Para
quem sorria à pergunta, lembremos Ahmad Muaddamani, morto. Ou Omar Abu Anas,
morto também. E as mais de 700 vítimas, das quais 63 crianças, do massacre de
Daraya, perpetrado no Verão de 2012 pelo regime de Damasco, com o apoio do
Hezbollah e do Irão. A 25 de Agosto desse ano, enquanto gozávamos férias, o
centro de Daraya ficou pejado de cadáveres, muitos dos quais executados sumariamente
e a sangue-frio, a tiro ou à baioneta. Dos cerca de 200 corpos descobertos
nesse dia, 80 eram civis, massacrados no interior das próprias casas ou perto da
mesquita Abu Suleiman Derane, já que então se celebrava o Eid al-Fitr, a data
que no calendário islâmico assinala o fim do Ramadão.
No
dia 27, o exército regressou para novas atrocidades. Cometidas provavelmente, à
mesma hora em que, a partir de Nova Iorque, o secretário-geral da ONU, Ban
Ki-moon, se mostrava consternado por aquele “crime terrível e brutal”, ou que a
Alta-Comissária para os Direitos Humanos falava em possíveis “crimes de guerra
e contra a humanidade”, exortando a uma “investigação imediata e completa”, que
nunca seria feita: no Conselho de Segurança, a Rússia vetou a instauração de um
processo no TPI contra Bashar al-Assad, este fugiu do país, vive hoje com a
família num apartamento de luxo em Moscovo, e o principal responsável pela
matança, Qathan Khalil, cognominado “Carniceiro de Daraya”, encontra-se em
lugar incerto. Estima-se que, entre 2011 e 2024, a guerra civil na Síria tenha provocado
mais de 600 mil mortos, sendo as forças governamentais responsáveis por 90% das
baixas civis.
Uma fotografia, uma biblioteca
Em
Outubro de 2015, a jornalista francesa Delphine Minoui, então a residir em
Istambul, descobriu no Facebook uma estranha fotografia. A imagem encontrava-se
na página de um colectivo de fotojornalistas, os “Humans for Syria”, e mostrava
dois homens junto das estantes de uma biblioteca. À primeira vista, nada de
mais, não fora o facto de essa biblioteca ficar situada em Daraya, um subúrbio
de Damasco cercado pelas tropas governamentais desde 2012. Dos 250 mil
habitantes da cidade, ainda nas mãos dos rebeldes, restavam uns 12 mil, não
mais.
Através
do Skype e do Whatsapp, Delphine conseguiu chegar à fala com o autor da
fotografia, Ahmad Muaddami, um antigo estudante de engenharia de 23 anos, que,
contra a vontade da família, decidiu permanecer na cidade e juntar-se aos
rebeldes. Em finais de 2013, Ahmad e alguns companheiros – cerca de quarenta,
todos na casa dos 20 anos –, começaram a resgatar livros dos escombros da
cidade, apanhando-os na rua ou no entulho dos prédios bombardeados. Ao fim de
uma semana, tinham conseguido salvar seis mil livros. Ao fim de um mês, quinze
mil.
Formaram
uma biblioteca num lugar secreto, com um gerador eléctrico improvisado e belas estantes
feitas por voluntários, que repararam também os livros desfeitos,
catalogando-nos pacientemente por ordem alfabética de autor, um a um. Em todos
os livros, colocaram a lápis o nome dos proprietários, caso o soubessem, para
que aqueles os recuperassem um dia, quando a tormenta passasse. Um comovente
sinal de esperança.
Debaixo
de bombas e de fogo constante, de ataques com gás sarin e napalm, a biblioteca
de Daraya sobreviveu vários anos, abrindo todos os dias, excepto às sextas, das
nove da manhã às cinco da tarde. Com cerca de vinte leitores presenciais por
dia e empréstimos domiciliários, a biblioteca espalhou milhares, milhões de
palavras entre os sitiados da cidade, servindo também de centro de debates e de
universidade clandestina. Com uma fotocopiadora resgatada do entulho, os
rebeldes produziram também um jornal de tiragem reduzida, 500 exemplares, com ensinamentos
sobre como recolher a água da chuva ou cultivar verduras nos logradouros dos
prédios. O Karkabeth, assim se chamava o periódico, tinha até crítica de
cinema, palavras cruzadas e um horóscopo humorístico, com tiradas mordazes sobre
a catástrofe em curso (“impossível trabalhar, as estradas estão todas cortadas”,
dizia uma).
