domingo, 16 de fevereiro de 2014

Pele e osso - 1






 



Há uns tempos, a Tinta-da-China publicou um livro do antigo futebolista Lilian Thuram, As Minhas Estrelas Negras, que passou algo despercebido mas é muito interessante. Bem investigado, escrito de uma forma simples e directa, conta, em pequenas biografias, as histórias de dezenas de negros e negras que marcaram os destinos da Humanidade. A grande vantagem do livro é que podemos saltar de uma história para outra, voltar atrás e ir à frente. Além disso, somos apresentados a dezenas de pessoas que desconhecíamos por completo.

         O livro desafia alguns estereótipos. Muito mais do que o da negritude, o do preconceito que existe em relação aos futebolistas. Temos dificuldades em acreditar que um jogador da bola tenha sequer escrito um livro, quanto mais um livro tão informado. Como a obra é redigida em colaboração com Bernard Fillaire, a tendência imediata é pensarmos que foi este que a escreveu, tendo Lilian Thuram dado apenas à capa o brilho da sua estrela negra de campeão do mundo. Esse preconceito é muito mais forte do que aquele que existe em relação aos negros; e por isso gostamos de gozar com as calinadas e a incultura dos jogadores da bola, com a sua falta de gosto e o seu arrivismo social feérico. Enunciamos excepções – Valdano, Beckenbauer, Mourinho – apenas para confirmar a regra: futebol e intelecto são coisas que não jogam bem.

         O livro de Thuram será «militante», certamente, e nem sempre é criterioso: para Thuram, basta ser negro para merecer biografia, para figurar na sua galeria. Mas o livro vale a pena – por exemplo, para adolescentes –, podendo constituir uma versão aggiornata daquelas resenhas biográficas que lemos na juventude, e onde há sempre um pormenor que nos marca, que iremos recordar para toda a vida. Antigamente – e já não falo de Plutarco, antigo em excesso –, havia a pedagogia da biografia, da formação pelo exemplo. Isso perdeu-se um pouco, talvez por falta de formação ou por ausência de exemplos. 

         A dado trecho, Thuram refere-se a um seu colega de equipa, Christian Karembeu, que integrou a selecção francesa de futebol. Thuram não o diz, mas o preconceito rácico, mais ou menos consciente, sempre assaltou aqueles que viam Karembeu. Não tanto pelo que fez em campo, de que já nem nos lembramos bem, mas pela beleza explosiva, quase agressiva, da sua mulher Adriana. Nos homens, além do delito da inveja, a aparição de Adriana sempre suscitou fantasias e estereótipos associados ao clássico homem negra/mulher loura. Temos o livro e o filme Mandingo, temos este livro de Serge Bilé e temos um outro filme, que cruza o pornográfico e o terror, o histórico Mulheres e Canibais (já agora, esta lista, bastante discutível, dos dez filmes mais racistas de Hollywood). Note-se que o casal Karembeu não deixou de tirar partido deste estereótipo:

 
Christian e Adriane Karembeu
 
 
 
Jess Franco
Mandingo Manhunter
1980
 
 
 
 
 
         O avô de Karembeu chamava-se Wathio de Canala. O nome diz pouco. Dirá um pouco mais se dissermos que, à semelhança do neto, integrou uma selecção. Não propriamente uma selecção nacional, mas uma colecção tribal, um lote de «selvagens polígamos e canibais» que foram exibidos no Jardim Zoológico de Aclimatação, no Bosque de Bolonha, que apesar de assim chamado fica em Paris, como sabeis. O responsável pelo serviço de Assuntos Indígenas convencera uma centena de neocaledónios a participar na Exposição Colonial de Paris, de 1931, mostrando a cultura do seu povo. Ao chegarem à capital francesa, não ficaram alojados no recinto da exposição, em Vincennes. Levaram-nos para o Jardim Zoológico. O avô de Karembeu sempre recordou com indignação este acto humilhante. Falando em zoos humanos e em livros, até porque Lilian Thuram o cita, um dos melhores, nesta matéria, é, sem dúvida, a obra colectiva organizada por Pascal Blanchard e outros, intitulada Zoos humains. Au temps des exhibitions humaines. Tem um pequeno texto de Herman Lebovics dedicado em exclusivo aos jardins zoológicos da Exposição Colonial Internacional de Paris, de 1931. Para quem gostar de obras mais profusamente ilustradas, melhor não há do que o catálogo da exposição no Museu Quai Branly, patente em 2011-2012, que se chama L’Invention du Sauvage. Exhibitions. Quem foi o curador geral desta mostra? Lilian Thuram, exactamente. E o director? Pascal Blanchard. O meu amigo José Sobral tem este livro e, com a sua generosidade de sempre, emprestou-me outro livro mais denso, muitíssimo bom: Images of Savages, de Gustav Jahoda. A matéria virou tema académico de moda, pelo que a bibliografia é tão interminável que mais vale parar aqui.  



