quinta-feira, 13 de julho de 2023

O cão que faz ão ão.

 







O cão que faz ão ão / É bom amigo como os que são / É bom amigo, bom companheiro / Que o diga o seu dono, assim damos a palavra a Manuel Alegre

 



A literatura começou com os poemas homéricos e há um momento de rara beleza naquele tropel de crueldades da guerra de Troia e das vicissitudes a que foi sujeito Ulisses que é o seu regresso a Ítaca e o encontro com o seu cão, seguramente muito velhinho, que o reconhece e morre. Algo de profundamente tocante terá de haver num livro que fez 20 anos e conheceu 30 edições, em que o protagonista é um cão investido de várias funções, morto mas jamais desaparecido, recordado com uma simplicidade de escrita, toda ela depurada, a elegia de um animal que entrou lá em casa e ancorou na família, daí o feliz achado de Clara Rocha no prefácio de culminar as suas observações invocando um poema de Manuel Alegre em que o cão é o reflexo ou a imagem onde os membros do clã se reveem, é a linhagem da presença-ausência, de quem não é servil, e postula a irreverência, a par da incomensurável fidelidade.

Sou do tempo em que sabíamos de cor o poema de Afonso Lopes Vieira cujas linhas iniciais usurpei para este sincero paraninfo para a edição especial de 20 anos, aos belos desenhos de Bárbara Assis Pacheco e à luminosidade com que Clara Rocha prefacia a obra. Quando pela primeira li este Cão Como Nós, recordei um serão caseiro, a minha mãe a ler os Bichos, de Miguel Torga, à minha avó enferma, esta insistia sempre em duas histórias, vá-se lá saber porquê: Nero, o cão, e Madalena, a mulher que vai parir nas fragas. Ora este cão de nome Kurika era um irreverente para o dono, finório e com ademanes de fidalguia, o luto do dono, inevitavelmente emerge dos seus dotes poéticos, o cão é sonhado, imaginado o seu reaparecimento, imagina-se que raspa as portas, quer entrar em casa, o dono grita-lhe “fica!” e tira-se uma conclusão:

“E ele ficava mesmo, nem que tivesse que o empurrar para baixo até ele se deitar, sempre contrafeito, olhando-me de esguelha, jamais convencido de que entre humanos e cães há uma diferença e que essa diferença é favorável aos primeiros. Era um cão rebelde, teimoso, de certo modo subversivo. Às vezes insuportável.

- Como nós – diriam depois os meus filhos.”

Cão vigilante, companheiro dos filhos, já se viu que arisco ao dono, a desafiá-lo, manda a verdade que se diga que não era expedito nem esforçado na caça, isto é, caçava de modo independente, o dono afaga-o em memória quando ele aparecia com um coelho ou uma perdiz na boca:

“- Cão bonito – dizia-lhe eu, fazendo-lhe festas ou apertando-lhe o nariz para ele largar a presa. Nessas alturas ele portava-se como um cão propriamente dito, dava corridas e pulos de contentamento. O que me fez chegar à conclusão de que tudo seria diferente se ele tivesse podido ser, como era por certo a sua vocação, um cão de caça.”

E o autor acaba por nos contar um pormenor íntimo, embevece-se e deixa o leitor embevecido: “Queria sempre estar connosco a sós. Ladrava ao carteiro, ao eletricista, a quem quer que não fosse da casa. Cão exclusivista. Mas também ator. Quando havia visitar mudava de tática. Com total perversidade, ele, que nunca prestava vassalagem a ninguém, escolhia uma vítima, aproximava-se devagar e encostava a cabeça a pedir-lhe festas, expressão de mágoa e súplica, como quem diz: Já que eles mas não fazem, faça-mas você. Teatro, puro teatro. Mas havia quem se deixasse levar. Uma amiga da casa chegou a dizer: “O cão anda triste, deve estar cheiro de carências. E ele enroscado na sala, a olhar de soslaio para nós, com ar de gozo.”

Aqui e acolá pintalga-se uma atmosférica poética, já no prefácio Clara Rocha recorda os traços autobiográficos na obra de Manuel Alegre e, portanto, faz todo o sentido esta confidência que parece uma página de diário: “Há momentos em que parto para não sei onde. Navegação espiritual. Ou dispersão na terra abstrata, a única que se vê quando não se vê. São as grandes caçadas dentro de mim mesmo, a busca da magia perdida, uma palavra cintilante, uma perdiz imaginária, um sopro, um ritmo, uma espécie de bafo. Como o teu. Às vezes sinto-o, outras não. Mas sei que estás aí, algures, enroscado na minha própria solidão.

Estamos agora quando me ocorre uma analogia com Platero e Eu, de Juan Ramón Jiménez, o animal envelhece, o dono adoça as expressões exultantes, parece ter carga premonitória, dá pelas ausências. Tinha paixões, houve discussões em meio familiar, o dono rotulou-o de tarado sexual, a filha corrigiu: “Está apaixonado.” Paixão ou cio, a coisa medrava, apareciam novos cães, as parecenças não mereciam discussão. Uma vez desapareceu, quem o desencantou foi até à GNR, enquanto a família soprava de pânico, voltou e parecia amuado. Os comportamentos do Kurika levantavam comentários familiares e analogias com os humanos. O poeta teve um problema de coração e ficou a crença que o cão começou a olhá-lo de outro modo, o poeta gostava e até alguém se atreveu lá em casa a dizer que o cão resmungava como o dono, a verdade é que a coisa mudou: “Dei por mim a conversar com o cão, sempre que estávamos sós. Digo bem: conversar. Se ele nunca chegava, como pretendia, à enunciação, não tenho dúvida que compreendia a humana fala.” Chegou a hora do sofrimento, o primeiro ataque, alguém de novo se atreveu a fazer comparações com o poeta, uma força da natureza, um verdadeiro resistente.

Aquele veio de vida cede, o cão está desorientado, é levado para a clínica, é a despedida, é tornado emocionante: “A minha mulher chorava e eu até um beijo dei ao cão. Respirava cada vez com maior dificuldade. Mas de certo modo estava em paz. Já não resistia. Estava a entregar-se. Eu acho que a nós, mais do que à morte.”

O cão rebelde, caprichoso, desobediente, o tal cão da família onde o poema de Manuel Alegre Cão Como Nós tateia uma linhagem comum, partiu. Inevitavelmente, um halo poético evola-se, incandescente:

“Eu gostava que o espírito dele permanecesse aqui connosco. Foi talvez por isso que escrevi este livro. Hoje sei algumas das coisas que ele sabia. Assim como depois do meu pai morrer o cão continuava a deitar-se aos pés dele, tenho a certeza de que estou a escrever com ele deitado ao meu lado esquerdo, como sempre fazia quando eu me sentava no escritório. Estou a escrever o livro e quase sinto a respiração dele. Agora que acabei, posso fazer-lhe uma festa e dizer-lhe:

- Cão bonito.”

30 edições só é possível neste país quando a palavra viva serve para iluminar o amor que podemos dedicar a um animal. E voltando a uma subtileza de Clara Rocha e a sua chamada de atenção para o título da obra tão sugestivo, o tal espírito de linhagem e aliança, modelado num retrato de família, “escrito ao rés do vivido e com grau mínimo de ocultação ficcional.”

Mais 30 edições nos próximos 20 anos, são os meus votos, meu caro Manuel Alegre.

 

Mário Beja Santos





 

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