sábado, 13 de maio de 2017

Simpósio com os Imortais.









 

Sei que foi numa quinta-feira de Maio ou Junho de 1976, mas não sei especificamente a data precisa. Encontrando-me no Rio de Janeiro em ano sabático, vi-me um dia convidado a assistir à sessão de chá das quintas-feiras da Academia Brasileira de Letras, a convite do escritor e académico maranhense Josué Montello, que viria a ser Presidente da Academia entre 1993 e 1995. O convite deve-se ao facto de eu haver travado conhecimento com uma filha de Josué Montello, por ocasião de uma comunicação feita por mim na Universidade Federal Fluminense em Niterói, e de, com ela e o genro do ilustre académico, ter passado um domingo em Teresópolis, na opulenta casa de campo de um ricaço construtor luso-brasileiro, vago parente meu,  por via materna. Embora quase semi-analfabeto, esse “vago parente meu” podia dar-se ao luxo de hospedar na sua vivenda pessoas de alto gabarito, tais como a filha e o genro do “imortal” Josué Montello, sendo o genro advogado e vereador da Prefeitura do Rio de Janeiro, a quem aliás o “vago parente meu” tinha doado uma boa parcela de terreno para eles poderem construir uma casa de campo junto da dele, em compensação de rotineiras e inócuas facilidades burocráticas com que o jovem advogado e vereador o tinha mimoseado.
Quando cruzei os umbrais da casa de Machado de Assis (era assim também chamada pelo facto de o autor de Dom Casmurro ser um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e o seu primeiro Presidente, em regime de perpetuidade), já quase todos os imortais (quarenta, à imitação da prototípica e celebrada Academia Francesa), os membros correspondentes estrangeiros (vinte, segundo os estatutos) e os convidados desse dia aí se encontravam. Introduzido imediatamente na Sala de Chá pelo meu anfitrião, Josué Montello, fui por ele apresentado ao Presidente da Academia dessa época, Austregésilo de Athayde. Seguidamente, uma após outra, enquanto tomava o meu chá e circulava na sala, vim a descobrir uma série de rostos conhecidos, uns pessoalmente – Adriano Moreira, membro estrangeiro da Academia - e outros de fotografia e de televisão: Marcello Caetano, Hermano Saraiva (então exilados no Brasil, como Adriano Moreira), Cyro dos Anjos e João Cabral de Melo Neto, ambos membros da Academia e escritores, naturalmente: romancista o primeiro e poeta o segundo.
Por meio de Adriano Moreira, que conhecera nos Estados Unidos e via com alguma frequência no Rio de Janeiro, onde ele vivia com a família, e de quem me tornara amigo, já sabia que ele andava de candeias às avessas com os outros dois membros correspondentes estrangeiros portugueses: Marcello Caetano e Hermano Saraiva. Pelo meu lado, de bem com todos eles, a todos cumprimentei e com todos troquei algumas impressões, não podendo esquecer a cortesia e a afabilidade com que Marcello Caetano e Hermano Saraiva tiveram a gentileza de me tratar, tendo-me o primeiro dito, para grande ... e agradável surpresa minha, modéstia à parte, que tinha lido “com gosto e proveito” alguns artigos meus e a minha edição do Cancioneiro de Dona Cecília de Portugal, publicados na revista Ocidente, de Lisboa, e tendo-me dito o segundo que estava à espera da publicação da minha tese de doutoramento sobre Fernão Álvares do Oriente, de que ele tinha lido um excerpto e a conclusão, publicados no suplemento literário do Diário Novidades, de Lisboa: que achava interessantíssimas e de grande relevância as referências de Fernão Álvares a Camões. (Apresso-me a proclamar alto e bom som, entre parêntesis, que ardentemente espero que essas leituras de Hermano Saraiva em nada tenham contribuído para ele vir a engendrar aquela coisa fantasista, mal parida e malfadada que dá pelo nome de Vida Ignorada de Camões. E entre parêntesis também, e em nome da justiça equitativa, apresso-me a contrabalançar esta observação com um facto de certa importância: a contribuição de Hermano Saraiva para levar ao conhecimento das grandes massas do público português tesouros ignorados da cultura plurissecular portuguesa, através de programas televisivos bastante apreciados pelo seu carácter popular.)
