Soutelinho da Raia
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Sempre
que tomo conhecimento do nascimento de uma criança, penso logo em minha mãe,
pelo facto de ela ter sido a única parteira da minha aldeia, Soutelinho da
Raia, de umas quatrocentas e cinquenta almas, naquele tempo, durante várias
décadas.
Já eu
vivia nos Estados Unidos quando soube desse facto em pormenor. É que essas
coisas eram tabu, no tempo de eu menino e adolescente.
Quando chegava o dia ou a noite do
nascimento de uma criança, os pais mandavam os filhos para casa de algum
parente e eles só regressavam à casa paterna, quando havia menino novo ou
menina nova.
E
quanto ao exercício de parteira por parte de minha mãe, a primeira vez que tomei conhecimento dele, estava eu de
férias grandes do seminário (as únicas que os salesianos nos concediam durante
os quatro anos de aspirantado, pois, a partir do noviciado, nunca mais havia
férias com a família, no meu tempo de seminarista), quando um dia, pela manhã,
chega minha mãe a casa e começa a fazer uma grande barrela. E é nesse momento
que ouço a minha cunhada Matilde perguntar à minha mãe:
-
Então é menino ou menina?
Agora
os "pormenores" a que se aludiu atrás.
Tinha
minha mãe 16 anos quando um dia a sua Tia Hipólita bateu à porta de minha avó
Gracinda e lhe disse que lhe queria levar a filha (única) para a assistir num
parto. Que ela já começava a sentir-se cansada e que queria ensinar à sobrinha
a arte de parteira: que essa profissão tinha estado sempre na família e ela
queria que assim continuasse a ser.
E, com
o beneplácito da minha avó, minha mãe foi com ela e, depois da necessária
aprendizagem, passou a ser a parteira da terra durante os muitos anos que viveu
em Soutelinho da Raia.
E
rematava minha mãe, ao contar essa história, que as suas mãos tinham aparado
muito bebé e que, graças a Deus, só perdera um. Que depois de horas e horas de
tentativas o bebé não aparecia.
Visto o quê, montaram a parturiente a
cavalo de um burro, aparelhado com umas andas, a caminho de Chaves, numa
tempestuosa noite de inverno, a mais de
duas horas de distância. Vão bater à porta da clínica do Dr. Alcino, se me não
engano. O Dr. Alcino estava no café do costume e, também como de costume,
estava bêbedo como um cágado. Com muito esforço, lá o arrastaram como puderam
até à clínica, mas, infelizmente – acrescentava minha mãe muito comovida -,
quando chegou já era tarde.
Claro
que minha mãe não recebia qualquer honorário pelo exercício da profissão de
parteira. Antes pelo contrário. Como era frequente darem à luz criadas de
servir oriundas de terras longínquas, sem quaisquer relacionamentos, quantas
delas “sine patre, sine matre, sine generatione”, minha mãe não só lhes
“aparava” os filhos e lhes dava o enxoval, mas oferecia-se-lhes para madrinha
de baptismo, sempre que necessário, sendo padrinhos, em muitos desses casos, um
dos santos da Corte do Céu, desde Santo António a São José, desde Santa Ana a
Santa Isabel, colhendo São Sebastião as preferências de minha mãe, por ela ser
a zeladora do altar em que ele era venerado na Igreja Matriz de Soutelinho da
Raia, por sinal uma bela igreja barroca onde recentemente foram descobertos
cinco painéis de frescos, datados do século XVIII, reproduzindo quatro deles
cenas da vida religiosa e o quinto uma cena de contrabando, a testemunhar o
estatuto de Soutelinho da Raia como “povo promíscuo”, desde a Idade Média até
ao tratado de Lisboa de 1864 entre a Espanha e Portugal e, a partir dessa data,
o de aldeia raiana.
E esta
é a história sobre a maneira como minha saudosa mãe Delfina foi feita parteira
de Soutelinho da Raia e lá exerceu briosa e competentemente essa nobre
profissão, durante os muitos anos que aí viveu.
António Cirurgião
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