sexta-feira, 4 de agosto de 2017

El amor brujo.



 
 
 
 
 
 
 
 
 


 
         Numa manhã soalheira e fresca, fresca de um Inverno fresco, caminhando nas encostas do Alhambra, fui parar à Casa-Museu Manuel de Falla em Granada. Não foi um acaso; tentara lá ir de véspera, ao entardecer, mas a casa estava quase a fechar, só dava para uma visita rápida. Regressei no dia seguinte, com calma e detença. Pela manhãzinha, logo à abertura, quando não havia ninguém por aquelas bandas.
 
 
         Paul Bowles estivera ali, nos anos trinta (mais precisamente, em 1932), tendo o privilégio de falar com o compositor e a sua irmã, como nos conta nas suas Memórias de um Nómada:
         «Em Granada, descobri que Manuel de Falla vivia logo abaixo da colina onde se erguia o hotel. Certa tarde, fui bater-lhe à porta. Ele e a sua irmã, já adiantados na meia-idade, viviam com grande simplicidade na mais andaluza das casas, rodeados de plantas floridas em vasos. Passámos metade da tarde sentados no pátio, a comer fruta que tirávamos de uma enorme taça. O francês era a nossa língua franca. Falei-lhe da minha admiração por El Retablo de Maese Pedro; ele estava mais interessado no seu Concerto para Cravo, que eu não conhecia. Noutro dia, vi-o envolto numa longa capa negra, apressando-se ao longo de uns becos poeirentos na colina de Alhambra, a caminho da missa do meio-dia».
         Manuel de Falla y Matheu (1876-1946) e a sua irmã, Maria del Carmen, viveram ali desde 1920 a 1939, quando fugiu ao franquismo, fixando-se na Argentina. Em 1921, Falla decidiu alugar esta casa e torná-la sua residência definitiva: situada na colina sul do Alhambra, fica na Antequeruela ou Caidero, e é uma carmen –  nome intraduzível – a carmen de Ave María. No nº 11 da Calle de Antequeruela Alta, e até tem página na Internet: www.museomanueldefalla.com.
















 
 

        A vista, deslumbrante. O interior, austero e frugal. Mas povoado de objectos que evocam a paixão andaluza do compositor, o seu amor lhano pelas coisas simples, ingénuas, piedosas e populares, radicalmente espanholas. A par deles, e como é natural numa casa-museu, coisas pessoais ou que nos recordam a grandeza de Manuel de Falla. Azulejos, relógios de parede, jarros de água em cerâmica, móveis despojados e utilitários, sólidos e obedientes. Um quadro a óleo da escola sevilhana do século XVIII, representando a Virgem com o Menino ao colo, talvez o reflexo da devoção do dono daquela carmen de paredes pintadas de branco. Gravuras franceses com cenas de touros e cavalos. No ante-estúdio, por cima de uma mesa, uma colcha pendurada. Perguntei ao guia, que me abrira a porta, se sabia a origem daquela obra de arte. Infelizmente, desconhecia a sua origem e não havia qualquer legenda que me elucidasse. No Catálogo-Guia de la Casa-Museo Manuel de Falla en Granada avança-se um pouco mais. Era por ali que, nos dias mais quentes, Falla tocava ao piano, compondo as suas geniais criações. Com 224 x 134 cm, a colcha, diz o catálogo-guia, é feita em linho, bordado em sedas azuis, amarelas e brancas. Manuel de Falla comprou-a num antiquário, por sugestão do pintor granadino Manuel Ángeles Ortiz. Diz-se que os temas da colcha – sóis, luas, girassóis – inspiraram um dos grandes amigos de Falla, o poeta Federico García Lorca. Ao que parece, García Lorca terá mesmo copiado alguns dos motivos da colcha, incluindo, diz o catálogo-guia, as figuras de «Marianita Pineda» que se encontram no centro do precioso pano. Acrescenta o livro ser provável que se trate de um trabalho popular ou feito num convento feminino.
         Logo me pareceu na altura que poderia tratar-se de uma colcha de Castelo Branco. Como ali fora parar, não sei – mas não era inverosímil que um antiquário de Granada a tivesse comprado num lugar qualquer. Depois, maravilhou Falla e Lorca, devendo lembrar-se que o músico tudo fez para evitar que o seu amigo fosse assassinado, como foi. Um dia, com tempo e vagar, irei tentar ver, o que não é muito provável, se existem referências à colcha de Falla nas biografias de Lorca, começando pela maior de todas, da autoria de Ian Gibson. Talvez haja mesmo no espólio do Lorca algum desenho feito a partir dos sóis e girassóis, das meias-luas ou das mulheres delicadamente bordadas no centro da composição.
         Desastradamente, só mais tarde reparei que tinha feito umas fotografias horríveis à colcha de Manuel de Falla. Não se via nada, na penumbra da casa do Alhambra. Mandei um e-mail para a Casa Museo e não é que me responderam, enviando estas cinco imagens?
 