Nessa tarde de chá na Academia Brasileira de Letras, Cyro dos Anjos repetiu-me oralmente, muito sensibilizado, acentuava ele, o que já me tinha  dito por carta, em referência a um artigo meu sobre o seu romance Abdias, que tinha sido publicado no suplemento literário de um jornal de Moçambique, graças à amabilidade de Montezuma de Carvalho, juiz em Lourenço Marques, que eu conhecera no Verão de 1972, por ocasião da minha longa visita a Angola e a Moçambique. Aproveitei também esse breve encontro com o prestigioso jornalista, com o alto funcionário público, a nível estadual e federal, e com o professor universitário, para lhe dizer do enorme interesse com que os meus alunos e eu líamos e analisávamos nos cursos de literatura brasileira o seu romance mais conhecido: O amanuense Belmiro.
 Com João Cabral de Melo Neto, troquei algumas impressões sobre a sua poesia granítica e, principalmente, sobre o prazer com que os meus alunos e eu líamos o seu nunca por demais celebrado poema dramático: Morte e Vida Severina. Tendo-lhe perguntado quando teríamos novo livro seu, obtive como resposta um lamento inesperado e meio bizarro. É que, por esse tempo, ele tinha praticamente a musa em férias, por se ver forçado a pagar um alto preço pelas honras de ser no Senegal o decano do corpo diplomático, uma vez que esse cargo, que ele acumulava com o de embaixador na Mauritânia, no Mali e na Guiné-Conakry, lhe consumia todo o tempo que, noutras circunsâncias e noutros países, seria de lazer, querendo dizer com isso que se via obrigado a prestar toda a espécie de serviços, de primeira necessidade, sobretudo aos embaixadores caloiros, a começar pelo alojamento e a acabar pela procura de produtos alimentícios e de gasolina para os automóveis.  
Com uma simplicidade exemplar e com a cortesia que distingue os diplomatas brasileiros, justamente orgulhosos por fazerem parte de uma escola de diplomacia, a do Itamaraty ou Casa de Rui Barbosa, que pede meças à do Vaticano e à do Palácio das Necessidades, João Cabral de Melo Neto emocionou-se ao lembrar-lhe as apoteoses acontecidas em teatros de Lisboa, Coimbra e Porto, por ocasião da representação da sua Morte e Vida Severina. É que no final da representação tinha sido ovacionado e levado em ombros por actores e membros da assistência.
Voltando aos três membros correspondentes portugueses, presentes nessa sessão de chá das quintas-feiras da Academia Brasileira de Letras, quero frisar apenas uma faceta peculiar da personalidade de Adriano Moreira que eu já conhecia, mas que fiquei a conhecer melhor, por me ser dada a oportunidade de testemunhá-la em acto: a presença, num espaço relativamente exíguo e fechado, de dois adversários políticos com quem ele estava de relações cortadas, não obstou a que se sentisse e comportasse com o mesmo à vontade com que se sentiria e comportaria se eles não estivessem presentes. Era o transmontano a viver ao vivo o seu ideal de dignidade humana, de autenticidade, de integridade e de estoicismo por que sempre se tem pautado a sua vida pública e privada.  
Ouviu-se um som inefável, muito provavelmente em conformidade com um ponto do ritual mais vetusto e venerando que a própria Academia. Os imortais transpuseram solenemente, subtilmente e pensativamente os umbrais misteriosos do Sancta Sanctorum, para aí perorarem, ponderarem e pontificarem sobre matérias transcendentais e questões de lana caprina, enquanto nós, os simples mortais, regressámos à rotina prosaica e cinzenta dos filisteus.   
 
António Cirurgião


3 comentários:

  1. Espero que saiba que o que faz é serviço público. Obrigada.

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  2. Apenas uma pequena correção. O Itamaraty é a Casa de Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos Jr., Barão do Rio Branco, o patrono da diplomacia brasileira. A Casa de Rui Barbosa é uma instituição cultural sedeada na antiga residência desse grande jurista baiano, no Rio de Janeiro.

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    1. Prezado Sr. Rubem Amaral Jr.,
      Muito obrigado pela correcção.
      Cordialmente,
      António Cirurgião

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