terça-feira, 23 de junho de 2015

Nobre povo, nação valente.







         Em 1989, no caso Texas vs. Johnson, o Supremo Tribunal dos EUA pronunciou-se pela inconstitucionalidade das leis federais e estaduais que proibiam a «dessacralização» (flag desecration) da bandeira americana. Em resposta, o Congresso aprovou uma emenda ao Flag Protection Act que criminalizava condutas como mutilar ou rasgar a bandeira, queimá-la, espezinhá-la, deitá-la ao chão. No ano seguinte, no caso United States v. Eichman, o Supremo considerou inconstitucional essa legislação do Congresso. Grupos conservadores, como a American Legion ou a Citizens Flag Alliance, apelaram ao Presidente George Bush e este, por sua vez, instou a que fosse aprovada uma emenda à Constituição federal para impedir ultrajes à bandeira, uma controvérsia que sempre marcou a vida pública norte-americana. Em meados do século XX, o Supremo teve de lidar com uma lei que ordenava a saudação à bandeira nas escolas públicas, um gesto que algumas Testemunhas de Jeová se recusavam a fazer. No caso Gobitis, de 1940, o Supremo acabaria por entender que essa recusa era legítima, à luz da protecção constitucional da liberdade religiosa. Além dos flag salute cases, os tribunais dos EUA foram ainda confrontados, sobretudo aquando dos protestos contra a guerra no Vietname, com os flag burning cases, em que se discutia se era admissível queimar a bandeira em público.
         Não se pense que estas controvérsias são exclusivo de um país que faz do patriotismo uma «religião civil» e do culto à bandeira o traço identitário de uma nação em busca de si própria. Na Alemanha, em 1990, o Tribunal Constitucional teve de decidir o caso de um editor punido criminalmente por ter publicado um livro antimilitarista que, na contracapa, continha uma «colagem» de duas fotografias: numa, mostrava-se uma cerimónia castrense em que se exibia a bandeira alemã; noutra, um homem a urinar na rua. Mais tarde, o mesmo tribunal teria de pronunciar-se num caso em que uma publicação satirizava o hino nacional.
         Este livro de Nuno Severiano Teixeira não aborda estas questões, nem era suposto fazê-lo. Trata-se de uma obra centrada nos símbolos nacionais portugueses, com um propósito de divulgação. Como síntese da história política da bandeira e do hino nacionais, o livro cumpre exemplarmente a sua missão, fornecendo ao leitor uma apresentação esclarecida, informada e sobretudo muito informativa sobre os nossos símbolos. Trata-se, aliás, de um domínio que o autor já explorara, num ensaio publicado na obra A Memória da Nação, editada em 1991 sob coordenação de Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto (curiosamente, Nuno Severiano Teixeira não assinala este seu texto na bibliografia final). Na linha de trabalhos iniciados por João Medina, e posteriormente desenvolvidos noutras direcções por José Manuel Sobral, Luís Reis Torgal, Fernando Catroga, Rui Ramos, António Pedro Vicente ou Sérgio Campos Matos, este estudo recolhe ainda o influxo da literatura estrangeira que mais detidamente se tem debruçado sobre a «invenção da tradição» (Hobsbawn) ou sobre as «comunidades imaginadas» (Anderson), sem descurar os contributos de Pierre Nora em torno dos «lugares da memória» ou de Anthony Smith acerca da identidade nacional. Como é dada prevalência à história política, outras dimensões são relegadas para segundo plano, nomeadamente o aprofundamento da ligação dos símbolos à «memória colectiva» (Halbwachs) ou à «memória social» (Fentress e Wickham), e, se quisermos, ao modo «como as sociedades recordam», para usar o título de um conhecido livro de Paul Connerton. De igual modo, os aspectos jurídico-institucionais não têm lugar de relevo, ponto que talvez devesse ter merecido mais atenção, nomeadamente se tivermos em conta que existe uma regulamentação específica sobre a bandeira – o Decreto-Lei nº 150/87, de 30 de Março – e que a Constituição portuguesa é, provavelmente, a única do mundo a proceder a uma recepção fornal da simbologia nacional preexistente, com referência expressa à sua origem. Mais ainda: não é frequente existir, nos textos constitucionais do mundo, uma «explicação» do sentido dos símbolos nacionais, tal como a que ocorre, desde 1989, no artigo 11º, nº 1, da Constituição, onde se diz que a bandeira é «símbolo da soberania da República, da independência, unidade e integridade de Portugal».


