sábado, 11 de fevereiro de 2017

Memórias Perdidas - 8

 
 
 
 
         Não são propriamente memórias perdidas pois estão à venda e encontram-se disponíveis na casa editora, a MinervaCoimbra. Mas nem por isso devemos deixá-las de parte, tal a raridade no nosso país de memórias – e memórias autênticas, escritas por mulheres.
         Maria Manuela Ribeiro da Fonseca Esteves de Mendonça nasceu em Lisboa, onde obteve duas licenciaturas: em Medicina e em Ciências Pedagógicas. Fez carreira clínica distinta, nas áreas da psiquiatria e da pedopsiquiatria, ensinou na capital e em Coimbra. Antes deste livro, tinha publicado em 2009 Nascer nos Anos Trinta – Memórias e Imagens de um Quotidiano. Não lemos, mas temos pena.
         Com o presente livro, Manuela Mendonça traz-nos os seus tempos de aluna do Liceu D. Filipa de Lencastre, na altura exclusiva e rigorosamente feminino. A rapaziada do Camões, que ficava por perto, ainda se tentava abeirar das meninas do Filipa, mas a directora, austera e casta, chegou a ordenar que fossem proibidos de circularem nas imediações de todo o Bairro do Arco do Cego.
         Era lá que ficava – e fica – o Liceu Filipa, construção estadonovista que a autora praticamente estreou, em estado novinho (o liceu fora inaugurado em 1940-41 e Manuela Mendonça começou a frequentá-lo em 1943). Menina e moça, a pequena Manuela saía de casa de seus pais, no nº 41 da Avenida Óscar Monteiro Torres, certeira e atilada, e ia diariamente a pé até ao Liceu, onde imperava um rígido sistema multicolorido: as alunas que tinham autorização para ir almoçar a casa (cor rosa), as que estavam dispensadas de Educação Física (cor branca) e as mais liberais de todas, de amarelo, autorizadas a sair da escola se acaso não houvesse o último tempo lectivo. É difícil não sermos contagiados pelo olhar nostálgico e saudosista daqueles tempos felizes e puros, tal como descritos na memória de Manuela Mendonça. Por vezes, a autora excede-se um bocadinho, nomeadamente quando enaltece as virtudes da Mocidade Portuguesa Feminina, linhas depois de reconhecer que aquela organização se tinha inspirado no modelo da Itália fascista. Por esse motivo, o pai, com quem não teve uma relação fácil, esteve praticamente a proibi-la de frequentar o seu amado Liceu Filipa. Em todo o caso, a nossa autora não é tão inflamada na defesa da Mocidade Portuguesa como o foi, no seu tempo, a colega Maria de Lourdes Pintasilgo, que desempenhava funções de Chefe de Castelo e, como tal, «procurava atrair as caloiras mais classificadas que poderiam ascender a Chefes de Quina e seguir carreira», diz Manuela Mendonça, que acrescenta, cortante: «Nunca aceitei».
         Também não aceitou os arranjos pré-matrimoniais que, desde os seus 13 anos, eram cochidados entre tias e outra parentela. Este é dos tópicos mais interessantes do livro. Num certo sentido, são memórias de uma menina bem comportada. Mas, por outro lado, o livro mostra uma personalidade estruturada, com o seu quê de independente, sendo entremeado com trechos do seu diário que revelam, sobretudo para os padrões de hoje, uma maturidade surpreendente. Ah, e uma qualidade de escrita que vinha de muitas e muitas leituras, nas férias que, à época, eram verdadeiramente grandes. Para os olhos contemporâneos, tudo pode parecer uma pasmaceira infernal, meninas a gastarem os verões na aprendizagem de bordados ou horas intermináveis de leituras. De boas leituras: Katherine Mansfield, Jane Austen, George Eliot e, uns furos abaixo, os inevitáveis ALexis Carrel e Pearl Buck. Mas também Rilke, Tolstoi, Stendhal, Tolstoi.
         Com a sua geração, Manuela Mendonça fez «amigas-irmãs» entre as colegas de liceu. Isto, claro, sem prejuízo das habituais tricas de adolescentes, e de uma ou outra alfinetada aqui e acolá. Não era a toa que se passavam tardes sobre tardes no corte e na costura… Mas, e voltamos ao ponto, o livro é interessantíssimo para entrar, até certo ponto, na visão do mundo de uma rapariga burguesa da Lisboa do tempo da 2ª Guerra, que foi mundial. Palavras como menstruação, gravidez e parto não eram utilizadas, optando-se por «já ser senhora», «estar à espera de bebé», «ter encomendado», «dar à luz».
         As «amigas-irmãs» decerto trocavam confidências sobre tudo isto, mas o livro, discretíssimo, não se alonga em pormenores escabrosos, impróprios de uma menina-família que, pressente-se nas entrelinhas, sempre manteve alguma altivez social e intelectual. Louva a «ordem» mantida no Liceu Filipa, tamanha disciplina que lhe chamavam «Convento das Filipinas», em contraste com o Maria Amália, tido por mais liberal e aberto. No Filipa, cada aluna era etiquetada, tendo um emblema na lapela que indicava o respectivo ano. Depois, as férias. E os brinquedos de infância, que a autora diz ter oferecido ao Museu do Brinquedo de Seia. Vi-os há uns meses, não sabendo a quem pertenciam. São, ou foram, de Maria Manuela Mendonça, que com orgulho se exibe como antiga aluna do Liceu Filipa de Lencastre – e cidadã do mundo e do tempo em que o liceu nasceu e fez escola. Festejou a vitória dos Aliados, frequentou as lojas da Baixa elegante: a Casa Leonel, a Gardénia, a Pompadour, os figurinos do Midões, e Madame Pavão (esta, ao Campo Pequeno). «Um dos passeios que demos, bastante grande, foi à terra da minha criada», conta-nos numa carta de 1948. Uma frase que diz muito. Ou outro episódio: as finalistas planearam ir à longínqua Madeira na viagem de tradição. Acabaram numa excursão ruidosa e alegre às Caldas da Rainha, que o dinheiro não deu para mais. Mas lá foram ela, cantando e rindo, passando por Alcobaça. Muitas já terão morrido, provavelmente. As outras estarão velhinhas, por certo. Mas todas se lembraram do seu tempo de moças castas, a adolescência casta, de quando Manuela Mendonça escreveu: «Sentia-me emocionada e confusa perante o sexo forte; não conseguia encarar com serenidade qualquer rapaz conhecido que comigo falasse uns momentos; ruborizava-me, olhava desconfiada para os lados buscando auxílio em qualquer pessoa que me pudesse surgir, e acabava por me evadir na primeira ocasião».
         Aluna distinta, Manuela entrou na Universidade – e sem a oposição do seu pai. Formou-se uma vez, depois outra, deu aulas e consultas, escreveu livros. Como este, que aqui fica apresentado, com timidez e candura.
 
