sábado, 22 de abril de 2023

O politicamente correto nesta era de fanatismos e de sapiências de ocasião.

 




 

A obra intitula-se Manual do Bom Cidadão, Para Compreender e Resistir à Cultura do Cancelamento, o seu autor é Jorge Soley Climent, professor universitário e com ativismo em várias causas, Publicações D. Quixote, 2023. O título é chamativo, e o autor abre o seu ensaio dizendo que vivemos tempos em que o pasmo se torna rotina, e pronto exemplifica: “Professores com processos disciplinares por ensinar que o sexo é determinado por um par de cromossomas, contas do Twitter suspensas por referirem que a relva é verde, violadores condenados que dizem ser mulheres para os transferirem para uma prisão feminina onde violam umas quantas reclusas…” Será que enlouquecemos todos? O autor diz que não: “Estamos agora a assistir à deflagração de algo laboriosamente preparado, algo que vem de longe.” E dá-nos a sua interpretação de como se constituiu esta nossa era do politicamente correto, apresenta alguns autores que abordam as situações paradoxais de minorias ativas, refere clássicos que denunciaram o totalitarismo comunista, vem um pouco mais atrás aos pensadores da Escola de Frankfurt que geraram uma Teoria Crítica que apontava para a demolição da sociedade, cita-se o inevitável Marx, entra em cena Marcuse, que ganhou fama e algum proveito na crise de maio de 1968, não podia faltar Mao Tsé-Tung e a sua Revolução Cultural, tudo para derrubar e construir uma nova ordem e até o pensador italiano António Gramsci tem direito à palavra, com a sua previsão de que é preciso trabalhar para uma nova cultura que substitua a velha. Em nenhuma circunstância Jorge Soley explica os fundamentos deste ordenamento para se chegar a este tempo em que minorias ativas pugnam a favor da demolição do racionalismo, dos valores solidários, e procura dar-nos um quadro caleidoscópico destas movimentações onde estarão presentes a identidade de género, o racismo, a revolução trans, a perseguição àqueles que defendem o direito de pensar livremente e aceitar as regras do senso comum, tudo tem que ser inclusão, identidade de género, o politicamente correto.

Admito que Jorge Soley acredite piamente que a sua escolha de pensadores que levaram à criação da cultura do cancelamento possua evidência científica. Ora, pensar é divergir. E um filósofo francês, Gilles Lipovetsky, que publicou em 2004 O Crepúsculo do Dever – A Ética Indolor dos Novos Tempos Democráticos, Publicações D. Quixote, já levantara exatamente esta questão na sua análise: moral laica, acabou a época do dever, vivemos numa nova ética nesta sociedade do vazio, do narcisismo, da negação da existência de significados estáveis; as nossas sociedades contemporâneas movem-se numa perda de sentido das grandes instituições morais, sociais e políticas. Lipovetsky escreve mesmo: “A era da felicidade das massas celebra a individualidade livre, privilegia a comunicação e multiplica as escolhas e as opções”; e, mais adiante: “A cultura da felicidade ‘leve’ induz uma ansiedade crónica de massa, mas faz desaparecer a culpabilidade moral.”

 O filósofo trabalha a sua análise de sociedade pós-industrial e de maneira alguma remete para o esquecimento o conceito de “pós-modernidade”. Todo este universo de transformações engendra novos estilos de vida e a restruturação das nossas escalas de valores. Lê-se Jorge Soley e fica-se com a ideia de cultura do cancelamento mistura alhos com bugalhos: técnicas de manipulação, a transformação da discordância em discurso de ódio, a multiplicação dos assassinatos de caráter nas redes sociais, tempos em que o poder político tem medo de se mostrar firme, em que o Twitter ou o Facebook rejeitaram dar a palavra a Trump, à mistura com a eutanásia e o aborto, temas que são muito caros a Jorge Soley, ele é patrono da Fundação Pró-Vida da Catalunha.

Aqui e acolá o autor encontra tremendas analogias entre estes próceres da cultura do cancelamento e as práticas comunistas. Haverá, segundo ele, uma conspiração em curso para gerar um terramoto da nossa cultura, há já colégios a queimar ou destruir exemplares de livros das suas bibliotecas escolares, a iconoclastia é mesmo isso, fazer tábua rasa do passado, destruir monumentos que possam sugerir racismo, colonialismo, religião. É bem verdade que o nosso tempo também se rege por hesitações, algumas delas permanentemente incendiadas, e ele fala nas pessoas de origem hispano-americana que vivem nos EUA, questionando se devem ser tratados por hispânicos ou latinos; há uma minoria de 5% de inquiridos que concordam em ser designados por Latinx, e uma conta satírica no Twitter aproveitou para dizer que os restantes 95% sofrem de racismo interiorizado e deveriam ser classificados como brancos. Alega o autor que o problema posto pela Teoria Crítica da Raça define implicitamente qualquer bom resultado social como uma coisa própria dos brancos. É evidente que um conjunto de instituições entra neste jogo do politicamente correto, será o caso da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood que tem novas normas desde 2020, traduzem-se em critérios que os filmes devem cumprir para serem considerados elegíveis na categoria de Melhor Filme, por exemplo: pelo menos um dos atores principais ou secundários significativos deve pertencer a um grupo social ou étnico infra representado; pelo menos 30% de todos os atores em papéis secundários devem pertencer a pelo menos dois dos seguintes grupos sub-representados: mulheres, grupo racial ou étnico, LGBTQ+, pessoas com incapacidades cognitivas ou físicas ou surdas. O mínimo que se pode dizer é que este conceito normativo é idiota e anda fora da história.

Jorge Soley detém-se na revolução trans, e questiona como é que é possível desligar género da biologia, e caricatura que na ideologia de género, uma pessoa pode levantar-se sendo um aborrecido cisgénero, passar a gender queer à hora do almoço, transsexual ao lanche, andrógino ao jantar e deitar-se como cisgénero. E dá exemplos de fanatismo, caso de uma inglesa que foi exonerada do seu trabalho por exprimir a sua convicção de que, falando em termos biológicos, por muita autoperceção que se tenha, uma mulher continua a ser uma mulher embora se declare homem. O que a levou a ser acusada de transfobia e despedida do seu emprego. A autora de Harry Potter, J. K. Rowling, também anda metida em apuros, acusada de ser transfóbica.

É evidente que o somatório destes casos nos impede dizer que se anda a fazer uma tempestade num copo de água: merece a maior as ponderações o pedido que a ideologia trans faz de abrir as prisões de mulheres a qualquer prisioneiro que se declare mulher. Como igualmente merece toda a prudência o que se está a passar no desporto feminino.

Gerou-se, pois, o imperativo de ver com novos olhos estas arremetidas do politicamente correto e o seu fervor sectário, estas manifestações de mentiras merecem objeção e discussão, nenhum de nós pode ficar à margem destes conflitos e controvérsias que podem, em última instância, minar a base da coesão.

Obra a ler com muitas reticências.


Mário Beja Santos 





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