes sagrado da vida. O mal não deixa de ser mal por estar ao serviço do bem; não há lugar para nenhuma transfiguração compensatória. A morte pertence à morte, o sítio onde não vive ninguém. Um vento esgarrão que sopra do inferno afasta Shane da felicidade humana. A promessa cumpre-se apenas para o outro, Joe Starrett, marido e pai, que, corajoso, alicerça a casa na solidão dos espaços vazios e selvagens. Quando o medo se apodera dos restantes homesteaders, dispostos a abandonar o vale, Starrett decide ficar por saber que tem por si o direito. É um homem da vida –– não teme a morte. O princípio que vivifica, que dá alento e alma ao seu corpo e à sua actividade – os romanos chamavam a um tal princípio sanguis – é o seu direito. Mas precisamente por isso está em desvantagem diante dos profissionais da morte – os pistoleiros. Shane será a virtude defensiva sob uma forma autonomizada, virtude essa que só se exerce na prática de um mal. Mas no sacrifício voluntariamente aceite confirma-se e supera-se a lógica do bode expiatório. É Shane que enuncia a fórmula mágica que reduz a nada o sacrifício: A man has to be what he is, Joey. Can't break the mould. I tried it and it didn't work for me. Exigido por outra instância, o sacrifício de si seria a forma suprema da heteronomia, ao brotar da consciência inaugura a história pelo advento da irreversibilidade do tempo em oposição à imanência mítica da repetição: a história, porém, que será a história dos outros. Prevalece assim a lógica sacrificial, violenta, fascinada, no seu optimismo desesperado e desvairado, pelo acto final, pelo equilíbrio adquirido à custa da reificação do bem e do mal, da segregação eterna entre os eleitos e os réprobos.

John Ford anula esta perspectiva em O Homem que matou Liberty Valance, de 1962, cujo guião consiste na adaptação de um texto de Dorothy M. Johnson escrito, paradoxalmente, em 1953. Contrariamente a Shane, no filme de John Ford há, desde o início, um olhar desencantado. O progresso não se liga apenas à lei, vem pelo meio técnico dos caminhos de ferro: Hallie – Churches, high school, shops. Link Appelyard – Well, the railroad done that, desert still the same. O deserto resiste à casa do homem violento, o homem que matou Liberty Valance, que, como Shane, fica excluído da cidade; na sua casa ardida e inacabada crescem cactos, ainda que floresçam. Este é o elemento que o distingue de Liberty Valance. O mal alastra-se até aparecer como a verdade das coisas, lançando o seu manto sobre o mundo. Liberty Valance despedaça o livro da lei, espanca o advogado, Ransom Stoddard, e exerce a violência como se esta fosse a lei: I will teach you law, western law; a tal ponto o faz, que são os cúmplices que travam a sua violência. Stoddard, o instaurador do direito, renuncia à violência I’am staying and I’am not buying a gun either e fala em nome do que lhe é anterior, a statehood. No final, já senador, o olhar para trás de Stoddard parece reencontrar o mal, o excluído, no deserto, Tom Doniphon, o homem que realmente matou Liberty Valance no confronto com Stoddard, permitindo que o homem das leis guardasse desse modo as mãos limpas de sangue – ainda que não aos olhos dos outros. Essa é a razão que origina a ambiguidade que encerra o filme. It was once a wilderness, now it's a garden. Aren't you proud?pergunta Hallie. Talvez a a história tivesse acabado se a wilderness tivesse sido eliminada. Mas a derradeira fala do filme, sintomaticamente do funcionário dos caminhos de ferro, Nothing's too good for the man who shot Liberty Valance, pode suscitar a interpretação que vê na afirmação da mentira um desmentido da vida de Stoddard. Mas pode ser também a ratificação de que o gesto homicida que defende a ordem civilizada continua nela como uma memória querida, com a possibilidade de irromper de novo – ao contrário do que sucede em Shane, o mal está no meio de nós. Na melancolia de Stoddard há, porém, uma consolação. O direito serve para cruor não se transformar em sanguis.


                                                                                                João Tiago Proença






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