sexta-feira, 7 de março de 2014

A solidão do eu.

 
 
 
 
 

Elizabeth Cady Stanton (1815-1902)

 
 
Quando Elizabeth Cady Stanton (1815-1902) resignou ao cargo de presidente da National American Woman Suffrage, em 18 de Janeiro de 1892, proferiu o discurso «The Solitude of Self», que considerava ser «a melhor coisa que jamais escrevi». O discurso foi também proferido na United States House Committee on the Judiciary e no United States Senate Committee on Woman Suffrage. A United States House Committee on the Judiciary determinou a realização de 10.000 cópias do discurso, que foram distribuídas em todo o país.  
            Nesta tradução, ainda provisória e sujeita a aperfeiçoamentos e correcções (para o que agradecemos, desde já, as sugestões dos leitores), foi utilizado o texto divulgado no The Woman’s Journal, de 23 de Janeiro de 1892Publicada no Dia Internacional da Mulher, esta é, creio, a primeira tradução portuguesa do célebre discurso de Elizabeth Cady Stanton.
António Araújo
 
 
 
         A solidão do eu




O tema que quero apresentar-vos nesta ocasião é o da individualidade de cada alma humana: a nossa concepção protestante da liberdade individual de consciência e juízo; a nossa concepção republicana de cidadania individual.
Ao discutirmos os direitos da mulher, devemos ter em conta, em primeiro lugar, aquilo que lhe pertence como indivíduo, no seu próprio mundo e enquanto árbitro do seu destino, uma Robinson Crusoe imaginária, vivendo com uma versão feminina de Sexta-Feira numa ilha isolada. Os direitos que possui, nesta dimensão, correspondem ao uso das suas aptidões para alcançar a segurança e a felicidade.
         Em segundo lugar, se a virmos como cidadã, como membro de uma grande nação, ela deve ter direitos idênticos a todos os outros, segundo os princípios fundamentais do nosso governo.
         Em terceiro lugar, encarada como mulher, elemento promotor da civilização a par com os demais, os seus direitos e deveres são também iguais: direito à felicidade individual e ao desenvolvimento.  
         Em quarto lugar, só algumas relações incidentais da vida – como mulher, esposa, irmã ou filha – implicam deveres especiais e exigem requisitos específicos. No debate corrente sobre a posição da mulher, homens como Herbert Spencer, Frederic Harrison e Grant Allen são unânimes em subordinar os direitos e deveres como indivíduo, como cidadã e como mulher às exigências particulares daquelas situações, muitas das quais podem nem sequer abranger uma vasta parcela das mulheres. Ao discutir o que pertence à esfera dos homens, não concebemos os seus direitos enquanto indivíduo, enquanto cidadão, enquanto homem, mas antes os seus deveres como pai, marido, irmão ou filho, situações em que até pode nunca vir a encontrar-se. Além disso, um homem poderá estar melhor preparado para cumprir esses deveres particulares, ou exercer o trabalho que escolher como ganha-pão, se desenvolver na plenitude as suas faculdades como indivíduo.
         O mesmo acontece às mulheres. A educação que for mais adequada para desempenhar os seus deveres ao serviço da humanidade será também a mais útil para o exercício de qualquer outra tarefa que venha a exercer.
         O isolamento de cada alma humana, e a necessidade de depender de si próprio, devem conceder a cada indivíduo o direito de escolher o ambiente em que se move.
         A razão mais forte para atribuir a cada mulher todas as oportunidades de acesso a uma melhor educação, ao pleno desenvolvimento das suas capacidades físicas e mentais, à total liberdade de pensamento e de acção, à completa emancipação de todas as formas de servidão, de dependência, de superstição, à libertação de todas as influências paralisantes do medo – é a solidão da responsabilidade pessoal pela condução da sua própria vida. Esse é o motivo mais forte para exigir que uma mulher tenha voz activa no governo sob o qual vive, na religião que é suposto professar, na vida social em que é uma personagem principal, nos negócios e nas profissões onde possa ganhar o seu pão – o direito natural à sua própria soberania; como indivíduo, deve contar apenas consigo própria. Não interessa até que ponto as mulheres preferem submeter-se, ser protegidas e apoiadas, nem até que ponto os homens desejam fazê-lo. Cada qual deve percorrer sozinho a viagem da vida e, para garantir a sua segurança em caso de emergência, tem de saber algo sobre as regras da navegação. Para guiarmos o nosso navio, temos de ser capitão, piloto e engenheiro, estar aos comandos com a carta e o compasso, observar os ventos e as ondas, saber ao certo quando devemos navegar e, acima de tudo, conseguir ler os sinais do firmamento. Não interessa se o viajante solitário é homem ou mulher. A Natureza, tendo-os dotado a ambos com os seus dons, deixa-os entregues à sua perícia e ao seu juízo quando chega a hora dos perigos e, se não tiverem as aptidões adequadas nessas alturas, um e outro irão perecer.