 
         Do ponto de vista da história política, o livro descreve de forma extremamente clara e rigorosa, sem arroubos patrioteiros nem iconoclastias descabidas, o processo da consagração da bandeira verde rubra nos alvores da República, nomeadamente a querela entre os partidários desse cromatismo, como Teófilo Braga, e os defensores da manutenção da bandeira azul e branca, como Guerra Junqueiro. Depois, assinalam-se diversos episódios que têm marcado a relação dos portugueses com os seus símbolos, com destaque para a exaltação verificada aquando do Euro 2004 e alguns «casos» mais problemáticos, que deram lugar a processos judiciais: quando João Abel Manta usou o escudo da bandeira como sátira ao nacional-cançonetismo, quando o actor João Grosso reinterpretou A Portuguesa em versão rock ou, mais recentemente, quando Élsio Menau, um estudante de artes plásticas da Universidade do Algarve, apresentou uma instalação intitulada Portugal na Forca, o que lhe valeu 17 valores na sua nota de final de curso e a instauração de um processo-crime (que culminaria na sua absolvição). De caminho, alude-se à proposta de Alçada Baptista, feita em 1997, para que a letra do hino perdesse o seu carácter belicista, a qual seria, de certo modo, secundada por João Medina (que propôs a adopção da Ode à Alegria) e do ex-ministro socialista Paulo Pedroso (que apelou a um aggiornamento do hino, por ocasião do centenário da República). Refere-se ainda a decisão tomada por Santana Lopes em 2004, no último dia do seu mandato como presidente da CML, de instalar uma colossal bandeira nacional, com 240 metros quadrados, no cimo do Parque Eduardo VII, ou o incidente com o hastear da bandeira ao avesso, na cerimónia comemorativa do 5 de Outubro realizada em 2012 nos Paços do Concelho, o que obrigou a um pedido público de desculpas por parte do então presidente da edilidade lisboeta, António Costa. Menciona-se também o gesto simbólico do general Rocha Vieira, ao receber e levar ao peito a bandeira aquando da transferência de soberania de Macau para a China, em 1999, e as acções subversivas do grupo «31 da Armada», que hasteou a bandeira monárquica nos Paços do Concelho, em Lisboa, em Agosto de 2009. Para além da presença da bandeira nas Olimpíadas, transportada pelos atletas vencedores nos seus momentos triunfais, refere-se o uso de um pin verde rubro na lapela do casaco dos membros do actual Governo. A este propósito, o autor coloca uma hipótese pouco plausível: segundo ele, ao não ter distribuído pins idênticos por todos os cidadãos da República, poderá estar a ocorrer uma «apropriação pelo Governo de um símbolo que é de todos os Portugueses».  


 
     

    Nesta resenha dos «casos» suscitados pelos símbolos nacionais no período democrático, seria interessante recordar a acusação feita a Mário Soares, no decurso da campanha presidencial de 1986, de que teria pisado a bandeira nacional aquando da visita de Marcelo Caetano a Londres em 1973, o que motivou de imediato a apresentação de uma queixa-crime de Soares contra a jovem estudante de Direito que o acusara de ultraje à bandeira. Doutro alcance, bem mais profundo (e, por isso, que teria justificado uma referência neste livro), foi a «guerra das bandeiras» que opôs as autoridades da República aos órgãos regionais, levando à aprovação, na revisão constitucional de 1989, da proposta do PCP para sublinhar, como atrás se disse, o sentido e o alcance dos símbolos nacionais.   
         Como o autor não adopta – nem era suposto que o fizesse – uma perspectiva comparativa, focando-se em exclusivo nos símbolos portugueses, o livro não aborda polémicas algo semelhantes, mas bastante mais intensas, que têm ocorrido noutros lugares, em especial em Estados regionalizados como Espanha. De igual modo, o contributo dos símbolos para a encenação e projecção do poder e para os rituais e liturgias do patriotismo não é especialmente assinalado, sobretudo num domínio caro ao autor, o das Forças Armadas, em que existem detalhados regulamentos relativos ao uso e honras devidas à bandeira e ao hino nacionais. Seria ainda importante realçar, até porque a matéria já foi objecto de decisões judiciais, a «apropriação» dos símbolos, ou de elementos deles constantes, pela publicidade comercial, nomeadamente a recriação de emblemas como a esfera armilar por algumas empresas cervejeiras, o que talvez suscite problemas face ao disposto no Código da Publicidade, que proíbe expressamente a associação da simbologia nacional à venda de bebidas alcoólicas. Seria interessante aludir também ao curioso episódio das bandeiras made in China que representavam, de forma errónea e adulterada, a iconografia inscrita nas quinas dos castelos. E, num tempo de fluxos migratórios e diversidade cultural, seria interessante analisar até que ponto a bandeira portuguesa convive com símbolos nacionais de outras comunidades radicadas no país, uma questão que, por exemplo, já mereceu intervenção da Corte costituzionale italiana. Mais pacífica e harmoniosa tem sido o convívio com os símbolos da União Europeia, possivelmente porque estes, aos olhos do cidadão comum, não se revestem de verdadeiro significado simbólico e, como tal, não suscitam frémitos identitários nem paixões de espécie alguma, quer nacionalistas, quer europeístas. Finalmente, seria interessante proceder à ligação entre os símbolos nacionais e outros tópicos do imaginário republicano e da sua iconografia, como os bustos da República (estudados por Antonio Pedro Vicente), figuras como o Zé-Povinho (analisado por João Medina), a vivência do tempo e os calendários do regime nascido em 1910, celebrações cívicas como a Festa da Árvore, o culto dos mortos da Grande Guerra e, nos nossos dias, as homenagens aos caídos nas guerras ultramarinas. Neste contexto, importaria assinalar a penetração, que o Estado Novo consolidou, do cromatismo verde rubro noutros elementos de aparato do poder, como a imagética das ordens honoríficas, o pavilhão e o estandarte presidenciais ou, mais recentemente, a bandeira da Assembleia da República.
         Enquanto obra de síntese sobre os símbolos nacionais, orientada para o grande público, este livro tem uma qualidade invulgar. Pela sua profundidade e desenvolvimento, distancia-se claramente de publicações dotadas do mesmo propósito, de que se pode referir o interessante Como Nasceu a Portuguesa, da autoria de Teixeira Leite, ou brochuras de divulgação, como: Os Símbolos Nacionais (editada em 2004 pelo Museu da Presidência da República); Bandeiras de Portugal ou Os Nossos Símbolos (das juntas de freguesia de São João de Brito e de Santa Maria de Belém, de 2004 e 2006, respectivamente); ou Bandeiras Portuguesas… Bandeiras de Portugal (de 2000, promovida pelo Museu República e Resistência da CML). Doravante, os leitores têm à sua disposição uma súmula desenvolvida e muito informada – escrita, ademais, numa linguagem clara, simples e directa – sobre os símbolos nacionais portugueses. Um livro oportuno e feliz, que atinge plenamente os seus objectivos.
         Resta saber, todavia, se os símbolos nacionais atingem sempre os seus objectivos integradores. A Constituição do Nepal vai ao ponto de especificar a flor, o animal e a ave nacionais, que são, respectivamente, o Rhodondendron Aroboreum, a vaca e o Lophophorus. Em 2013, foi eleita uma assembleia constituinte para elaborar uma nova lei fundamental. No início deste ano, registaram-se violentos e sangrentos confrontos em torno da nova Constituição. Meses depois, em Abril, um terramoto arrasava tudo, causando milhares de mortes. No momento em que são escritas estas linhas, chegam notícias de que, por causa do sismo de Abril, os partidos nepaleses alcançaram um entendimento sobre a futura Constituição do país. A acção da Natureza é sempre mais forte do que a teimosia dos homens – e dos símbolos que ornamentam o seu poder efémero.
 
