quarta-feira, 7 de julho de 2021

Pele escura, de Graça Castanheira.

 




O breve documentário de Graça Castanheira conta a história da visita de um pequeno grupo de pele escura que mora na Trafaria, ao Centro Cultural de Belém. Ironicamente e como se se tratasse de um espelho, a visita tinha por fim fazer com que o grupo assistisse ao próprio documentário acerca dessa mesma visita. Esta narrativa coloca um problema principal: o de saber como é que um grupo com origens africanas – que vive na periferia de uma cidade, sofre o estigma da discriminação racial e social e ao qual se pretende dar voz – se relaciona com o centro, sobretudo com as suas instituições culturais.

Trata-se de uma relação ou de um conjunto de relações que se encaixam, em parte, numa ideia bastante essencializada do contacto de culturas. Resta saber qual a margem que o próprio documentário cria para conceber relações que escapem ao previsível, sobretudo, a representações geradoras de tantos estereótipos.

Ao grupo periférico são atribuídas várias características externas, em parte baseadas, em atributos corporais: a pele escura como consta do título, uma linguagem própria, uma forma de andar e de dançar que funcionam também como um estereótipo identitário, o vibrar com a música cuja letra contém em si uma alusão ao giro africano, os inevitáveis cabelos afro, vestuário e calçado de marca e o recurso ao telemóvel e aos phones, enquanto apropriação dos atributos do centro, por parte de um grupo considerado periférico.

Aos marcadores corporais acabados de enunciar somam-se três diferentes tipo de denúncias. A primeira diz respeito à queixa acerca dos meios de transporte. São os horários dos barcos e dos comboios ou a própria precariedade do automóvel que parecem impor-se como uma barreira, difícil de transpor, entre o centro e a periferia, explicando também os atrasos com os quais o próprio grupo brinca no final do documentário. Uma barreira, claro está, que não afecta apenas o grupo de pele escura, mas todos aqueles que vivem na outra banda (o que constitui um modo de atenuar uma perspectiva essencialista, abrindo para outros posicionamentos sociais). As barreiras são tais que melhor seria, como é dito por José a um dos mais jovens actores, bastava vir a nado e atravessar em linha recta o Tejo.

A segunda das denúncias, que divide os protagonistas, diz respeito à necessidade de o grupo periférico ter de se deslocar a Lisboa, para assistir a um espectáculo cultural. Isto é, à projecção de um filme. Não teria sido melhor, pergunta Amara, que tudo se passasse ali, na Trafaria, no centro cultural ou no espaço da biblioteca? Pergunta a que ela própria responde, considerando que os outros – os “pulas”, ou “tugas” – não conseguiriam sequer lá chegar.

Uma terceira denúncia envolve uma queixa mais funda em relação ao modo como os outros, os “tugas”, se continuam a fazer representar pelo chamado Padrão dos Descobrimentos e continuam a ter uma visão celebrativa ou comemorativa do Império. Pior: se foram capazes, como afirma Amara, de mudar o nome da Ponte de Salazar para Sobre o Tejo, por que razão têm tanta dificuldade em apagar os nomes dos locais de celebração imperial? Ou, como sugere o Tio Joaquim, o cota, por que não passar a chamar, ao Padrão dos Descobrimentos, Museu da Kizomba? Nas palavras de uma das protagonistas, este é um “problema que estamos com ele” e, segundo o “cota”, está para durar e não se resolverá tão cedo.

Até aqui, os principais aspectos tendem a alinhar-se em termos de uma série de dicotomias, opondo nós – os periféricos de pele escura, da periferia – aos tugas que estão no centro, com os seus monumentos, memórias celebrativas do império e espectáculos, em centros com vocação para monopolizar as iniciativas culturais. Em face desta oposição entre duas culturas, a qual revela uma clara opressão e exclusão, porque não se revoltam os periféricos e de pele escura? A questão é retórica, porque é evidente não existirem, em nenhum momento do documentário, indícios de comportamentos de ruptura emancipadora. Nem sequer se coloca essa mesma questão.

Pelo contrário, o documentário parece conter em si uma série de propostas pedagógicas, mais conformistas, que quebram qualquer tipo de apelo à violência, procurando fazer valer uma visão mais eufemística do contacto entre culturas. Sem seguir a sequência da sua aparição no documentário, será possível argumentar que a obrigação da pequena actriz cumprir com os seus deveres escolares, antes de participar na visita, surge como um apelo directo à educação e à escola, enquanto instrumentos principais na criação de melhores condições de vida.

