terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Lourdes Castro, muito antes das sombras.

 




 

   Foi uma daquelas amizades marcadas por encontros regulares, de intensa cumplicidade, logo a partir do primeiro encontro em que nasceu o nosso gosto pelas leituras em comum. E 20 anos, aproximadamente, de nos termos conhecido, este meu amigo começou a ter graves problemas de visão, e cegou completamente, foi o maior abalo que o podia afetar, bibliófilo desmesurado, a casa a transbordar desde o corredor da entrada, quartos reconvertidos, o corredor dos quartos, o escritório praticamente inacessível, a cama cercada de livros, carreirinhos na sala de estar.

Exatamente nesta sala de estar, durante 14 anos a fio, fiz-lhe leituras, de acordo com a exigências do dono da casa, de Cristóvão Colombo às lutas entre miguelistas e liberais, livros sobre o Estado Novo, uma curiosidade compulsiva quanto a novos talentos literários portugueses, tudo nos podia acontecer e eu não escondia o comprazimento que me dava corresponder a esta intensa alegria que era vê-lo empolgado, houvesse texto sobre Mário Cesariny de Vasconcelos ou um ensaio recente sobre o Integralismo Lusitano.

          Impôs-se naturalmente o ritual das conversas avulsas, foi, até ao fim dos seus 90 anos, um homem dotado de uma memória prodigiosa, recordava Vitorino Nemésio ou as noites de Natal da sua infância, como se fossem acontecimentos da véspera. Acontece que as paredes da casa, as que não estavam cobertas de livros, enchiam-se de imagens dos ancestrais, pululavam fotografias de familiares e amigos e sobretudo na sala de estar, o nosso ponto de convívio, as paredes estavam cobertas de quadros da sua eleição, cada um daqueles quadros propiciava histórias de encontros, amizades, relações intensas que mantivera com artistas plásticos, caso de Moniz Pereira, Noronha da Costa ou Cesariny. Eu sentava-me num cadeirão no canto, de madeira maciça, junto a uma cantoneira cheia de recordações, e por cima estava pendurado um quadro que me assombrava, um óleo de caligrafia críptica, uma espantosa mancha de cor verde bordejada, imaginava eu, de um emolduramento de tom anil. E um dia não resisti a perguntar-lhe a proveniência da obra. Registei algo parecido com o que passo a escrever:

          “É um óleo da Lourdes Castro, dávamo-nos muito bem, ela chegou a fazer uma palestra no Centro Nacional de Cultura, no tempo em que eu fiz parte da sua direção. O René Bértholo, o futuro marido, era mal-encarado, ela uma simpatia, mostrava-me as fotografias dos seus trabalhos, era arte abstrata, nada que me recordasse abstracionistas consagrados como Kandinsky, os construtivistas russos, os futuristas, até Jackson Pollock, senti que era um caminho muito próprio, isto em meados da década de 1950, pontificavam ainda entre nós os modernistas e os neorrealistas. Muitas vezes, findo o meu trabalho, ia até à Galeria Pórtico, que ela também frequentava, conversávamos, e ela desabafa sempre que queria partir para a Europa, percorrer mundo. Era uma mulher singela, nunca escondia as dificuldades com o dinheiro. E em 1957 compareci à inauguração da exposição na Galeria do Diário de Notícias, este quadro estava acabadinho de fazer. Foi amor à primeira vista, era uma revolução para os meus olhos. Não foi por acaso que o coloquei aí, contemplava-o amiúde, aqui sentado no cadeirão, enquanto tive vista. Foi um período curto, este de arte abstrata da Lourdes, depois andou a fazer aqueles utensílios de que eu não desgostava, embora me parecesse um prato requentado, lembrava-me o Marcel Duchamp e os seus seguidores, depois vieram as sombras e mais tarde os herbários, sei muito bem que esta arte abstrata não deve entusiasmar os mercadores de arte, e ainda bem. Haverá poucos quadros deste período, ela teve um incêndio no atelier que lhe devorou muitas telas. Depois ela partiu para Paris, nunca mais nos vimos, perdão, ela está aqui presente a recordar este espantoso período da vida artística de que ninguém fala”.

          Pediram-me os herdeiros deste querido amigo que os apoiasse no desmanchar da casa, fi-lo com dor, manuseei os seus milhares de livros e outros pertences. E os seus familiares presentearam-me com esta companhia diária, uma Lourdes Castro que aqui não tem sombras, nem construções utilitárias ou simuladas nem herbários, um quadro a óleo que revisito e que me recorda, como deve ser, este benfeitor cultural, uma memória vigorosa e revigorante que me trouxe ensinamentos fecundos, o meu muito especial companheiro de leituras, alguém que me telefonava com muita frequência e que assim começava a frase: “por gentileza…”, e com esta deferência eu devia encaminhar-me para um alfarrabista da Calçada do Combro, a livraria da Imprensa Nacional, se eu podia licitar num leilão online, e muito mais.

          Leio agora a necrologia a exaltar esta admirável artista plástica das sombras, um dos nomes mais sonantes das artes plásticas do nosso século XX, e apeteceu-me tirar do anonimato e mostrar a quem tem direito que Lourdes Castro teve outras inquietações antes das sombras, nos chamados Anos de Chumbo ela foi uma formidável promessa num outro itinerário vanguardista, o abstracionismo, que começava a ganhar fluência nas artes plásticas portuguesas.

Aqui vos deixo a imagem da Lourdes Castro que me remete, digo-o com imenso orgulho, para uma indefetível amizade, que a artista alumia, em cada dia da minha vida.


Mário Beja Santos







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