quinta-feira, 25 de julho de 2013

Moçambique: notas de campo (16).

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Viajei de chapa, os transportes semi-colectivos de passageiros, as Toyota Hiace, da cidade de Maputo para o bairro do Fomento, na Matola, uma distância de cerca de dez quilómetros. A entrada no chapa, na baixa de Maputo, foi mais ou menos uma disputa pela sobrevivência em que nos atropelávamos uns aos outros. Dentro do chapa, pouco depois, a música em bits africanos soava a altos berros, a ponto de terminar os cerca de trinta minutos do percurso com dores nos ouvidos. Num transporte previsto para quinze passageiros magros e baixos, estavam vinte, mais o motorista e o cobrador. Por isso, algumas pessoas iam penduradas umas nas outras. Num dos locais de anda-e-pára do trânsito, a Praça dos Trabalhadores (antiga Praça Mac-Mahon), fomos vitimados por um autocarro a gasóleo, ao lado, e por um carro a gasolina em mau estado, à frente, entre outros, que por momentos nos fizeram pairar num balão de fumos tóxicos. Ao menos a poluição sonora passou a ter companhia atmosférica. Com a densidade do que se ia passando no interior do veículo, nem deu para prestar atenção ao estilo de condução ou aos riscos da estrada, a outra parte do episódio. Mas bastou ir observando o semblante de muitos dos meus companheiros do chapa para entender que eles, como muitas pessoas comuns, vivem resignados aos incómodos da sobrevivência, abandonados que estão aos instintos primários de uns quantos que se exibem na vida pública e que, em certos contextos, a controlam, impondo-se de modo grosseiro sobre um povo em geral pacífico. Portanto, a curta viagem que descrevo poderá valer como retrato das relações de poder em diversas situações. Neste e certamente noutros países africanos, com os mesmos recursos materiais o quotidiano das gentes comuns poderia ser muitíssimo mais suportável, saudável, delicado, polido. Bastava que melhorassem certas atitudes e comportamentos que condicionam diversas das pequenas e grandes relações de poder ou equilíbrios sociais. E para isso não vislumbro outra fórmula que não seja a censura, a crítica, a rejeição de muitas e muitas atitudes e comportamentos que também – ou sobretudo – fazem a pobreza em África. Se eles existem um pouco por todo o lado, nesta África assumem uma dimensão muito prejudicial porque não se limitam à periferia da vida social, mas por vezes pairam no seu âmago. Em face disto, uma fórmula maior de rejeição de África e dos africanos resulta da incapacidade de criticar de modo bem mais incisivo e persistente o que prejudica o quotidiano. A cultura da vitimização dos africanos, alimentada dentro e sobretudo fora do continente, muito colada aos sentidos interpretativos que habitualmente se atribuem a fenómenos como a escravatura, a colonização ou o racismo, foi e vai matando há várias décadas a função decisiva e insubstituível da crítica social. É como se as elites intelectuais e académicas se tivessem desprendido do quotidiano da gente comum, escapando-lhes sistematicamente os detalhes onde moram pequenos diabos que transformam em infernos simples mas importantes actividades do dia-a-dia.
 
 
 
NOTA: em vésperas do regresso a Portugal termina esta série de dezasseis textos. Agradeço a António Araújo ter incentivado a que os escrevesse com toda a liberdade e sem limites de extensão. Agradeço ainda aos que foram e vão lendo estes textos.
 
 
Gabriel Mithá Ribeiro
 
 
 
 
 
 
 
 

11 comentários:

  1. Eu é que agradeço, Gabriel!
    Um forte abraço,
    António

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Forte abraço, António. Foi o meu baptismo na blogosfera.
      Gabriel

      Eliminar
  2. obrigado e tudo de bom para si. Fernando de Sousa

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caro Fernando de Sousa
      Obrigado e retribuo os votos,
      Gabriel Mithá Ribeiro

      Eliminar
  3. Obrigado pelos textos. Foi um prazer lê-los.

    ResponderEliminar
  4. Obrigado.
    Abraço,
    Gabriel Mithá Ribeiro

    ResponderEliminar
  5. Uma excelente série de artigos, com análises muito penetrantes e perspicazes dos actuais problemas de Moçambique, feitas com rigor sociológico, mas sem pedantismo acadêmico. Obrigado Gabriel. E, como diz lá o provérbio, os cães ladram e a caravana passa.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado.
      Abraço, agora de Portugal,
      Gabriel Mithá Ribeiro

      Eliminar
  6. Vivi lá.
    Foi um prazer recordar bons e velhos tempos.
    Publique aqui ou onde quiser e puder mais e mais fotos para ajudar a recordar.

    ResponderEliminar
  7. Caro F.A.
    Obrigado.
    Abraço,
    Gabriel Mithá Ribeiro

    ResponderEliminar
  8. Gostei muito de o ler.

    Helena Ferro de Gouveia

    ResponderEliminar