quarta-feira, 9 de julho de 2025

Se o público não pode vir ao museu, o museu entra em casa do público.

 




 

          O ensaio de Emília Ferreira, historiadora de arte entre dezembro de 2017 e fevereiro de 2025, dirigiu o Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC), é uma história de assertividade em tempos de Covid-19 e confinamento, o país em casa, mas este museu manteve-se online, disponibilizando conteúdos numa nova e bem-sucedida estratégia de coligação. Assim nasceu Quando o museu fechou, Fundação Francisco Manuel dos Santos, maio 2025.

          Não entendo muito bem porque nos mantemos silenciosos sem contar as nossas histórias em tempos tão calamitosos como os que vivemos em 2020 e 2021. Houve instituições que ofereceram uma inusitada companhia a quem estava confinado. Guardo o remorso de ainda não ter enviado uma carta de gratidão para o Metropolitan Opera House, de Nova Iorque, todas as noites tínhamos direito a um espetáculo gratuito do soberbo arquivo desta lendária sala de espetáculos nos Estados Unidos, récitas de sonho, uma deslumbrante companhia para quem não devia sair de casa; e outras famosas casas de ópera também abriram os seus tesouros ao público, não faltou solidariedade, é bom não esquecer como se reinventaram laços nesse tenebroso período.

          O que nos conta Emília Ferreira? Passado o choque inicial, uma equipa pôs-se em movimento, organizaram-se conteúdos, deram-se aulas de desenho através do Youtube, deram-se informações sobre obras e artistas da coleção do MNAC, entre outras iniciativas. “Passar do real para o digital não foi um caminho fácil ou óbvio.” E quando se lançaram iniciativas ninguém sabia o tempo do confinamento nem muito menos que iríamos atravessar dois confinamentos. Naquele ano de 2020, inspirados numa das exposições, intitulada Sarah Affonso: Os Dias das Pequenas Coisas criou-se um diário online com o nome de Diário das Pequenas Coisas; apareceu também o Diário de Dilemas Quotidianos. E assim arrancaram formas de convívio num total de 137 dias. A autora dá-nos uma narrativa entusiasta do que se pôs em marcha, o que pedia o serviço educativo, como se utilizou a página do Facebook, como se foi adaptando a linguagem, a opção de conteúdos. É nos apresentado o MNAC, nascido em 1911, ficou instalado numa parte do antigo Convento de São Francisco da Cidade, e começou-se a falar das obras da coleção, das histórias que acompanham as obras, criou-se mesmo um glossário que era semanalmente publicado, em que se esclarecia o que em arte quer dizer quando falamos de abstração, assemblagem, instalação, performance, ready-made ou suporte, fizeram-se pequenos filmes, preparou-se a interação, mostrou-se o interior e o funcionamento do MNAC.

          A missão parecia dada por acabada com o fim do primeiro confinamento, o de 2020, depois anunciou-se o segundo confinamento, em janeiro do ano seguinte, o número de seguidores online não parava de crescer, houve que desdobrar as atividades, os projetos. Lançou-se o desafio de um programa para a academia, via Youtube, um ciclo de conferências, rubricas com entrevistas de ativistas, os seus depoimentos, contou-se a história do bairro, o Chiado cultural e elegante, o Facebook ia possibilitando a publicação e a antecipada comunicação dos conteúdos. Foram enviados convites para as revistas, houve grande adesão, de 1 de fevereiro até ao outono de 2021 publicaram-se 180 depoimentos de artistas contemporâneos. Se havia o Fungagá da Bicharada, programa para crianças desenvolvido por Júlio Isidro, em sua homenagem criou-se o Fungagá das Artes, concebido como uma programação específica pensada para crianças e jovens, ofereciam-se vários jogos e cursos de desenho. O curso foi coordenado por Nelson Ferreira, resultou em cheio, o auditório crescia, contou-se a história de uma das mais famosas pinturas portuguesas, o Grupo do Leão, pintado por Columbano Bordalo Pinheiro. “Um dos propósitos de trabalhar o Grupo do Leão fora o de abordar o tema da relação. Os amigos à mesa, trocando ideias e gizando planos. Sendo essa uma das coisas simples que nos estava então vedada, o assunto tornava-se aliciante por si mesmo. Dar informações sobre o artista e quem o acompanhava nessa pintura apresentou o autor e os seus amigos, que frequentavam a cervejaria Leão d’Ouro, para a qual a pintura foi originalmente criada. À mesa do Leão d’Ouro, Columbano representara o seu clube de amigos pintores. Eram todos mais ou menos da mesma idade. Mas e os nossos seguidores? Quem representariam? Lembrámos que, dada a liberdade do desenho, podiam convidar para essa mesa toda a gente, independentemente da idade, género, nacionalidade, profissão, cor de pele, religião, etc. Depois pedimos que enviassem os desenhos para o MNAC, porque queríamos preparar-lhes uma surpresa que já teria lugar no museu.”

          Um dia, findo o segundo confinamento, na reabertura do museu criou-se uma exposição com os trabalhos inspirados no Grupo do Leão. Muitos dos miúdos que apresentaram os seus desenhos queriam conhecer o Nelson, adoraram falar com ele, afinal no online pode haver um milagre de relação humana.

          Há muitas razões para ler esta obra de empenho e dádiva profissional, e tomar nota das conclusões da autora. Digitalizar não basta, diz ela. É preciso fazer muito mais no sentido do estudo, da divulgação das coleções, da educação e fruição pública. O Serviço Educativo de um museu é o eixo da comunicação científica da instituição para o exterior. Incompreensivelmente, em Portugal continua a sofrer de desinvestimento. O mesmo se aplica à comunicação, sendo necessária e urgente a formação de equipas com competências técnicas específicas. No MNAC, o que ficou daquele tempo? Nas redes sociais, uma linguagem direta e próxima. Isso não voltou atrás. E ficamos felizes quando alguém nos escreve para dizer que gosta de nos seguir no Facebook. Que mais nos ficou? O desejo de maior proficiência e abrangência.

          Os números falam por si, passou-se de 5 mil para 130 mil seguidores, chegou-se a pessoas em todo o mundo que se puseram a desenhar. Porquê contar esta história? Com a poeira assente, feitos os balanços com a cabeça fria, o que aqui se conta é que a presença online de um museu, mesmo decorrente de uma situação verdadeiramente excecional, pode contribuir para reinventar metodologias, linguagens e recursos, alargar públicos, aproximar os artistas do público, tornar a visita aos museus, às suas coleções e exposições, um acontecimento para as nossas vidas, sabendo de antemão que quer pelo online quer pela digressão pelo museu ficamos melhores, mais livres.

 

                                                                        Mário Beja Santos


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