         Para termos consciência da importância de preparar cada alma humana para agir de forma independente, pensemos por momentos na incomensurável solidão do eu. Chegamos sozinhos a este mundo, ao contrário de todos os que partiram antes de nós; partimos sozinhos deste mundo, em circunstâncias peculiares a cada um de nós. Nenhum ser humano foi, ou será, igual àquela alma acabada de lançar no mar da vida. Jamais haverá combinação idêntica das influências pré-natais e das circunstâncias envolventes que tornam absolutamente singulares a infância, a adolescência e a idade adulta de cada um. A Natureza nunca se repete, e as possibilidades inscritas na alma de um ser humano nunca serão encontradas noutro ser humano. Nunca se encontram dois montes de erva iguais, como nunca se encontrarão dois seres humanos iguais. Assim, ao observarmos a infinita diversidade do carácter dos homens, poderemos avaliar, em boa medida, a perda que resultará para uma nação se uma vasta parcela do seu povo não for educada ou se estiver sub-representada no governo.
         Reclamamos o desenvolvimento completo de cada indivíduo, desde logo para seu próprio bem-estar e felicidade. Ao preparamos um exército, damos a cada soldado a sua mochila, a sua arma, pólvora, o seu lençol, a caneca, a faca, o garfo e a colher. Providenciamos para que cada qual possa ter tudo quanto necessita; depois, cada um carregará o seu fardo. 
         Por outro lado, reclamamos o desenvolvimento completo de cada indivíduo com vista ao bem comum. Para que exista consenso sobre todos os interesses envolvidos quando estiverem em causa questões de âmbito nacional, cada qual deve carregar a sua parte no fardo colectivo. É triste ver como as crianças desprovidas de amigos são obrigadas a carregar esse fardo antes sequer de poderem meditar sobre o que verdadeiramente sentem; antes sequer de poderem partilhar as suas alegrias e tristezas são deixadas a si próprias. A grande lição que a Natureza parece dar-nos, em todas as idades da vida, é a da auto-dependência, da auto-protecção, da auto-ajuda. Pensemos na solidão de uma criança, da fome de amor e de afecto que existe no seu coração. Pensemos naquela rapariga que ajudou a enfeitar a árvore de Natal para as crianças da família a que servia. Ao descobrir que não existia um presente para si, fugiu para a escuridão e passou a noite fora, no campo, sentada sobre uma pedra, e ao ser descoberta pela manhã chorava como se o seu coração se tivesse desfeito. Nenhum ser humano pode saber que pensamentos terão percorrido o espírito daquela rapariga sozinha, horas passadas numa noite fria, tendo apenas por companhia as estrelas silenciosas do céu. A notícia deste caso nos jornais levou muitos corações generosos a mandarem-lhe presentes. Mas, nas horas de sofrimento mais profundo, só pôde contar consigo própria para encontrar consolo.   
         Na juventude, as nossas mais amargas decepções, assim como as nossas mais radiosas esperanças e ambições, são conhecidas apenas de nós próprios. Mesmo a amizade e o amor nunca são inteiramente partilhados com outrem. Há algo em cada paixão, em cada situação vivida, que guardamos para nós próprios. O mesmo acontece nos triunfos e nas derrotas. O candidato vitorioso à presidência, bem como o seu rival, cada qual tem a sua solidão, e mandam as regras que nenhum fale do seu deleite ou da sua mágoa. A solidão do rei no seu trono ou do preso na sua cela diferem de natureza e intensidade mas, em ambos os casos, são solidão.
