terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Custa acreditar: o grande escritor Somerset Maugham andou em missão de espionagem.





 

Seguramente um dos mais apreciados escritores britânicos do século XX, com aficionados entusiastas entre as novas gerações, autor de romances incontornáveis como Servidão Humana ou O Fio da Navalha, contista prodigioso, novelista exímio, um talento irreprimível para dissecar as paixões humanas, é com surpresa que o vemos como pioneiro da literatura de espionagem, uma viagem autobiográfica sobre o seu trabalho para os Serviços Secretos Britânicos na I Guerra Mundial, surpresa que garante uma leitura compulsiva e comprova que a espionagem não é tema de segunda ordem: Ashenden, O Agente Britânico, por Somerset Maugham, ASA, 2021.

          Ashenden é Somerset Maugham, vamos vê-lo na Suíça, em situações de alto risco, fazendo desfilar personagens que vão do insólito ao grotesco, tudo na neutral Suíça, a sua derradeira missão é assistir a ascensão de Lenine Trótski e Leon Trótski, o governo de Kerensky foi derrubado, tudo está a correr bem para o inimigo alemão, Somerset Maugham chegou tarde, a Rússia sai da guerra. O autor resolve jogar o jogo da verdade, como descreve no prefácio: “Este livro tem por base as minhas experiências no Departamento de Informações durante a guerra, alteradas para efeitos ficcionais”. Ele vai insistir que o livro é uma obra de ficção, procura apagar-se: “Grande parte do trabalho de um agente é invulgarmente inútil. O material que ele oferece para histórias é fragmentário e desconexo; é o autor que tem de o tornar coerente, dramático e provável. Em 1917 fui à Rússia. Fui enviado para impedir a Revolução Bolchevique e para manter a Rússia na guerra. O leitor saberá com certeza que os meus esforços não foram bem-sucedidos”. Ele é já um escritor altamente credenciado quando foi recrutado para trabalhar nos Serviços Secretos Britânicos. “Ashenden estava familiarizado com várias línguas europeias e a sua profissão era um excelente disfarce, pois com o pretexto de estar a escrever um livro podia visitar qualquer país neutro sem atrair atenções”. O seu chefe será R, que logo adverte: “Se as coisas correrem bem, não receberá qualquer agradecimento, e se correrem mal, não terá qualquer ajuda”.

          As peripécias de Genebra estão ao melhor nível dos grandes autores da espionagem: agentes duplos que não escondem a chantagem, que ameaçam trocar as fontes de informações se não lhes derem mais dinheiro; interrogatórios da polícia suíça, com sérias dúvidas que Ashenden se limite a andar a procurar inspiração naquele mundo em guerra; enigmáticas damas, como uma tal Miss King, que trabalha para uma baronesa austríaca, Ashenden procura a aproximação, Miss King corta-a direito, não deseja travar conhecimentos com estranhos, no entanto a baronesa convida o agente britânico para um jogo com um certo paxá, anda por ali também um príncipe, é nisto que Miss King adoece gravemente e pede a presença de Ashenden, tem um segredo para lhe revelar, morre em convulsão, a única palavra percetível que diz antes de morrer é Inglaterra; e aparece o mais espantoso fanfarrão, o mexicano calvo, saberemos que se chama o general Camora, Somerset Maugham aproveita para nos dar dele uma descrição inultrapassável, e numa simplicidade que fascina: “Era um homem alto e, embora mais magro do que gordo, dava a impressão de ser muito forte; estava vestido com elegância, num fato de sarja azul, com lenço de seda dobrado no bolso do peito do casaco, e tinha uma pulseira de ouro. As suas feições eram boas, mas um pouco maiores do que o normal, e tinha olhos castanhos e reluzentes. Não possuía de facto qualquer espécie de pelo. A pele amarela era suave como a de uma mulher e não tinha sobrancelhas nem pestanas; na cabeça trazia uma peruca de um tom castanho-claro, bastante comprida, com as madeixas arranjas numa desordem artística. Isto e o rosto macilento e liso, aliado à indumentária elegante, dava-lhe uma aparência que, à primeira vista, era um pouco chocante”. E que histórias este mexicano não nos irá proporcionar, sempre a fazer gala de ser um mulherengo de truz, cometera os seus disparates, enganando-se em gente que deve liquidar.

          Ashenden não trabalha só em Genebra, é obrigado a ir a Paris, e é nesta deambulação que nos confessa que leva uma vida calma e monótona de um funcionário público: “Via os seus espiões em intervalos regulares e pagava-lhes dos salários; quando conseguia arranjar um novo, contratava-o, dava-lhe as suas instruções e mandava-o para a Alemanha; esperava pelas informações que lhe chegavam e despachava-as; ia à França uma vez por semana conferenciar com um colega do outro lado da fronteira e receber as suas ordens de Londres; visitava o mercado no dia do mercado para receber qualquer mensagem que a velha vendedora de manteiga lhe tivesse trazido do outro lado do lago; mantinha os olhos e os ouvidos bem abertos e escrevia longos relatórios que estava convencido que ninguém lia”. E dão-lhe uma missão terrível, era imperativo liquidar Chandra Lal, um temível agitador de rebelião dos indianos contra os britânicos na Índia, Chandra tinha a ajuda dos agentes alemães, missão essa que será bem-sucedida, fazendo-se recurso a uma grande paixoneta do indiano por uma espanhola, usada como marioneta. Inevitavelmente, há traidores e traições, é o caso do inglês casado com uma alemã, houve que lhe armar uma cilada, eram tempos em que se tudo se resolvia rapidamente com um pelotão de fuzilamento. E estamos chegados a um desabafo do embaixador, até parecia não apreciar muito o Ashenden, temos aqui outra descrição notável do Somerset Maugham, e aqui ele põe à prova o seu brilhantismo que usou no romance, novela, conto e dramaturgia, o embaixador amou alguém e simula estar a contar uma história, é um dos momentos mais pungentes deste romance, como sempre o escritor mostra-se eloquente a apreciar o lado inesperado, romântico e ridículo da vida, Sir Herbert agora Witherspoon é indiscutivelmente uma das figuras mais poderosas de toda a ficção deste notável escritor. Temos a viagem de Nova Iorque para São Francisco, a travessia do Pacífico num barco japonês até Yokohama, depois viaja até Tsuruki, depois chega a Vladivostok, Ashenden toma o Transiberiano até Petrogrado, vai acompanhado por um norte-americano, Harrington, outra figura de gabarito, inesquecível, somos imersos numa atmosfera revolucionária, contacta com gente ligada a subversão, enfrentamos paixões russas, também não iremos esquecer tão cedo Anastasia Alexandrovna, estala a revolução na noite de 7 de novembro de 1917, os bolcheviques estão na rua, chegou a hora de fugir ao tiroteio, a missão falhou.

          Leitura imperdível, lê-se tudo com imenso respeitinho pelos sucessos e dissabores que espiar acarreta.

 

 

Mário Beja Santos

 




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