Foi uma
daquelas amizades marcadas por encontros regulares, de intensa cumplicidade,
logo a partir do primeiro encontro em que nasceu o nosso gosto pelas leituras
em comum. E 20 anos, aproximadamente, de nos termos conhecido, este meu amigo
começou a ter graves problemas de visão, e cegou completamente, foi o maior
abalo que o podia afetar, bibliófilo desmesurado, a casa a transbordar desde o
corredor da entrada, quartos reconvertidos, o corredor dos quartos, o
escritório praticamente inacessível, a cama cercada de livros, carreirinhos na
sala de estar.
Exatamente nesta sala de estar, durante 14 anos a fio,
fiz-lhe leituras, de acordo com a exigências do dono da casa, de Cristóvão
Colombo às lutas entre miguelistas e liberais, livros sobre o Estado Novo, uma
curiosidade compulsiva quanto a novos talentos literários portugueses, tudo nos
podia acontecer e eu não escondia o comprazimento que me dava corresponder a
esta intensa alegria que era vê-lo empolgado, houvesse texto sobre Mário
Cesariny de Vasconcelos ou um ensaio recente sobre o Integralismo Lusitano.
Impôs-se
naturalmente o ritual das conversas avulsas, foi, até ao fim dos seus 90 anos,
um homem dotado de uma memória prodigiosa, recordava Vitorino Nemésio ou as
noites de Natal da sua infância, como se fossem acontecimentos da véspera.
Acontece que as paredes da casa, as que não estavam cobertas de livros,
enchiam-se de imagens dos ancestrais, pululavam fotografias de familiares e
amigos e sobretudo na sala de estar, o nosso ponto de convívio, as paredes
estavam cobertas de quadros da sua eleição, cada um daqueles quadros propiciava
histórias de encontros, amizades, relações intensas que mantivera com artistas
plásticos, caso de Moniz Pereira, Noronha da Costa ou Cesariny. Eu sentava-me
num cadeirão no canto, de madeira maciça, junto a uma cantoneira cheia de
recordações, e por cima estava pendurado um quadro que me assombrava, um óleo
de caligrafia críptica, uma espantosa mancha de cor verde bordejada, imaginava
eu, de um emolduramento de tom anil. E um dia não resisti a perguntar-lhe a
proveniência da obra. Registei algo parecido com o que passo a escrever:
“É um óleo
da Lourdes Castro, dávamo-nos muito bem, ela chegou a fazer uma palestra no
Centro Nacional de Cultura, no tempo em que eu fiz parte da sua direção. O René
Bértholo, o futuro marido, era mal-encarado, ela uma simpatia, mostrava-me as
fotografias dos seus trabalhos, era arte abstrata, nada que me recordasse abstracionistas
consagrados como Kandinsky, os construtivistas russos, os futuristas, até
Jackson Pollock, senti que era um caminho muito próprio, isto em meados da
década de 1950, pontificavam ainda entre nós os modernistas e os neorrealistas.
Muitas vezes, findo o meu trabalho, ia até à Galeria Pórtico, que ela também
frequentava, conversávamos, e ela desabafa sempre que queria partir para a
Europa, percorrer mundo. Era uma mulher singela, nunca escondia as dificuldades
com o dinheiro. E em 1957 compareci à inauguração da exposição na Galeria do
Diário de Notícias, este quadro estava acabadinho de fazer. Foi amor à primeira
vista, era uma revolução para os meus olhos. Não foi por acaso que o coloquei
aí, contemplava-o amiúde, aqui sentado no cadeirão, enquanto tive vista. Foi um
período curto, este de arte abstrata da Lourdes, depois andou a fazer aqueles
utensílios de que eu não desgostava, embora me parecesse um prato requentado,
lembrava-me o Marcel Duchamp e os seus seguidores, depois vieram as sombras e mais
tarde os herbários, sei muito bem que esta arte abstrata não deve entusiasmar
os mercadores de arte, e ainda bem. Haverá poucos quadros deste período, ela
teve um incêndio no atelier que lhe devorou muitas telas. Depois ela partiu
para Paris, nunca mais nos vimos, perdão, ela está aqui presente a recordar
este espantoso período da vida artística de que ninguém fala”.
Pediram-me
os herdeiros deste querido amigo que os apoiasse no desmanchar da casa, fi-lo
com dor, manuseei os seus milhares de livros e outros pertences. E os seus
familiares presentearam-me com esta companhia diária, uma Lourdes Castro que
aqui não tem sombras, nem construções utilitárias ou simuladas nem herbários,
um quadro a óleo que revisito e que me recorda, como deve ser, este benfeitor
cultural, uma memória vigorosa e revigorante que me trouxe ensinamentos
fecundos, o meu muito especial companheiro de leituras, alguém que me
telefonava com muita frequência e que assim começava a frase: “por gentileza…”,
e com esta deferência eu devia encaminhar-me para um alfarrabista da Calçada do
Combro, a livraria da Imprensa Nacional, se eu podia licitar num leilão online,
e muito mais.
Leio agora
a necrologia a exaltar esta admirável artista plástica das sombras, um dos
nomes mais sonantes das artes plásticas do nosso século XX, e apeteceu-me tirar
do anonimato e mostrar a quem tem direito que Lourdes Castro teve outras
inquietações antes das sombras, nos chamados Anos de Chumbo ela foi uma
formidável promessa num outro itinerário vanguardista, o abstracionismo, que
começava a ganhar fluência nas artes plásticas portuguesas.
Aqui vos deixo a imagem da Lourdes Castro que me remete,
digo-o com imenso orgulho, para uma indefetível amizade, que a artista alumia,
em cada dia da minha vida.
Mário Beja
Santos
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