         Não rogamos a compaixão dos outros quando vivemos a ansiedade e a agonia de uma amizade perdida ou de um amor desfeito. Quando a morte quebra os nossos laços mais próximos, sentamo-nos sozinhos à sombra da nossa dor. Tanto nos grandes triunfos como nas tragédias mais sombrias da nossa existência, caminhamos sozinhos. Quando alcançamos os cumes divinos das grandes realizações humanas, sendo saudados como heróis ou venerados como santos, permanecemos sozinhos. Na ignorância e na pobreza, ou entregues ao vício, como pobres ou criminosos, sozinhos passamos fome ou roubamos; sozinhos padecemos o escárnio e a rejeição dos nossos companheiros; sozinhos somos perseguidos, capturados e levados através dos corredores escuros dos tribunais; sozinhos nos sentamos no banco dos réus; sozinhos lamentamos na cela os nossos crimes e infortúnios; sozinhos os expiamos no patíbulo. Em momentos como esses apercebemo-nos da terrível solidão da vida de cada um, dos seus sofrimentos, das suas penas, das suas responsabilidades. Ao vermos, pois, que a vida tem de ser sempre uma marcha ou uma batalha em que cada soldado deve estar equipado para sua própria defesa, compreendemos que é o cúmulo da crueldade espoliar o indivíduo dos seus direitos naturais.
         Colocar obstáculos à educação de cada qual é como arrancar-lhe os olhos; negar o direito de propriedade assemelha-se a cortar as mãos. Negar a igualdade política é tirar àquele que é ostracizado o respeito por ele próprio. O mesmo sucede com o crédito no mercado, com a recompensa no mundo do trabalho, com a voz daqueles que administram a justiça, com a escolha do júri perante o qual deve comparecer quem é julgado ou com o juiz que decide a pena. A peça de Shakespeare Titus Andronicus contém uma terrível sátira à situação das mulheres no século XIX [sic]. Segundo a peça, um grupo de homens brutais raptou a filha do rei, cortou-lhe a língu1a, cortou-lhe as mãos e mandou-a ir pedir água para lavar as mãos. Eis um retrato expressivo da actual situação das mulheres. Espoliadas dos seus direitos naturais, menorizadas pela lei e pelo costume em todas as ocasiões, mas ainda assim obrigadas a lutar as suas batalhas e, nas alturas de emergência, a contar apenas consigo próprias para se protegerem.   
         Uma rapariga de dezasseis anos, lançada ao mundo para se sustentar a si própria, para alcançar o seu lugar na sociedade, para resistir a todas as tentações que a rodeiam e manter uma integridade sem mácula, tem de fazer tudo isto pela sua força de vontade interior ou devido à educação esmerada que recebeu. Jamais adquirirá capacidade para tanto se for ensinada apenas a acreditar nos outros e a descrer de si própria. Se esta luta a abater, considerando ser excessivo o esforço de nadar rio acima, e se se deixar levar pela corrente, encontrará muitos companheiros, mas nenhum capaz de com ela partilhar a amargura na hora em que for mais humilhada. Se tentar recuperar o seu estatuto, escondendo o passado, a sua vida será atormentada pelo medo de que seja levantado o véu com que procura ocultar-se. Jovem e sem amigos, conhecerá a amarga solidão do eu. 
         Até que ponto os pequenos gestos de cortesia na vida em sociedade, considerados tão importantes no comportamento dos homens para com as mulheres, se desvanecem e tornam insignificantes à vista das tragédias bem mais profundas em que ela tem de desempenhar o seu papel sozinha, em que nenhuma ajuda de outro ser humano é possível!
         A jovem esposa e mãe que esteja à frente de uma empresa, que tenha um marido que a proteja dos ventos adversos da existência, com riqueza, fortuna e estatuto, tem algum porto de abrigo que a defende dos revezes habituais da vida. Mas para governar uma casa, ter uma certa influência na sociedade, manter as suas amigas e o afecto do marido, educar os filhos assim como ensinar os criados, para tudo isso é necessário um raro bom senso, sabedoria, diplomacia, e conhecimento da natureza humana. Para tanto, ela necessita possuir as virtudes cardeais e os traços de carácter idênticos aos que detêm os governantes mais bem-sucedidos. Uma mulher com pouca educação, treinada na dependência, sem recursos próprios, irá certamente falhar na vida. Contudo, a sociedade diz que as mulheres não necessitam possuir conhecimento do mundo ou ter a preparação que, muito mais do que a educação formal, só a experiência na vida pública pode dar; na verdade, sem isto a felicidade da mulher estará comprometida, e terá de suportar sozinha a humilhação pelo seu fracasso. A solidão dos fracos e dos ignorantes é lamentável uma vez que, na selvagem competição pelo sucesso, são sempre reduzidos a pó.   
