sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

As voltas do tempo.






 
 
        Nunca estive no Copa mas já apanhei um pavor danado no Parque Guinle. Numa escadaria ampla de pedra, coberta do trópico vegetal, por pouco não pisava o rabo a um lagarto imenso. Melhor dito, eram dois sáurios, gigantes, que para mim mal olharam. Viraram costas à presença humana e subiram à minha frente, uma pata diante da outra, na maior descontracção e desprezo. Susto bravo para o mamífero.



Porfirio Rubirosa Ariza (1909-1965)
 

          Talvez aqueles dois animais de sangue-frio fossem a reencarnação reptilínea de Baby Pignatary e Jorginho Guinle, playboys lendários de São Paulo e do Rio, que conquistaram fama graças às suas numerosas conquistas de mulheres famosas. Ou talvez o lagarto fosse outro macho lendário, Porfirio Rubirosa, diplomata dominicano, jogador de pólo e corredor de automóveis que levou a vida em grande até o seu Ferrari embater num castanheiro do Bois de Boulogne. Colisão frontal e fatal, de madrugada, após uma noite passada a comemorar a vitória da sua equipa de pólo na Taça do Mundo. Porfirio foi uma estrela mundana, mas por razões muito íntimas, que até a Wikipedia assinala. Chamam «Rubirosas» aos moinhos de pimenta usados nos bistrots parisienses – e por aqui é melhor ficar. Truman Capote ficou extasiado. E, com ele, um extenso cardápio estelar, de onde constam Dolores del Rio, Marilyn Monroe, Ava Gardner, Rita Hayworth, Judy Garland, Veronika Lake, Kim Novak, Zsa Zsa Gabor e até Eva Perón, Santa Evita.


Um «Rubirosa»

 

O grande, enorme, Ruben A. fala de Rubirosa no encantador O Mundo à Minha Procura. Além de notícias na Intrernet sobre «Mr. Ever Ready», há biografias de Porfirio. Mas a imaginação é tão escassa que têm todas o mesmo título, ou parecido. Ora vejam: The Last Playboy, de Shawn Levy ou El último playboy, de Jaime Royo-Villanova. Há outro livro, Perseguiendo a Rubirosa, que parece ser sensacionalista, mesclando informações tiradas das memórias do sedutor international e dos arquivos do FBI.




Jorginho Guinle (1916-2004)
 


Quanto a Jorge Guinle, ainda estamos pior. As suas memórias, Um Século de Boa Vida, são um decrépito destroço. Enumeração deslumbrada e pateta das estrelas com quem se envolveu, o elogio expectável e decadente dos playboys «do antigamente», a tentativa desastrada de mostrar que teve vida e interesses para além das mulheres e do sexo. De facto, foi pioneiro no amor ao jazz. A ele se deve o primeiro livro editado no Brasil sobre esta arte, possuindo Jorge Guinle uma colecção privada de álbuns jazzísticos proporcional à imensa fortuna que herdou. Biliões ou bilhões, desbaratados à larga. Orgulhava-se de jamais ter trabalhado. Os últimos tempos de vida, claro está, foram penosos de penúria. Almoçava e jantava no Copa, por condescendência da gerência. Gastou a fortuna a oferecer presentes astronómicos a estrelas como Marilyn Monroe, Hedy Lamarra, Rita Hayworth, Romy Schneider, Kim Novak, Ava Gardner, Susan Hayward, Jauyne Mansfield, Janet Leigh ou Marlne Dietrich (nas suas memórias, conta na página 44 uma história escabrosa passada entre esta última e John F. Kennedy, que Guinle, se fosse um cavalheiro autêntico, se devia ter abstido de relatar). Uma vez mais, e à semelhança do diplomata dominicano, avulta, num luxo de detalhes, o coleccionismo femeeiro, sendo de notar a repetição de cromos entre Rubirosa e Guinle. Um pouco patético, convenhamos. Nada patético, antes maravilhoso, é o livro que o Nuno me trouxe do Rio, Copacabana Palace. Um Hotel e sua História, de Ricardo Boechat, editado por ocasião do 85º aniversário do hotel. Pouco após a inauguração, diz o livro, aprovou-se um Código de Empregadores, rigoroso enunciado de  dezoito mandamentos, entre os quais um, fundamental: «Não medir as atenções que dispensar a cada um pelas fortunas que aparentam» (ob. cit., p. 34). Jorginho Guinle terminou os seus dias a almoçar no Copa, não por causa da fortuna que aparentava mas por ser parente afortunado de Octávio Guinle, fundador do estabelecimento. O seu filho mais velho, Jorge, artista plástico talentosíssimo, morrera de SIDA, em 1987. Gabriel, filho do seu terceiro e último casamento (com uma rapariga de classe média-baixa de Copacabana, Maria Helena), tornou-se guarda prisional e acabou envolvido numa história de consumo e tráfico de drogas.









Podemos achar Rubirosa e Guinle uns casanovas desmiolados, vestígios de um tempo de machismo cavernícola. Glamour, como tantos dizem? Era tão superficial e plástico como o verniz que cobria as suas fortunas sul-americanas. Mas será que evoluímos neste domínio? Rubirosa e Guinle, queiramos ou não, tinham a sua graça (ainda que muitos episódios contados nas memórias de Guinle – como o encontro com Norma Jean – não tenham graça nenhuma). A crer no frenesi provocado na Net, a versão contemporânea de Jorge Guinle é um tal Carlos Regis Benevides, ex-vereador de Fortaleza que em 2012 foi condenado pelo judiciário a pagar uma indeminização por ofensas a um jornalista. Outro sinal dos tempos: é no Facebook que a fama de Benevides se propaga. A sua página nessa rede mostra-o com jovens desconhecidas, em cruzeiros náuticos e carros de luxo, sempre com imenso calor, ao que sugere a indumentária reduzidíssima. Depois, imagens sobre imagens de mulheres sem rosto, bunda sobre bunda. Não é moralismo, saudosismo ou elitismo, é simples constatação: ao que parece, tudo não passa de uma farsa ou mesmo de uma fraude, disseminando um vírus informático muitíssimo malicioso. Um tonto embasbacado coloca um «gosto»/«like»/«curto» na página FB de Benevides e a máquina automaticamente convida os seus amigos na rede social a desfrutarem também daquela alarvidade em fio dental.  Tudo explicado aqui ou aqui. Não se trata, insiste-se, de moralismo nem saudosismo. A Internet potencia o voyeurismo – e tudo isto se processa através de imagens, nada mais do que imagens. Pedindo desculpas, mais uma referência bibliográfica, esta essencial: Reflets dans un’ œil d’homme, de Nancy Huston.  



Carlos Regis Benevides
 
 

Benevides é o Rubirosa do nosso tempo. Mais boçal do que Guinle ou Porfirio, mais grotesco na exposição dos objectos-carnais e na exibição do mau-gosto endinheirado. Tudo a ocorrer no Facebook e procurando ter mais e mais «likes» no Facebook, através de uma fraude. Já tem mais de um milhão. Sexo, mentiras e redes sociais – sim, é um cliché demasiado óbvio. Mas talvez verdadeiro.




António Araújo











 

 




1 comentário:

  1. Ao ler este seu post e vendo algumas encenações modernistas do Don Giovanni, percebe-se até que ponto o sedutor se foi "avacalhando". Este Benevides jamais estaria à altura da frase do grande dissoluto: Ho fermo il core in petto:
    non ho timor, verrò!

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