terça-feira, 6 de março de 2012

Retratos (1). Marina Tsvetaeva: a insubmissa.


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.....Entre as singularidades russas encontra-se algo que nos soa familiar: a Rússia é um país de poetas. Como disse o Metropolita Filaret do povo russo: “Há nele pouca luz, mas muito calor”. O calor daqueles que preferem a poesia ao pensamento. Mas a similitude connosco é aparente: nós admiramos os nossos poetas calorosamente, os russos calorosamente veneram os seus.
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Marina Tsetaeva (1892-1941) é uma luz cintilante que ascendeu ao firmamento da poesia russa. Uma poetisa de extremos:


         Pecarei –  como peco – como pequei: Com paixão!
         Deus deu-me sentidos – todos os cinco!


Poeta da desmesura, sempre disposta a atingir o limite e a ultrapassá-lo. Em certa ocasião, acossada, como quase sempre após 1917, por extrema miséria material e mesmo fome, foi obrigada a deixar as duas filhas num orfanato da Moscovo bolchevique, onde julgou que seriam alimentadas como ela não podia fazer. Mas, por desventura, a mais nova morreu de fome, o que deixou a mãe com um profundo sentimento de culpa. Pouco depois, em poema dedicado a um antigo amante, para dar nota da mútua destruição que o amor produz, descreve-se a si própria como a única responsável:
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         Acusada de infanticídio.
         Cruel e exausta.
         E do inferno perguntar-te-ei,
         “Minha querida o que te fiz?”


À sua voz desalinhada e brilhante aliou, convenientemente para o mito que os russos adoram e alimentam, um destino trágico. Juntou-se, assim, a tantos outros escritores russos. Mas Tsetaeva era dominada por um carácter indómito que sempre namorou o abismo.
Como se formou este carácter? Para tal contribuiu decerto a educação, obra de sua mãe, que propugnava uma postura inflexível no plano dos valores: acima de tudo, em todas as circunstâncias, a dignidade, a coragem e o rigor; inculcou-lhe ainda a convicção de que todo o dinheiro é sujo e de que quem cede à ganância perde a alma. Rememorando a infância, disse-nos: “Era impensável procurar obter a satisfação de qualquer desejo. Bastava que tivéssemos vontade de uma coisa para que ela não nos fosse dada.”
Marina refugiou-se no mundo das palavras. E foi pelas palavras que viveu, no fio da navalha, sempre inflexível. O escritor Nicolai Elenev deu dela esta impressão: “Os seus olhos cinzentos eram frios, transparentes, olhos que jamais conheceram o medo, ainda menos a oração ou a submissão.” Nada melhor a revela que os dois seguintes episódios.
Nascida em 1892, vinte e três anos depois, em plena guerra, quando o seu marido Serguei Efron se encontra entre as forças russas, o seu sempiterno espírito de contradição leva-a a escrever um poema de louvor à Alemanha, pátria da literatura e da filosofia, que lê em várias soirées literárias de Moscovo:
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         Acossada pelo mundo inteiro
         Tens inimigos sem conta,
Como te poderia abandonar,
Como te poderia trair?
Onde encontraria a sabedoria de dizer
Olho por olho, dente por dente?
Oh Alemanha, minha loucura,
Oh Alemanha, meu amor!




Depois da revolução, durante a guerra civil, fica separada do marido: ela em Moscovo, isolada durante cinco anos, entre 1917 e 1922, ele a combater os bolcheviques, entre os exércitos brancos. Convidada para sessão que decorreu na sala do Museu Politécnico de Moscovo em honra das poetisas russas, não poderia encontrar melhor ocasião para uma vez mais provocar. É bem verdade que o poeta Valery Briussov, apresentando as suas convidadas, afirmou que as mulheres só se distinguiam na poesia quando se dedicavam ao tema que conhecem melhor, o amor. Marina decide provar o contrário, entregando-se, com uma audácia louca, a uma declamação do seu poema “Campo dos Cisnes”. Ora, as aves do título eram o símbolo dos voluntários brancos e o poema glorificava aqueles que lutavam contra os bolcheviques. Por que razão fazer o elogio de exércitos que, ainda por cima, nesse momento já se encontravam em derrocada? Anos depois, explicou a sua atitude: “Sobretudo, aqui, em Moscovo, tinha de pagar uma dette de honneur. E, aliás, para além de toda a honra, foi assim, por nada, sem nenhum objectivo. Muito simplesmente: Porque não?”