         Imagine-se quando os prazeres da juventude se desvaneceram, quando os filhos cresceram, casaram e partiram, quando a agitação e o ardor da vida se perderam, quando a velha cadeira de braços e a lareira se tornam os recantos favoritos para repouso. Então, homem e mulher voltam a contar apenas consigo próprios. Se não encontrarem companhia nos livros, se não tiverem interesse pelas questões da actualidade, se não acompanharem a concretização das reformas para as quais contribuíram, rapidamente entrarão na velhice. Quanto mais as faculdades mentais forem treinadas e usadas, mais duradouros serão o vigor e a curiosidade por tudo quanto nos rodeia. Se, devido a ter dedicado a vida aos assuntos públicos, uma mulher se sentir responsável pelas leis que regem o nosso sistema educativo, pelas regras disciplinares nas prisões, pelas condições sanitárias nas residências particulares e nos edifícios públicos, ou tiver interesse no comércio, na finança, nas relações internacionais, ou em qualquer dessas questões, a sua solidão será, pelo menos, respeitável, e não se dedicará aos mexericos nem se entreterá com escândalos.
         A principal razão para abrir a cada alma as portas do vasto mundo dos deveres e dos prazeres humanos consiste no progresso individual assim alcançado, nos recursos assim fornecidos para que, em todas as ocasiões, seja minorada a solidão que, por vezes, nos assalta a todos. Numa ocasião, perguntei ao Príncipe Kroptokin, um niilista russo, como conseguiu suportar tantos anos na prisão, privado de livros, de caneta, tinta e papel. “Ah!”, disse ele, “Pensei em muitas coisas que me interessavam. Na busca de uma ideia, não notava a passagem do tempo. Quando me cansava de resolver problemas complicados, recitava todos os trechos de prosa e verso que aprendera. Tornei-me íntimo de mim próprio e dos meus talentos. Tinha o meu próprio mundo, um grande império, que nenhum carcereiro russo ou nenhum czar poderia invadir”. É esse o valor do pensamento liberal e de uma cultura vasta quando estamos privados da companhia de outro ser humano, o que traz conforto e luz mesmo se estivermos enclausurados no interior das quatro paredes de uma cela. 
         Se a muitas mulheres acontece frequentemente o mesmo, não devem ter elas o consolo que a melhor educação liberal pode dar? O sofrimento nas prisões de Sampetersburgo, as longas e extenuantes marchas na Sibéria, ou o labor nas minas, trabalhando lado a lado com os homens, certamente exigem a autoconfiança que apenas os mais arreigados sentimentos de heroísmo podem dar. Quando são subitamente acordadas a meio da noite, aos gritos de alarme “Fogo! Fogo!”, encontrando a casa em chamas, devem as mulheres aguardar que os homens lhes indiquem a saída mais segura? E estarão os homens, igualmente desnorteados, meio sufocados pelo fumo, em posição para fazer melhor do que salvar-se a si próprios? Nestas alturas, mesmo as mais timoratas das mulheres, ao salvarem os seus maridos e os seus filhos, demonstraram uma coragem e um heroísmo que a todos surpreendeu. Dado que uma mulher partilha as alegrias e as amarguras do tempo e da eternidade, não é o cúmulo da presunção um homem propor-se representá-la na urna de voto e no trono da graça, votar em seu lugar nos órgãos do Estado, substituí-la nas preces da igreja e tomar a posição de supremo sacerdote no altar da família?
         Nada fortalece mais a faculdade de juízo e desperta a consciência do que o sentido de responsabilidade individual. Nada confere tanta dignidade ao carácter como o reconhecimento de cada um à soberania sobre si mesmo, ao direito a um lugar igual, concedido em toda a parte; um lugar conquistado por mérito pessoal, não obtido artificialmente por meio de herança, riqueza, origem familiar ou estatuto social. Uma vez que os deveres e as responsabilidades da vida recaem igualmente sobre homens e mulheres, dado que ambos partilham o mesmo destino, necessitam de idêntica preparação para o tempo e a eternidade. Quem diz ser necessário proteger as mulheres das tempestades da vida está a zombar, pois essas tempestades afectam-nas tanto a elas como aos homens, mas estes foram treinados a proteger-se, a resistir e a triunfar. São estes os factos essenciais da experiência humana, as responsabilidades decorrentes da soberania individual. Pobres ou ricos, inteligentes ou ignorantes, sábios ou tolos, virtuosos ou viciosos, homens ou mulheres, com todos acontece o mesmo: cada alma deve depender inteiramente apenas de si própria. 
         Quaisquer que sejam os argumentos favoráveis a que a mulher dependa do homem, nos momentos decisivos da vida ele jamais poderá carregar os seus fardos. Sozinha, a mulher caminha até às portas da morte para dar a vida a cada homem que nasce neste mundo; e, se a sua dor for maior do que aquilo que consegue suportar, sozinha atravessa essas portas rumo ao imenso desconhecido.
