terça-feira, 29 de agosto de 2023

Com outro coração e outra mente iremos reaprender a amar o nosso belo planeta.

 

 


 

A obra intitula-se Natureza Sagrada, Recuperar o nosso vínculo com o mundo natural, por Karen Armstrong, Temas e Debates, 2023. Trata-se de um ensaio altamente documentado sobre múltiplos olhares religiosos e de visões espirituais sobre a sacralidade da natureza de que gradualmente nos afastámos sobretudo desde o processo da industrialização. Atingimos o paradoxo de estarmos cada vez mais preocupados com o modo de reverter a alteração climática, tudo isto se processa numa atmosfera de grande indiferença sobre o poder espiritual da natureza, como ela nos dá pelo seu silencio e pelos seus sinais de vida a prova de que temos que reaprender a olhá-la com desvelo e ternura e menos como uma entidade global em que a vida humana pode deixar de existir se a temperatura subir mais.

Esta embaixadora das Nações Unidas para o projeto Aliança das Civilizações escreveu este notável trabalho em 2021, e comenta: “As temperaturas nos Estados Unidos e no sul da Europa atingiram os seus maiores níveis de sempre, conduzindo a devastadores incêndios florestais que destruíram comunidades inteiras. Ao mesmo tempo, a Alemanha e os Países-Baixos sofreram inundações sem precedentes. As alterações climáticas já não são uma alteração alarmante; tornaram-se uma temível realidade. O desastre só pode ser evitado se mudarmos a forma como vivemos. Esta crise foi causada pelo nosso modo de vida moderno, o qual, apesar das suas realizações consideráveis, está fatalmente errado. Temos de mudar não apenas o nosso estilo de zvida, mas todo o nosso sistema de crenças. Saqueámos a natureza, tratando-a como um mero recurso, porque ao longo dos últimos 500 anos cultivámos uma visão do mundo que é muito diferente da dos nossos antepassados.” E procede a uma narrativa que nem sempre é de fácil digestão, são invocados nomes e obras que falam das tais crenças do passado como de cientistas como Newton, que alteraram a nossa visão face à natureza. E recorda as religiões que nutriram a humanidade, como o confucionismo e daoismo; o hinduísmo e o budismo na Índia, o monoteísmo em Israel e o racionalismo na Grécia, criaram novos tipos de espiritualidade, todas elas tinham uma compreensão semelhante da relação da humanidade com o mundo natural.

Para se entender a mudança de paradigma, a autora invoca o papel da mitologia e do racionalismo, há que reaprender o funcionamento dos mitos, pois eles revelam uma tentativa de descrever a realidade oculta do mundo natural. E assim vamos viajando por crenças até chegarmos à perceção de que as religiões não descuravam a santidade da natureza, a autora lembra-nos o livro de Job, releva-se o papel que tinha o silêncio e como hoje vivemos completamente dependentes de conversa e estímulos intermináveis. “Desde o século XIV, construímos uma noção de sagrado completamente diferente. Racionalizando a natureza e confinando Deus aos céus, reduzimos o divino de modo tão drástico que para muitos ele se tornou ou incrível ou impercetível. Em simultâneo, nas nossas sociedades industrializadas, temos estados a destruir sistematicamente a ordem natural. Forçando o mundo natural a melhorar as nossas vidas e fracassando em ver a sua santidade essencial. Excluindo uma reverência pela natureza da nossa conceção do divino, desenvolvemos uma perceção não natural de Deus.”

E, igualmente, a autora socorre-se de mitos, da análise de sacrifícios animais para ilustrar como nas crenças antigas havia uma leitura de santidade dos objetos naturais. Socorre-se igualmente de várias crenças não só monoteístas, colocando-as a par de antigos mitos da criação, para nos dar o quadro mental de como a humanidade, no passado, procurava orientar as pessoas a sujeitar os seus desejos e o seu comportamento aos ritmos naturais da vida. Havia o elogio da gratidão pela natureza e Karen Armstrong invoca um poema escrito por S. Francisco de Assis, onde se tecem louvores à irmã lua e às estrelas que o Senhor criou no céu, ao irmão vento, à irmã água, ao irmão fogo, à nossa madre terra que nos sustenta e governa, e aproveita a autora para comentar: “Ler este poema podia tornar-se uma meditação diária, na qual deliberadamente trazemos à mente elementos do mundo natural que costumamos tomar como garantidos: o ar, do qual dependemos a cada segundo das nossas vidas; a humildade da água; ou o festivo vigor do fogo. E recorda-nos a nossa própria mortalidade que partilhamos com toda a natureza.”

Natureza Sagrada proporciona-nos uma viagem singularíssima, são mesmo citados autores britânicos com Wordsworth que não escondeu a sua nostalgia face às visões da sua infância que se alteraram profundamente na idade adulta, ou Samuel Coleridge que fazia do silêncio e de um certo grau de solidão para apreciar as maravilhas da natureza.” Se queremos parar a crise ambiental, necessitamos primeiro, como Coleridge, de procurar uma recetividade silenciosa ao mundo natural, trazendo-o as nossas vidas, a pouco e pouco, todos os dias.” Aliás, a autora irá citando poemas de Coleridge que nos ajudam a percecionar a gravidade da nossa crise ambiental “e a nossa responsabilidade pessoal por ela, mas também empenhados numa transformação da mente e coração que nos impelirá para reparar os danos. Vimos como a natureza era reverenciada pelos grandes sábios, místicos e profetas do passado. Depende agora de nós reviver esse conhecimento e compromisso e recuperar o nosso vínculo com o mundo natural”.

Esta obra foi considerada o melhor livro do ano para The New Yorker, recebeu os maiores elogios da imprensa internacional por abrir uma perspetiva espiritual, por trazer um contributo para o debate dos mais candentes problemas ambientais, trazendo compreensão de que o mundo natural é parte integrante de nós mesmos.

Pela intensidade e valor das suas mensagens, temos tudo a ganhar com este poderoso ensaio de uma das mais originais pensadoras do papel da religião no mundo moderno.


                                                                            Mário Beja Santos





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