Depois, qual o significado da bandeira portuguesa, na casa de uma das mulheres que surge inicialmente com um vistoso cabelo afro? Mera cortina ou símbolo de uma luta pela inclusão com direitos plenos à cidadania portuguesa? Imagino que a sua utilização seja intencional, logo, o que está em causa é essa luta pelos direitos de cidadania, da qual fazem, constitucionalmente, parte os direitos à educação, saúde, justiça, salário digno, habitação, representação política plena, etc.

Há também que reflectir sobre o significado da primeira cena. Nela, um pescador branco, vindo de barco, entrega a dois jovens de origem africana um saco de peixe fresco. O pescador representa o valor do trabalho, mas também o gesto solidário com os jovens impecavelmente vestidos. Depois, todos os outros protagonistas de pele escura alinham as suas vozes, em relação à visita, com manifestações de lazer e iniciativas culturais, excluindo da sua representação as lutas quotidianas e as práticas laborais. Qual a intenção que se encontra por detrás desta exclusão tão marcada? A pretexto de querer intencionalmente dar voz ao grupo periférico de pele escura, fazendo com que todos se façam ouvir na chamada área da cultura, a sua representação acaba por ser amputada de uma ligação ao quotidiano e ao trabalho. Trata-se, reconheço, de uma crítica fácil, mas não significará esta mesma operação de exclusão um convite a uma visão estetizada de um grupo que é, à partida, considerado subalterno?

Para responder à última pergunta e perceber como pode uma representação pela imagem escapar ou não aos riscos de estetizar bairros pobres e grupos subalternos, vale a pena analisar toda uma série de diálogos que insinuam a ironia resignada, a alegria risonha e a solidariedade sentida na falta de dinheiro, e que não passa pela representação do modelo da família monoparental. Por outras palavras, o documentário reporta a uma economia moral dos subalternos, fundada no riso, na ironia e em sentimentos solidários de colaboração e entreajuda, bem como na representação de lindos corpos e caras. Onde fica, então, o sofrimento, a violência e a resistência em resposta às inúmeras formas de controlo e discriminação sofridas pelos subalternos?

Uma última palavra diz respeito ao tema da viagem, da periferia ou de fora para o centro. Trata-se de um velho tema da cultura ocidental. As Cartas Persas (1721) de Montesquieu são talvez uma das obras mais conhecidas deste tipo de procedimento da razão iluminista europeia. De facto, este documentário parece tributário desta linha crítica do pensamento ocidental que procura encontrar, na visão do outro, um espelho que nos permita ganhar distância e pormo-nos em causa a nós próprios?

Sem pôr em causa esta preocupação pelo espelho, sobretudo, quando este nos ajuda a ganhar distância e a conhecermo-nos melhor, não haverá outras formas – porventura mais eficazes e descentradas de nós próprios – de dar voz àqueles que não têm voz? Sem a pretensão de responder a uma questão que só quem domina a linguagem dos documentários poderá alcançar, não resisto – por saber que Graça Castanheira vem da Huíla – a citar aqui o testemunho exemplar de Pereira do Nascimento, um médico português de finais do século XIX, em Da Huilla às Terras do Humbe (Huíla, 1891). Eis o que pensavam os habitantes do Humbe acerca dos portugueses brancos, segundo o registo que publicou:

 Os brancos, na sua opinião, não passam de uns pobres diabos sem beira, nem eira, que não tendo gado nem plantações nas suas terras emigram para a África, onde passam vida errante (ova-kankala); vêm ao Humbe carregados de bugigangas, que lhes vendem a troco de gado, que enviam para as suas terras afim de sustentar os parentes, que não têm que comer, nem onde cair mortos. Dizem que nós temos habilidade para fazer coisas bonitas e boas, mas não sabemos criar gado nem plantar mantimentos, por isso que as nossas terras são áridas e secas, não têm pasto nem se prestam a ser cultivadas e para não morrermos à fome somos forçados a emigrar, onde, com o engodo nos artefactos que os seduzem, vamos vivendo à sua custa!

 

Diogo Ramada Curto 


(originalmente publicado aqui)

 





3 comentários:

  1. Documentario profundamente racista.Acabou a luta de classes e agora temos a raça com factor de divisao social e intoletancia.

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