Ota Benga (1883-1916)
 
 
 
 
 
Quando se fala em zoos humanos, a estrela negra da colecção é um pigmeu, Ota Benga. Sobrevivente de um dos muitos massacres perpetrados pelo Rei Leopoldo II da Bélgica, foi vendido em 1904 a um missionário, que o mostrou na Exposição Mundial de Saint Louis, andou com ele de feira em feira até parar no Jardim Zoológico do Bronx, em Nova Iorque. Os seus dentes afilados causavam pavor nos visitantes, naqueles que iam ver um ser estranho, quase-humano, que haviam colocado – e isto, note-se, há uns 100 anos – numa jaula com um orangotango e um papagaio, com bocados de carne pelo chão, para impressionar quem o via. Num registo muito diferente, mas com algumas semelhanças, lembro-me de um livrinho estranho que li há anos, na deliciosa colecção Miniatura da Livros do Brasil: Um Homem no Jardim Zoológico, de David Garnett. Ainda hoje se pode encomendar na Bertrand pela módica quantia de 2 euros e 64 cêntimos.
 
 
 
 

         Há muitos livros e textos na Net que contam a história de Ota Benga, uma história triste. Nunca desistiu do sonho de regressar ao Congo, e trabalhou e amealhou anos a fio para concretizar o seu desejo. A eclosão da Grande Guerra deitou a esperança por terra. Entrou em depressão profunda, fez uma fogueira tradicional e suicidou-se com um tiro de revólver no coração. Fizeram-lhe um busto, como haviam feito a Ângelo Solimão, um negro mação de que irei falar em breve.
 
 
Matthew Henson (1866-1955) 
 


Liliam Thuram conta a história de Ota Benga, como conta a história do (suposto) primeiro explorador a chegar ao Pólo Norte, um negro. Matthew Henson de seu nome, era criado de Robert E. Peary, que oficialmente terá sido o primeiro a chegar ao Pólo. A crer em Thuram, parece que não. Parece que, na recta final, o negro Henson se antecipou a Peary, facto que este pretendeu a todo o custo – e com êxito – apagar a contribuição de Henson e figurar para a História como o pioneiro da chegada ao Pólo. Peary foi um belo pirata, que rasurou a autobiografia de Henson, ficou-lhe com mais de uma centena de imagens da expedição polar e, na sua biografia, relega para um plano secundaríssimo o papel do seu empregado negro, indo ao ponto de o menosprezar como ser humano, dizendo que, apesar de dedicado, lhe faltava a «audácia e a iniciativa ancestrais», típicas do homem branco. Mas esse não foi, porventura, o pior dos pecados que Robert E. Peary cometeu. Amanhã, ou depois, falaremos da história de Minik, outra das vítimas de Peary.
 
 
(Continua, portanto)
 

 

4 comentários:

  1. Plutarco antigo em excesso?! Mas porquê? Se até há agora boas traduções portuguesas, feitas por helenizas, disponíveis na rede? Isso é que é um preconceito, enorme, nascido da ignorância. https://bdigital.sib.uc.pt/jspui/bitstream/123456789/53/1/plutarco_vidas_alcibiades_coriolano.pdf

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    1. http://malomil.blogspot.pt/2013/11/carta-de-lucilio-seneca.html

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  2. helenistas, o raio da maquineta tem o mesmo preconceito. E, claro, não os helenistas que estão disponíveis, mas os livrinhos...

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  3. Também concordo, ainda hoje no das 08:14 Cacém-Oriente iam três a ler Plutarco, um Shere Hite (provavelmente já tinha lido o sexy post) e mais dois a ler "A Bola". Eu (peço desculpa) estava entretido com o Candy Crush, já vou no nível 81.

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