António Araújo
              
  

2 comentários:

  1. Caro Prof. António Araújo:
    Em relação a este pormenor no início do texto, «Era lá que ficava – e fica – o Liceu Filipa, construção estadonovista que a autora praticamente estreou, em estado novinho (o liceu fora inaugurado em 1940-41 e Manuela Mendonça começou a frequentá-lo em 1943)», permita-me que lhe faça uma pequena adenda.
    O Liceu D. Filipa de Lencastre foi criado e começou a funcionar em 1928, no Palácio Quelhas, passando ainda, provisoriamente, por um prédio de habitação na rua de S. Bernardo, no ano lectivo de 1936/37.
    A partir de 1938 mudou-se definitivamente para o actual edifício no Arco do Cego (onde funciona hoje com o nome de Escola Secundária D. Filipa de Lencastre).
    Este edifício tinha sido construído para a Escola Primária Masculina e Feminina - mas com separação de sexos nas turmas - (Escolas Centrais do Bairro do Arco do Cego), com capacidade para 880 alunos.
    Fora projectado pelo arquitecto Jorge Segurado, com colaboração do arquitecto António Varela, mas o elevado custo - só em 1936 foi de 1400 contos - levou ao seu abandono para aquela finalidade, o que coincidiu com a alteração de filosofia política para a escola primária, optando-se por pequenas escolas que dariam origem ao Plano de Escolas dos Centenários (ou duplo centenário), muitas ainda em funcionamento e bem reconhecidas por nós.
    As dificuldades de instalações por que passava o liceu determinaram a sua passagem, que viria a ser definitiva, para o referido edifício modernista do Arco do Cego, que teve de sofrer algumas adaptações mas que nunca venceu as disfuncionalidades para a nova finalidade.
    Pode conferir aqui: Figueira, Manuel Henrique, «Liceu D. Filipa de Lencastre-Lisboa», in António Nóvoa & Ana Teresa Santa-Clara [coord.], «"Liceus de Portugal": Arquivos, Histórias, Memórias», (2003). Porto: Edições ASA, pp. 424-443.

    ResponderEliminar