         Dos cumes das montanhas da Judeia, num passado remoto uma voz celestial exortou os seus discípulos: “Levai os fardos uns dos outros” (Gal. 6:2). No entanto a Humanidade ainda não atingiu esse ponto de generosidade e abnegação. Nas estradas da Palestina, na oração e jejum na subida solitária à Montanha, no Jardim de Getsêmani, ao ser levado perante Pilatos, traído por um dos seus mais queridos discípulos na última ceia, na agonia na cruz, até Jesus de Nazaré, naqueles últimos e tristes dias na terra, sentiu a terrível solidão do eu. Abandonado pelos homens, gritou, em desespero: “Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?” (Mt., 27:46; Mc., 15:34). O mesmo se passa nos momentos difíceis da vida, na longa e extenuante marcha da vida que cada um deve trilhar sozinho. Podemos ter amigos, amor, afecto, simpatia e compaixão para tornar mais suportável o dia-a-dia; mas, nos momentos trágicos da existência humana, cada mortal está entregue a si próprio.
         No entanto, se os obstáculos artificiais desaparecerem, se as mulheres forem reconhecidas como pessoas, responsáveis em todas as situações, educadas para ocupar todos os lugares para que forem chamadas, guiadas pela sua consciência e juízo, treinadas para saberem proteger-se a si mesmas através do desenvolvimento saudável do sistema muscular e do manejo de armas de defesa; estimuladas a sustentarem-se a si próprias através do conhecimento do mundo dos negócios e da gratificação que a independência financeira confere – se as mulheres forem moldadas desta forma, serão aptas a enfrentar os momentos de solidão que todos atravessamos, estejamos ou não preparados para isso. Como, em última instância, devemos depender de nós próprios, os ditames da sabedoria aconselham o pleno desenvolvimento de cada indivíduo.
         Ao falarmos de educação, quão absurdo é o argumento de que cada qual deve ser educado apenas para o trabalho específico que irá exercer, deixando-se adormecidas todas as suas demais faculdades, quando, porventura, estas serão essenciais nas situações de emergência da vida! Alguns perguntam: que utilidade tem para as raparigas o conhecimento das línguas, das ciências, do direito, da medicina, da teologia? Como esposas, mães, donas de casa, cozinheiras, necessitam de outra aprendizagem, que não a dos rapazes, para desempenhar aquelas tarefas. Os grandes cozinheiros dos maiores hotéis ou navios de cruzeiro são homens. Nas grandes cidades, são os homens que dirigem as padarias; são eles que confeccionam o pão e os bolos. São eles que dirigem as lavandarias. Actualmente, os homens são considerados os melhores chapeleiros e costureiros. Uma vez que são os homens que desenvolvem estas actividades, deveremos alterar os curricula de Harvard e Yale para contemplá-las? Se a resposta for negativa, para quê, então, esta conversa sobre o currículo dos melhores colégios femininos, quando as mulheres se encontram em todos os negócios e profissões, leccionam em todas as escolas, exercem as mais lucrativas e mais prestigiadas actividades?
         As mulheres demonstram também a sua presença de espírito e a sua coragem nos momentos mais difíceis. Provavelmente leram nos jornais a notícia de uma terrível tempestade no Golfo da Biscaia, em que uma onda gigantesca atingiu a costa, arrastando navios, levando os telhados das casas, trazendo a destruição a toda a parte. Entre outros edifícios, a prisão das mulheres foi arrasada. As que escaparam viram alguns homens lutando para chegar à costa. Unindo as mãos, rapidamente fizeram uma corrente humana e, enfrentando as ondas, arriscando a vida, conseguiram salvar seis homens, trouxeram-nos para um local abrigado e tudo fizeram para lhes dar protecção e conforto.
