sexta-feira, 8 de abril de 2016

Passagem de ano com Ronald Biggs et all.

 
 


 


Jaguanum, maconha, facalhões e borrachudos
 
Encontrava-me no Brasil, no Rio de Janeiro, a passar as férias do Natal do Ano do Senhor de 1979. E, como de costume, estava hospedado em casa do meu amigo muito especial, Armand F. Pereira, um luso-americano,  meu antigo  aluno na Universidade de Connecticut, que viveu muitos anos em Connecticut e que, naquela época, era professor universitário no Rio de Janeiro, com residência na Rua Conselheiro Macedo Soares, localizada entre um grande morro de pedra e a bela Lagoa Rodrigo de Freitas, no sopé sul da montanha do Corcovado, majestosamente coroada pela estátua do Cristo Redentor.
 
O Armand tinha por essa altura uma jovem amiga inglesa, Jacqueline Price, arquitecta e desenhista. 
        
Após o Natal de 1979, o Armand sugeriu-me que fosse passar com eles e com outros amigos o Ano Novo em Jaguanum, uma ilha paradisíaca perto de Itacuruçá, a 80 Km ao sul do Rio de Janeiro. Naturalmente que eu aceitei logo o convite, dada a minha inclinação nata para a aventura e para o exotismo.
        
Dois dias antes do Ano Novo, aí vamos nós de barco, rumo a essa “ilha paradisíaca”. Faziam parte do grupo o abaixo-assinado, o Armand, a Jacqueline, e, entre outras pessoas, o Ronald Biggs e o seu filho brasileiro, de sete anos de idade, o John Stanley Pickston e sua esposa ou companheira, e ainda uma artista (pintora, escultora) da Tailândia e o seu namorado, e a Ângela Jarvis, uma linda e elegante jovem inglesa, amiga do Armand e da Jacqueline e dos outros membros da comitiva. A Ângela, que adorava o Brasil e o seu carnaval, residia na ilha e era ela a anfitriã da expedição.
        
A viagem de barco do porto de Itacuruçá a Jaguanum levou menos de meia hora. O lento andamento do barco permitiu-nos apreciar e saborear os encantos de uma paisagem deslumbrante, fazendo lembrar um filme em que se fossem desvendando, em câmara lenta, ilhas e ilhotas verdes, no meio de um mar calmo, salpicado de verde e azul, tanta e tão variegada era a vegetação reflectida nas águas cristalinas.
        
O barco deslizava já sem ruído, rumo a uma pequena e bela enseada da ilha de Jaguanum, onde se encontravam sete ou oito pequenos barcos de pesca, balançando-se preguiçosamente num matisse verde e azul tridimensional, com uma estereofonia impressionista, num crescendo hipnotizante, à medida que o nosso barco se aproximava vagarosamente da areia.
Era ilha pequena, mas verdadeiramente encantadora. Segundo a Ângela, tinha poucos habitantes humanos, mas tinha um número muito maior de habitantes de outras espécies, incluindo uma grande variedade de aves e de répteis, os quais, mesmo quando não se viam, marcavam  a sua presença com uma contínua sinfonia dissonante.
 
         Da praia até à casa da Ângela subia-se por um autêntico carreiro de cabras, feito de pedras soltas e de pedaços de madeira molhados e escorregadios.
 “Tem cobra por aí?” – pergunta alguém.
           “Eu já vi jibóias, mas não são venenosa” – responde a Ângela, no seu anglo-português engraçado e gostoso pelas suas (dis)concordâncias irregulares. E acrescentou:
– “Mas dizem que tem jararaca e que é mesmo perigoso...o problema maior é o borrachudo, uns mosquito bem pequinininho qui morde mesmo. Vocês tem logo é qui passar o repelente no corpo todo, senão tá ferrado!”   
        
Em poucos minutos, sem que alguém fosse incomodado pelo  “borrachudo”, instalámo-nos todos na casa da Ângela. Era uma casa bastante grande, muito rústica, toda feita de madeira, escondida no meio de enormes e frondosas árvores tropicais, onde a custo penetravam uns raios de sol muito rarefeitos, tal era a espessura da floresta. Como a iluminação pública da ilha era escassa e precária, de noite valíamo-nos de uns focos ou de umas velas para descer até à praia e para subir o carreiro de cabras que levava à casa.
        