O poeta Ilya Ehrenburg dela dirá, evocando essa aparição: “Os excelentes versos de Tsvetaeva subsistirão, como subsistirá a sede de viver, o desejo de tudo destruir, a luta de um só contra todos e o amor glorificado pela morte que vagueia.”
A luta solitária de Tsvetaeva continuou no exílio, a partir de 1922. Mas a sua alma russa ansiava pelo regresso à Mãe-Pátria. O marido, Serguei, para apagar a mancha do seu passado branco, passou a servir a NKVD.
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Bandeira da NKVD
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Para os russos de então, nas conversas clandestinas o acrónimo NKVD significava ne znaiu kogela vernus domoi (“não sei quando regressarei a casa”). Pois Serguei e Marina queriam regressar o mais rapidamente possível. Ele envolveu-se nos assassinatos de opositores: em 1937, de Ignatz Reiss, espião soviético que desertara; no mesmo ano, talvez tenha estado relacionado com o desaparecimento do general Kutiepov, presidente da União dos Veteranos Russos em França; em 1938, diz-se que teria auxiliado a eliminação de Lev Trostky, o filho do grande revolucionário e responsável em Paris pelo arquivo do pai e pela organização dos seus apoiantes na Europa, embora a hipótese seja pouco crível. O certo é que Serguei aparece então em Moscovo e Marina, em 1939, segue-lhe os passos. Regressaram a casa, sem saber que o seu destino estava traçado. Perdida a utilidade para o regime, Serguei foi preso por espionagem e executado em 1941.
Marina não foi condenada. Estaline tinha um estranho respeito pelos poetas. Nenhum dos mais famosos foi executado no seu tempo. Gumilev, o pai do filho de Anna Akhmatova, foi-o em 1921, antes portanto de Estaline chegar ao poder.
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Gumilev, Akhmatova e o filho, 1913
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Mayakovsky e Yesenin suicidaram-se. Blok morreu de fome. Pasternak e Ahmatova sobreviveram. Zabolotsky também, este no Gulag, para onde também foi enviado Osip Mandelstam, que aí faleceu de fome e frio.
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Homenagem a Mandelstam
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Os grandes poetas russos seriam respeitados pelo poeta georgiano Estaline? Ou melhor, pelo poeta Soselo? Ainda muito jovem, Estaline publicou, sob esse pseudónimo, vários poemas que demonstravam um talento notável. Foram muito lidos e reconhecidos como clássicos georgianos, devido sobretudo à delicadeza e pureza do ritmo e da linguagem. Pouco depois, abandonou as veleidades artísticas. Nas suas palavras, “Perdi o interesse em escrever poesia porque requer toda a nossa atenção e uma tremenda paciência”. Doravante, teria algo mais importante a que dedicar a sua atenção.

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Estaline, poeta, 1902




Mas é notório que Estaline venerou – e invejou – os grandes poetas mesmo quando, como Mandelstam, denunciaram a desumanidade do ditador. Mandelstam, que cometeu o dislate de gozar o ditador em verso, foi preso. As ordens de Estaline foram: “Isolar mas preservar”. Não foram cumpridas.

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Mandelstam, prisioneiro da NKVD




O momento fantástico que revela na sua plenitude a obsessão de Estaline pela arte poética foi aquele em que decidiu colaborar pessoalmente na edição em russo de “O Cavaleiro na Pele da Pantera”, a grande obra nacional georgiana do poeta nacional Rustavelli, que viveu no século XII.
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Manuscrito de Rustavelli

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Quando lhe chegaram rumores de que haveria uma nova tradução, Estaline mandou libertar da prisão o tradutor, Shalva Nutsubidze. E, então, assistiu-se a esta cena única que só na Rússia seria possível: o terrível algoz sentado ao lado da sua vítima, a reler tranquilamente todo o poema e a discutir serenamente a tradução. E então, Estaline atrevia-se a propor delicadamente a sua própria versão de alguns dos versos, perguntando, humildemente, a Nutsubidze: “ - Está bem assim?” Conhecendo a alma do poeta georgiano, à imagem do russo, não nos podemos impedir de vislumbrar o tradutor a bater-se altivamente pela sua versão, por uma mera palavra disposto a regressar ao calabouço. Mas consta que até apreciou algumas sugestões de Estaline.
Deve notar-se que a posição de Nutsubidze era singularmente mais precária que a dos seus congéneres russos: em primeiro lugar, não era um génio, apenas um académico, filósofo e tradutor; em segundo, Estaline não tinha os mesmos pruridos com os poetas georgianos. Na verdade, tinha mandado executar o maior deles, Titsian Tabidze. Afinal, os georgianos sabiam demais sobre o seu passado.
De todo o modo, Estaline terá compreendido aquilo que uma das suas vítimas, Zamiatine, queria dizer quando afirmou que “a verdadeira literatura não é feita por obsequiosos e prudentes funcionários, mas por dementes, eremitas, heréticos, sonhadores e revolucionários”. A literatura russa dá-nos muitas provas da justeza dessa afirmação. Marina Tsetaeva foi tudo isso. Porque nunca cedeu a compromissos, acabou por se render apenas quando, como escreveu à filha que lhe sobreviveu, “já não sou eu mesma”. Tendo abandonado Moscovo e sido, com tantos outros russos, transportada para leste por ocasião da invasão alemã, sem meios para subsistir, suicidou-se em Agosto de 1941.
Razão tinha Mandelstam: “Na Rússia a poesia é mesmo valorizada, aqui mata-se por ela”. Entre nós, nunca se chegou a tal extremo.
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Homenagem a Marina Tsvetaeva
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Depois da morte, todos os poetas russos são homenageados. Com uma diferença: o que mais curvou a cerviz face a Estaline e que teve o direito a sobreviver-lhe, Ilya Ehrenburg, teve igualmente direito a um retrato do amigo Picasso na pedra tumular.

José Luís Moura Jacinto


Túmulo de Ehrenburg

2 comentários:

  1. marina tsvetaeva foi morta, suicidada. Pessoas de Elabuga viram os agentes saindo de sua casa.

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  2. marina tsvetaeva foi morta, suicidada. Pessoas de Elabuga viram os agentes saindo de sua casa.

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