 
 
 
 
         Mariana Pineda foi uma heroína liberal de Granada, nascida em 1804 e executada em 1831. No site da Casa Museu de Falla pode ver-se o ante-estúdio, num vídeo. Mas, com o devido respeito, parece-me que a afirmação, constante do catálogo, de que aquelas figuras representam Mariana Pineda é fruto de um equívoco granadino, um excesso de paroquialismo.
 A representação de duas figuras femininas é frequente em muitas colchas de Castelo Branco e evoca o sentido do olfacto. Diz-se no livro Colchas de Castelo Branco (1993), da autoria de Clara Vaz Pinto, directora do albicastrense Museu de Francisco Tavares Proença Júnior:
«O sentido do olfacto prevalece nas colchas, com pares feminino-masculino mas, essencialmente, com pares femininos. Numa delas, caso raro, senão mesmo único, o movimento de toda a composição do medalhão central sugere uma música que enche o par de expressividade gestual (…). Nalguns casos, o ramo floral que a figura segura não está junto à face – para cheirar – mas junto à cabeça. Simples adorno ou simples preferência estética do desenhador da colcha ou apenas uma mão fraca para o desenho?»
Mais adiante, servindo de legenda a várias fotografias de colchas, de colchas de Castelo Branco, escreve-se: «Duas a duas, lado a lado e trajando à época, é nestes motivos centrais de figuras femininas aspirando o perfume das flores que transparece uma sensualidade que culmina no campo. Pela alusão ao sentido do olfacto, pelo porte e pela atitude das figuras, estes medalhões intimistas destacam-se das composições vegetalistas que preenchem o campo».
Noutro livro sobre as colchas, O Bordado de Castelo Branco. História, Arte, Coleccionismo, Musealização, de 2007, Margarida Ivo Rosa observa, a propósito de uma das peças mostradas em fotografia: «Modelo que poderá remontar ao século XVIII, pelo campo percorre um tronco ondulado interrompido sobre o eixo central por grandes cravos espalmados que ladeiam duas figuras femininas, evocadoras dos sentidos do tacto e do olfacto, dispostas no centro do medalhão».  Além disso, refere-se: «As figuras humanas surgem em espécimes de composição simples, isoladas ou em pares, relacionadas com os sentidos do tacto, do olfacto e da audição. (...) trata-.se de uma forma de figuração igualmente registada nos tapetes de Arraiolos que remete para as colchas indo-portuguesas com o tema dos Cinco Sentidos». E cita-se um texto de Aquilino Ribeiro, que merece ser transcrito: «as bordadeiras de Castelo Branco construíram nas suas colchas uma flora maravilhosa e uma fauna não menos escapada de zoologia, consoante o lampejo fugaz que as coisas reais, ausentes da vista, levantam no céu estelar da imaginação».

Creio, em suma, que há boas razões para afirmar que, ao invés de uma colcha granadina representando Mariana Pineda, Manuel de Falla tinha em sua casa, nas encostas do Alhambra, uma portuguesíssima colcha de Castelo Branco. Que García Lorca terá desenhado, dizem. É uma pequena história, mas creio que vale a pena contá-la. Se algum leitor puder ajudar para fundamentar esta «descoberta», os meus agradecimentos.
António Araújo    

           


 

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