Entre os vários casos que me ficaram na memória dessa passagem de ano tão peculiar, e única, vou referir dois ou três.
Os dois primeiros aconteceram logo no dia da chegada. Era pelo cair da tarde e decidiu-se fazer a ceia. E, por mero acaso ou por qualquer razão que hoje não recordo, vi-me na vasta varanda da rústica casa, de volta de um fogareiro, alimentado com pedaços de madeira, transformados em brasa, a preparar um churrasco de frango e de vitela. Cheio de sede, devido ao calor do lume, dirigi-me à cozinha para pegar numa cerveja. E que vejo eu ao passar pela rústica sala de estar, que fazia ao mesmo tempo da sala de jantar? Sentados em bancos toscos, à volta de uma enorme mesa de madeira, o Ronnie Biggs e o seu amigo e compatriota John Stanley Pickston –  “Stan the Man” para os amigos –, com ar de piratas, de rosto avermelhado, rodeados de copos e de garrafas, estavam a atirar contra um alvo, colocado numa das paredes da sala, com dois enormes facalhões, como se fossem dardos. Com as carnes a tremer de medo, não fossem eles perder a pontaria, ou fazer que a perdiam, ao eu passar, esqueci-me da cerveja e da sede e do calor e voltei imediatamente para a varanda onde me esperava a churrascada. Mas, como o calor e a sede apertavam cada vez mais, resolvi dirigir-me novamente à cozinha. Para tranquilidade minha, notei que a cena da pontaria tinha mudado. O Ronnie e o “Stan” estavam sentados à mesa a cortar verdura com os mesmos facalhões que lhes haviam servido de dardo. Reparando que o Armand estava também na companhia deles, voltei-me para ele e fiz este comentário:                                                                                           
– Que bela ideia! Vamos ter também salada.
Foi eu acabar de pronunciar estas palavras e todos os presentes a desatar numa gargalhada homérica. Que tinha acontecido para eles se rirem assim? Em meu entender, eu não tinha dito nada de engraçado. E foi nesse momento que a Ângela se volta para o Armand e tem esta saída:
– “Is your friend for real?”
          É que eles estavam a cortar maconha e não alface, como eu pensara, na minha proverbial ignorância e ingenuidade.
         
Aí estava eu entre maconha, facalhões, borrachudos, potenciais   jararacas e ainda por cima um assaltante foragido: Ronald Biggs que, em 1963, praticara na Inglaterra, seu país de origem, o maior roubo de comboio de sempre. Preso e julgado, foi condenado não sei a quantos anos de prisão. Porém, um belo dia – ou uma bela noite, aliás – de 1965 conseguiu evadir-se da prisão e fugir para o estrangeiro, vindo a refugiar-se em 1969 no Brasil, onde viria a viver durante trinta e um anos.
 
 
 
 
 
Chegado aí, brevemente viria a ter um filho, Michael Biggs, duma jovem dançarina brasileira, chamada Raimunda de Castro. Vindo a descobrir o seu paradeiro, a Scotland Yard raptou-o e levou-o imediatamente para as Bahamas, com a intenção de transferi-lo depois para a Inglaterra, a fim de metê-lo novamente na prisão, com pena agravada. Porém, antes que isso viesse a acontecer, deu-se a intervenção do governo brasileiro. Pai de filho brasileiro, Ronald Biggs estava protegido pela lei do país de origem do filho, o que quer dizer que o Governo de Sua Majestade Britânica não podia levá-lo contra a sua vontade para a Inglaterra. E, sendo assim, Ronald Biggs voltou para o Brasil, onde continuou a viver em plena liberdade, em regime de asilo político, sustentando-se principalmente à base de pequenos negócios, ligados ao turismo, mas pouco rentáveis. Em alguns períodos da sua vida no Rio, Ronald Biggs chegou ao ponto de ver-se dependente da caridade de pessoas boas e generosas. Por volta de 1980-1982, após o seu regresso das tumultuosas andanças pelas Caraíbas, Ronnie tirou partido do seu estatuto romântico de ladrão bem sucedido e do insucesso dos comparsas da mítica Scotland Yard. Tocada pelo sentimento do patriotismo e do altruísmo, a amiga do Armand, a Jacqueline Price, como meio de ajudar o seu compatriota Ronald Biggs, em 1980-81, desenhou uma série de camisetas com dizeres tais como: “From the Bahamas to Brazil”, “Travel in style”, “Do it like Biggs”, etc. Outras camisetas e “posters” se sucederam mais tarde, como, por exemplo, uma com estes dizeres: “Wanted: Ronald Biggs for the most daring robbery.” Ronnie tornou-se atracção turística durante algum tempo. Em meados dos anos oitenta, o seu filho Michael Biggs, conhecido por “Michaelzinho” viu-se por algum tempo transformado em estrela de um programa de televisão, contribuindo para dar visibilidade pública não só ao pai, mas também à mãe, e proporcionando, dessa forma, uma boa fase da vida de Ronnie. Foi então que este abriu um restaurante em Copacabana que chegou a ter certa notariedade, principalmente entre a comunidade anglo-brasileira e os turistas britânicos.
 
Passados alguns anos, Ronald Biggs regressou voluntariamente à Inglaterra, por questões de doença e falta de dinheiro para a tratar no Brasil.
 
