O ensaio de Emília Ferreira,
historiadora de arte entre dezembro de 2017 e fevereiro de 2025, dirigiu o
Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC), é uma história de assertividade em
tempos de Covid-19 e confinamento, o país em casa, mas este museu manteve-se
online, disponibilizando conteúdos numa nova e bem-sucedida estratégia de
coligação. Assim nasceu Quando o museu fechou, Fundação Francisco Manuel
dos Santos, maio 2025.
Não entendo muito bem porque nos
mantemos silenciosos sem contar as nossas histórias em tempos tão calamitosos
como os que vivemos em 2020 e 2021. Houve instituições que ofereceram uma
inusitada companhia a quem estava confinado. Guardo o remorso de ainda não ter
enviado uma carta de gratidão para o Metropolitan Opera House, de Nova Iorque,
todas as noites tínhamos direito a um espetáculo gratuito do soberbo arquivo
desta lendária sala de espetáculos nos Estados Unidos, récitas de sonho, uma
deslumbrante companhia para quem não devia sair de casa; e outras famosas casas
de ópera também abriram os seus tesouros ao público, não faltou solidariedade,
é bom não esquecer como se reinventaram laços nesse tenebroso período.
O que nos conta Emília Ferreira?
Passado o choque inicial, uma equipa pôs-se em movimento, organizaram-se
conteúdos, deram-se aulas de desenho através do Youtube, deram-se informações
sobre obras e artistas da coleção do MNAC, entre outras iniciativas. “Passar do
real para o digital não foi um caminho fácil ou óbvio.” E quando se lançaram
iniciativas ninguém sabia o tempo do confinamento nem muito menos que iríamos
atravessar dois confinamentos. Naquele ano de 2020, inspirados numa das
exposições, intitulada Sarah Affonso: Os Dias das Pequenas Coisas criou-se
um diário online com o nome de Diário das Pequenas Coisas; apareceu
também o Diário de Dilemas Quotidianos. E assim arrancaram formas de
convívio num total de 137 dias. A autora dá-nos uma narrativa entusiasta do que
se pôs em marcha, o que pedia o serviço educativo, como se utilizou a página do
Facebook, como se foi adaptando a linguagem, a opção de conteúdos. É nos
apresentado o MNAC, nascido em 1911, ficou instalado numa parte do antigo
Convento de São Francisco da Cidade, e começou-se a falar das obras da coleção,
das histórias que acompanham as obras, criou-se mesmo um glossário que era
semanalmente publicado, em que se esclarecia o que em arte quer dizer quando
falamos de abstração, assemblagem, instalação, performance, ready-made ou
suporte, fizeram-se pequenos filmes, preparou-se a interação, mostrou-se o
interior e o funcionamento do MNAC.
A missão parecia dada por acabada com
o fim do primeiro confinamento, o de 2020, depois anunciou-se o segundo
confinamento, em janeiro do ano seguinte, o número de seguidores online não
parava de crescer, houve que desdobrar as atividades, os projetos. Lançou-se o
desafio de um programa para a academia, via Youtube, um ciclo de conferências,
rubricas com entrevistas de ativistas, os seus depoimentos, contou-se a
história do bairro, o Chiado cultural e elegante, o Facebook ia possibilitando
a publicação e a antecipada comunicação dos conteúdos. Foram enviados convites
para as revistas, houve grande adesão, de 1 de fevereiro até ao outono de 2021
publicaram-se 180 depoimentos de artistas contemporâneos. Se havia o Fungagá da
Bicharada, programa para crianças desenvolvido por Júlio Isidro, em sua
homenagem criou-se o Fungagá das Artes, concebido como uma programação
específica pensada para crianças e jovens, ofereciam-se vários jogos e cursos
de desenho. O curso foi coordenado por Nelson Ferreira, resultou em cheio, o
auditório crescia, contou-se a história de uma das mais famosas pinturas
portuguesas, o Grupo do Leão, pintado por Columbano Bordalo Pinheiro.
“Um dos propósitos de trabalhar o Grupo do Leão fora o de abordar o tema
da relação. Os amigos à mesa, trocando ideias e gizando planos. Sendo essa uma
das coisas simples que nos estava então vedada, o assunto tornava-se aliciante
por si mesmo. Dar informações sobre o artista e quem o acompanhava nessa
pintura apresentou o autor e os seus amigos, que frequentavam a cervejaria Leão
d’Ouro, para a qual a pintura foi originalmente criada. À mesa do Leão d’Ouro,
Columbano representara o seu clube de amigos pintores. Eram todos mais ou menos
da mesma idade. Mas e os nossos seguidores? Quem representariam? Lembrámos que,
dada a liberdade do desenho, podiam convidar para essa mesa toda a gente,
independentemente da idade, género, nacionalidade, profissão, cor de pele,
religião, etc. Depois pedimos que enviassem os desenhos para o MNAC, porque
queríamos preparar-lhes uma surpresa que já teria lugar no museu.”
Um dia, findo o segundo confinamento,
na reabertura do museu criou-se uma exposição com os trabalhos inspirados no
Grupo do Leão. Muitos dos miúdos que apresentaram os seus desenhos queriam
conhecer o Nelson, adoraram falar com ele, afinal no online pode haver um
milagre de relação humana.
Há muitas razões para ler esta obra de
empenho e dádiva profissional, e tomar nota das conclusões da autora.
Digitalizar não basta, diz ela. É preciso fazer muito mais no sentido do
estudo, da divulgação das coleções, da educação e fruição pública. O Serviço
Educativo de um museu é o eixo da comunicação científica da instituição para o
exterior. Incompreensivelmente, em Portugal continua a sofrer de
desinvestimento. O mesmo se aplica à comunicação, sendo necessária e urgente a
formação de equipas com competências técnicas específicas. No MNAC, o que ficou
daquele tempo? Nas redes sociais, uma linguagem direta e próxima. Isso não
voltou atrás. E ficamos felizes quando alguém nos escreve para dizer que gosta
de nos seguir no Facebook. Que mais nos ficou? O desejo de maior proficiência e
abrangência.
Os números falam por si, passou-se de
5 mil para 130 mil seguidores, chegou-se a pessoas em todo o mundo que se
puseram a desenhar. Porquê contar esta história? Com a poeira assente, feitos
os balanços com a cabeça fria, o que aqui se conta é que a presença online de
um museu, mesmo decorrente de uma situação verdadeiramente excecional, pode
contribuir para reinventar metodologias, linguagens e recursos, alargar
públicos, aproximar os artistas do público, tornar a visita aos museus, às suas
coleções e exposições, um acontecimento para as nossas vidas, sabendo de
antemão que quer pelo online quer pela digressão pelo museu ficamos melhores,
mais livres.
Mário
Beja Santos
Sem comentários:
Enviar um comentário