António Araújo
 
 
P.S. - uma versão ligeiramente resumida deste texto saiu no jornal Público/Ípsilon, aqui.
 
  
 
 
 

8 comentários:

  1. Em rigor, as acções do 31 da Armada em 2009 não foram «subversivas»... porque a maior - infelizmente, já mais do que centenária - subversão é a «república portuguesa». O regime que existe desde 1910, imposto por uma minoria de iberistas, criminosos e terroristas (regicidas) que depois deram em ditadores, continua a ser ilegítimo porque nunca foi referendado - e, aliás, a actual «constituição da república portuguesa» é o maior garante dessa subversão ao manter a - nada democrática - obrigação de «forma republicana de governo».

    Por isso, e pela minha parte, não me incomoda de todo que o actual governo esteja eventualmente a «apropriar-se» de um símbolo que... não é de todos os portugueses. Meu é que não é, de certeza. Era só o que faltava conspurcar a lapela com uma réplica do (nas sábias palavras de Fernando Pessoa) «ignóbil trapo».

    ResponderEliminar
  2. Tem razão.Eu sei porque votei no referendo que instituiu a monarquia.Ou foram eleições?Já não me lembro.Foi há muito tempo.
    Há cada imbecil...

    ResponderEliminar
  3. Na verdade, há cada imbecil que, anonimamente, cobardemente (e talvez vendo-se ao espelho), decide, porque não tem factos e argumentos consistentes para rebater outros, lançar insultos que certamente não teria coragem para (m)os dizer cara a cara. Mas, enfim, que fazer? É a vida.

    ResponderEliminar
  4. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar
  5. Obviamente que se o disser cara a cara pelos vistos os seus argumentos serão eventualmente a violencia .
    Não creio que se possa ter uma discussão racional pelo menos enquanto eu a entendo com uma pessoa que sem ser a brincar escreve tais iimbecilidades.Retiro o imbecil e subistituo por imbecilidades.Qualquer um está sujeito a dize-las sem ser preciso que sejam fisiologicamente mentecaptos.
    Espero que tenha ou menos de dezoito ou mais de oitenta anos.É mais compreensivel.

    ResponderEliminar
  6. Ora bem, vejamos se ocorreu entretanto alguma alteração... Anonimato? Sim, mantém-se. Cobardia? Idem. Inexistência de qualquer contestação fundamentada ao (meu) comentário original? Confere. Prognóstico? Irrelevante.

    ResponderEliminar
  7. Isto ate teria piada se eu não soubesse que os cruzados dos diversos credos são feitos com esta massa.E isso não teve não tem e nem nunca terá graça.Acabou o paleio.

    ResponderEliminar
  8. É curioso... seria capaz de jurar que ouvi alguém, muito longe, a gritar o que me pareceram disparates. Mas, provavelmente, era apenas um cão a ladrar. Adiante.

    ResponderEliminar