         Que treino especial seria capaz de preparar aquelas mulheres para este momento sublime das suas vidas? Em alturas como essa, o sentido de humanidade sobrepõe-se a todos os curricula dos colégios, e reconhece na Natureza a grande mestra nas horas de perigo e de morte. As mulheres já são iguais aos homens em todos os domínios do pensamento, nas artes, na ciência, na literatura e no governo. Com apoio em telescópios, exploram o firmamento e trazem-nos a história das esferas planetárias. Com a carta e o compasso, conduzem navios entre os oceanos, e com dedos destros enviam mensagens eléctricas para todo o mundo. Nas galerias de arte, as belezas naturais e as virtudes humanas são por elas imortalizadas em telas e, pelo seu toque inspirado, blocos toscos de mármore são transformados em anjos de luz. Na música, falam a língua de Mendelssohn, Beethoven, Chopin, Schumann e são dignas intérpretes dos seus pensamentos. A poesia e o romance são delas e participam nas reformas políticas, religiosas e sociais. Ocupam os lugares de editores e professores e estão na barra dos tribunais, do mesmo passo que marcam presença nos hospitais e falam a partir de púlpitos ou de quaisquer palcos. É este o tipo de mulheres que o público ilustrado actualmente valoriza: os factos da vida triunfaram sobre as velhas teorias do passado.     
         Será razoável confinar as mulheres dos nossos dias às mesmas limitações políticas das senhoras que no passado fiavam com rocas e tricotavam com agulhas? Não, não! As máquinas carregam os trabalhos das mulheres, assim com os dos homens, sobre os seus ombros, os teares e as rocas não são mais do que sonhos do passado; a caneta, o pincel, o cavalete e o cinzel tomaram o seu lugar, do mesmo passo que as expectativas e as ambições das mulheres mudaram radicalmente.
         Se vemos, no mundo, condições mais do que suficientes para a liberdade individual e o desenvolvimento de todos os seres humanos, quando encaramos a auto-dependência de cada alma verificamos que as mulheres necessitam de coragem, de capacidade de julgamento e do exercício de todas as faculdades físicas e mentais, fortalecido pelo seu uso permanente.
         Diga-se o que se disser sobre o poder protector dos homens em circunstâncias normais, nos terríveis desastres que ocorrem na terra e no mar, ou nos momentos de maior perigo, as mulheres têm de enfrentar sozinhas essas situações. O Anjo da Morte não lhes concedeu um caminho privilegiado. O amor e o afecto dos homens emergem apenas nos momentos luminosos das suas vidas. É nesta atitude do eu, que nos liga com o incomensurável e com o eterno, que cada alma vive sozinha para sempre. Um escritor disse recentemente:
Lembro-me de uma vez, em que atravessava o Atlântico, de subir ao convés do navio à meia-noite, quando uma densa nuvem negra cobria o céu, e as profundezas do oceano rugiam ao sopro de ventos demoníacos. Não tive qualquer sensação de perigo ou de medo – os sinais de rendição de uma alma imortal – mas de uma profunda solidão, como se fosse uma minúscula partícula de vida no seio de um total negrume. Lembro-me também de escalar as escarpas dos Alpes suíços, muito para além do ponto em que a vegetação desaparece e em que as coníferas atrofiadas deixam de lutar contra os ventos. Em meu redor, uma enorme profusão de rochas, acima das quais se elevavam picos gelados e gigantescos, que tocavam o azul dos céus; uma vez mais, o meu único sentimento foi o de uma terrível solidão.
         Porém, existe uma solidão que todos e cada um de nós sempre carregou consigo. Mais inacessível que as montanhas geladas, mais profunda do que o mar à meia-noite. Essa é a solidão do eu. O nosso interior, a que chamamos “eu”, jamais foi tocado por qualquer homem ou por qualquer anjo. Está mais escondido do que as grutas do gnomo, do que o ádito secreto do oráculo, a câmara oculta dos mistérios de Elêusis. Nele, só a Omnisciência está autorizada a entrar.
         Assim é a vida de cada indivíduo. Então, pergunto-vos: quem pode apossar-se, quem se atreve a apossar-se dos direitos, dos deveres, das responsabilidades que pertencem a outra alma humana?
 
 
Elizabeth Cady Stanton    







 

 

4 comentários:

  1. Notável discurso, especialmente considerando-se que foi pronunciado há 122 anos. Obrigado por nos dá-lo a conhecer. Excelente tradução. Parabéns! Notei apenas pouquíssimos lapsos de digitação: no parágrafo que se inicia com
    "A jovem esposa", está "bem" em vez de "bom" no final da 6ª lnha; no final do penúltimo parágrafo está "se elevava picos" em vez de "elevavam". Atenção também às grafias de Koprotkin e Schumann.

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  2. Muitíssimo obrigado, vou já corrigir
    Cordialmente,
    António Araújo

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  3. Schumann e Koprotkine continuam mal grafados.

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    1. Tem mais do que razão, desculpe-me!
      Cordialmente, muito grato,
      António Araújo

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