sexta-feira, 28 de agosto de 2015

V-Day.

 
 
 
 
         Há uns dias, o Expresso publicou uma excelente reportagem sobre a celebérrima fotografia de Alfred Einsenstaedt, tirada em Times Square no Dia da Vitória, 14 de Agosto de 1945. A reportagem, como dissemos, é excelente, e pouco haverá a acrescentar ao trabalho de Ricardo Silva. Simplesmente, assume de forma inequívoca que o marinheiro fotografado é o lusodescendente George Mendonça (ou Mendonsa), com raízes na ilha da Madeira. Mendonça está tão convicto de que é ele o marinheiro beijoqueiro que chegou a processar judicialmente a Time Inc. por usar a sua imagem sem a devida autorização. Ora, existem, ou existiram, pelo menos doze homens que reivindicaram serem eles o marinheiro fotografado por Einsenstaedt no cruzamento da Rua 44 com a Broadway.
 

George Mendonça
 
Carl Muscarello
 
 
Também entre as mulheres há alguma controvérsia, com uma acesa disputa entre Greta Friedman e Edith Shain. Mesmo sobre o momento de captação da imagem, não há dados totalmente seguros, já que, como conta a douta Wikipedia, Alfred Einsenstaedt apresenta duas versões algo diferentes sobre o que se passou há 70 anos em Times Square. Aliás, nem sempre se apresenta a mesma fotografia. Com o mesmo título, há duas ou três de Eisenstaedt com ligeiras diferenças entre si. O fotógrafo tirou uma série e ora se publica uma, ora se publica outra. Tudo muito obscuro.  De certeza certa só sabemos que a máquina usada para captar a fotografia lendária, uma Leica IIIa, foi leiloada por uma fortuna (aqui).
 
 

Descubra as diferenças

 
         E também sabemos que em torno desta fotografia se gerou uma curiosíssima guerra de memória. Antes de morrer de cancro, em Junho de 2010, aos 91 anos de idade, a enfermeira Edith Shain apareceu em diversas comemorações e festejos, nas vestes alvas da mulher beijada no Dia da Vitória. Do outro lado da trincheira, num cortejo comemorativo do 4 de Julho, realizado em Rhode Island em 2009, aparece a sua rival, Greta Friedman. Esta tinha a seu lado o lusodescendente George Mendonça. Antes disso, em 2005, Edith Shain apresentou-se em Times Square com outro sério candidato a beijoqueiro, o ex-polícia Carl Muscarello. De todos os candidatos, George Mendonça e Carl Muscarello são, provavelmente, os que têm mais hipóteses de alcançar o título. Na competição feminina, Edith Shain e Greta Friedman figuram entre as favoritas. Edith Shain e Muscarello estiveram juntos, como se disse, em 2005, no preciso lugar em que, supostamente, se tinham beijado décadas atrás. A ocasião era de festa, 60º aniversário do Dia da Vitória. Apresentou-se ao público a escultura de John Seward Johnson II intitulada Unconditional Surrender – ou, melhor, a réplica em plástico e alumínio do original dessa obra, feito em bronze.
 
George Mendonça e Greta Friedman, Rhode Island, 2009
 

Edith Shain e Carl Muscarello na apresentação de Unconditional Surrender
em Times Square, 2005
 
         A história do escultor é curiosa e acidentada. John Seward Johnson II é neto de Robert Wood Johnson I, um dos co-fundadores da empresa Johnson & Johnson, vindo a ser primo, por via materna, do actor Michael Douglas. Nascido em berço de ouro, disléxico, Seward Johnson não se chegou a licenciar. Serviu na Marinha durante quatro anos, na guerra da Coreia. Depois, foi trabalhar para a colossal empresa familiar, de onde seria despedido pelo seu tio. Desde então, dedicou-se a fazer esculturas hiper-realistas, num estilo desprezado pela crítica mas venerado pelo público, especialmente infantil. Seward Johnson teve uma vida pessoal atribulada: no testamento, o seu pai não o contemplava, mas, na barra dos tribunais, acabou por conseguir obter uma parcela da fortuna Johnson, graças à qual desenvolve hoje uma intensa actividade filantrópica de apoio às artes. A mulher enganava-o, o que o fazia sofrer, a ponto de ter tentado o suicídio. Divorciou-se, andou em bolandas judiciárias, mas parece ter encarreirado. Pelo caminho, fez estátuas ao gosto popular.  
 
Seward Johnson, Double Check (1982), aquando do 9/11
 
 
É da sua autoria uma escultura tornada célebre pelas piores razões. Double Check, de 1982, mostrava um executivo a verificar o conteúdo da sua pasta, numa atitude típica. Estava colocada em Manhattan, nas imediações das Torres Gémeas. Foi descoberta nos escombros, entre cinza e poeira. Nos dias seguintes aos atentados, tornou-se um ponto de peregrinação para quem ia até lá, em busca de restos dos entes queridos ou apenas para mirar os despojos da catástrofe. As pessoas deixavam flores ou mensagens nos interstícios da estátua moribunda, que agora voltou a ganhar brilho e cor. Haja esperança.
 
Fotografia de Victor Jorgensen, 1945
 
         O mundo é um lugar estranho. Toda a gente sabe quem é Eisenstaedt e a sua fotografia ganhou foros de lenda. Existem diversos candidatos ao lugar de marinheiro voraz, entre os quais o lusodescendente Mendonça. Mas, à excepção da Wikipedia, ninguém se lembra de Victor Jorgensen. Morreu em 1994, era fotógrafo ao serviço da Marinha e, naquele dia, naquele mesmo lugar, fotografou também o casalinho osculante. A fotografia seria publicada no NewYork Times, mas, por um azar, não tem a expressividade e a força da imagem de Alfred Eisenstaedt. Por uma questão de metros, uma diferença milimétrica de ângulo e perspectiva. A vida é assim. De qualquer modo, Jorgensen teve uma existência boa e feliz. Correu mundo, publicou nas revistas mais conhecidas e prestigiadas. Porém, será sempre recordado como o autor-da-fotografia-parecida-à-de-Einsenstaedt. Num certo sentido, melhor fora que não tivesse estado em Times Square naquele dia 14 de Agosto. Há 70 anos, V-Day. Vitória, vitória, acabou-se a história.  
 
António Araújo
 

3 comentários:

  1. A história tem alguma graça. O que as pessoas fazem pelo seu minuto de fama!...

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  2. Tudo correcto. Mas li há meses um muita minuciosa análise crítica dos "concorrentes" a autêntico e as suas versões da história e fiquei inclinado a aceitar a de Goerge Mendonça como mais credível.
    Como não li o "Expresso" e não sei se refere este importante dado bibliográfico, deixo aqui a referência do livro: "The Kissing Sailor", de Lawrence Verria e George Galdorisi. Não tenho o livro à mão por estar longe de casa, todavia recomendo-o aos interessados.
    http://www.amazon.com/Kissing-Sailor-Mystery-Behind-Photo/dp/1612510787/ref=sr_1_1?s=books&ie=UTF8&qid=1440819247&sr=1-1&keywords=the+kissing+sailor

    onésimo

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    1. Obrigado, Onésimo. De facto, pelo que vi, o mais «credível» é George Mendonça. Mas, nas mulheres, é Edith Shain... que aparece com Carl Muscarello. Não conheço o livro, vou já ver, obrigado! Um abraço do
      António

      PS - é impressionante ver o Eisenstaedt a assinar cópias do «V-Day» horas antes de morrer...

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