E mais não conto neste momento sobre o famigerado Ronnald Biggs, por ser do domínio público o seu regresso voluntário à Inglaterra e por suspeitar que, no futuro, não faltará gente que se delicie a romantizar as suas aventuras de um ladrão de comboios mais ou menos bem sucedido.     
 
Voltando à ilha de Jaguanum, depois deste breve excurso sobre o que foi parte da vida de Ronald Biggs nos seus anos de asilo no Brasil, quero lembrar que, no dia a seguir ao episódio da maconha,  depois do almoço, enquanto alguns dormiam a sesta e outros saíam a passear, a artista tailandesa se aproxima de mim e me convida para acompanhá-la num passeio pela floresta virgem da ilha e pela sua praia imaculada. Como cavalheiro e apreciador de companhia feminina, e para mais exótica, oriental, e em trajes tropicais, acedi com o maior agrado ao seu amável convite. Durante quase três horas, contemplámos os encantos da ilha, a suavidade e macieza da areia, a beleza das flores selvagens, a limpidez cristalina das águas do mar, o azul anilado dos céus, e conversámos sobre mil coisas, qual delas mais inconsequente que a outra. Melhor dito: ouvi com interesse e com certo fascínio uma série de histórias, não sei se vividas por ela na realidade se apenas na imaginação, que a tailandesa me contou. Em qualquer dos casos, era o momento de repetir o que se diz em circunstâncias idênticas: “si non è vero, è ben trovato.”
 
De regresso ao Rio, e já na casa da Lagoa, o Armand diz-me que tem uma coisa importante para me contar, mas que, por favor, não lhe leve a mal. E que coisa importante era essa que o meu bom amigo tinha para me contar? Que a Ângela lhe tinha dito que a tailandesa lhe contara que eu não tinha sido o cavalheiro que ela esperava que eu fosse, ao convidar-me para passear com ela. – Grandessíssima aldrabona – exclamei eu estupefacto e possuído de santa raiva. Eu que, tendo percebido, desde o primeiro momento em que chegámos à ilha, que a tailandesa estava com o namorado, a havia tratado com o respeito com que sempre tratei na vida qualquer mulher – e ainda para mais casada ou noiva ou real ou supostamente comprometida: em conclusão, com o respeito que um cavalheiro deve a uma dama! Que por favor acreditasse em mim: que o que eu lhe dizia era a verdade, toda a verdade e nada mais senão a verdade.  
         Passaram os anos, acabou o ano lectivo de 1983-84, e eu vou passar umas férias de verão à Suíça, e hospedo-me na casa do Armand, um chalé localizado na França, a 18 km de Genebra, a 6 km acima de Gex e a 4 km abaixo do Col de Faucille, nos montes Jura. O Armand era então um alto funcionário da Organização Internacional do Trabalho (OIT), uma agência especializada do sistema das Nações Unidas. Um belo dia, ou melhor, uma bela noite, o Armand e eu fomos a uma festa organizada algures em Genebra, sobretudo pelos e para os estrangeiros que trabalhavam para as várias organizações internacionais. Como o mundo é pequeno, quem é que vim a encontrar nessa festa? Nada mais nada menos que a tal Ângela da ilha paradisíaca do Brasil, a quem eu já não conhecia, como sempre me aconteceu – e acontece – pela vida fora, péssimo que sou em recordar nomes e em reconhecer fisionomias. Entretanto o que eu sim lembrava com a maior vividez era a história que a artista tailandesa teria contado à Ângela. Era chegado o momento da verdade. Com todo o respeito, mas também com toda a firmeza, pedi à Ângela que fizesse favor de repetir diante de mim a história que a tailandesa lhe contara. E ela repetiu diante de mim e do Armand a malfadada história. – Grandessíssima aldrabona – escandi eu em português castiço. Porque é que a tailandesa teria inventado essa patranha? E com as achegas de cada um de nós, viemos a concluir, com uma lógica à prova de fogo, que a tailandesa me tinha desavergonhada e habilidosamente usado para causar ciúmes ao namorado, a fim de ele voltar para ela, pois a todos tinha sido óbvio, menos a mim, que ele não lhe prestava a atenção que uma verdadeira namorada exige do seu namorado.
 
Os anos passaram, mas confesso que, por causa dessa história, ainda hoje fujo das tailandesas como o diabo da água benta. Mas diga-se, em abono da verdade, que isso não impede que continue a recordar com saudades as aventuras e os encantos da ilha edénica, que dá pelo nome de Jaguanum, situada um pouco ao sul da cidade do Rio de Janeiro, ou até, quem sabe, que numa outra reincarnação eu não me sinta fascinado por alguma beldade oriunda da bela Tailândia.            
              
                     António Cirurgião
 

1 comentário:

  1. Estas histórias são tão giras, tão giras que dá logo vontade de ir ler Truman Capote ou Dominick Dunne.

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