A
biblioteca de Daraya foi, em suma, e nas certeiras palavras de Delphine Minoui,
uma “arma de instrução maciça”. Entre as suas obras mais requisitadas, O
Alquimista de Paulo Coelho, mas também Saint-Exupéry, O Príncipe de
Maquiavel, Os Miseráveis de Vítor Hugo. Também muito populares os livros
de autoajuda, com conselhos práticos de bem-estar e de ânimo, talvez porque, no
meio daquele caos e da fome, eles transmitissem uma reconfortante sensação de
normalidade e de que a vida continuava.
Alguns
dos voluntários, como Ahmad Muaddamani ou Omar Abu Anas, acabaram sendo mortos
pelas tropas de al-Assad, mas a biblioteca permaneceu aberta, pese ter sido
alvo, em finais de 2015, de uma bomba que destruiu dois dos seus pisos.
Em Dezembro de 2014, um dos rebeldes, Shadi, conseguiu que lhe trouxessem uma Canon 70D. Foi levada por uma mulher, de que ele nunca soube o nome, que escondeu a máquina nas vestes e percorreu de noite o caminho até Daraya, uma das estradas mais perigosas e mais mortíferas da Síria. Graças a este gesto de tremenda coragem, Shadi pôde fotografar e filmar as bombas ainda no ar, prestes a explodir, ou os seus devastadores efeitos no solo, imagens depois transmitidas para o exterior através da Internet ou das redes sociais.
Em
2016, depois de 1.352 dias debaixo de bombas, sem água potável nem
electricidade, e após umas breves tréguas, as tropas de al-Assad entraram finalmente
na cidade. A biblioteca de Daraya teria o mesmo destino de outras
livrarias-mártires: a de Sarajevo, em 1992, com perda de um milhão e meio de
livros; a de Tombuctu, em 2013, 20 mil manuscritos destruídos pelas milícias
islâmicas; a de Mosul, arrasada pelo Daesh em 2015; as mais de 700 bibliotecas
da Ucrânia devastadas pelos russos e, há pouco, todas as treze bibliotecas de
Gaza, destruídas ou seriamente danificadas.
Na
sequência de um acordo precário, os rebeldes foram evacuados em três dezenas de
autocarros rumo a Idlib, no noroeste do país. Ahmad e os seus companheiros
levaram consigo o tesouro mais precioso que tinham – livros – e, mantendo o
vício das palavras, ali montaram uma biblioteca itinerante, muito popular e sempre
muito concorrida. A seguir, partiram para lugares longínquos. Residem hoje na
Turquia e em França, por aí. Centenas de outros, mais de 700, entre os quais 63
crianças, tiveram menos sorte. Com que palavras morreram?
O mundo de ontem
Em
2017, um ano depois do fim do cerco, Delphine Minoui publicou em livro a
história extraordinária da biblioteca de Daraya. Desde que o comprei há pouco,
na livraria Palavra de Viajante (obrigado, Ana Coelho), tenho-me perguntado se um
dia também ele não será resgatado por um grupo de jovens rebeldes das ruínas e
dos escombros de uma guerra a cada hora mais iminente. Que palavras guardaremos
quando formos todos mortos?
Muitas,
decerto, pois o Zeitgeist é verboso, palavroso e, sobretudo nos últimos
tempos, a incompreensão e o medo impelem-nos a falar em excesso, talvez como
resposta à torrente de impropérios e desvergonhas que, num caudal demencial, aflui
diariamente do outro lado do Atlântico, numa estratégia de “choque e pavor” a
que inelutavelmente cedemos, pois, com as debilidades que acumulámos ao longo
de décadas (v.g., na defesa, na economia, na tecnologia), outro remédio
não temos. É espantoso observar como, em poucos dias ou semanas, as antigas
batalhas das palavras, “woke” de um lado, “fascista” do outro, pertencem agora a
um mundo de ontem, aquele em que éramos felizes e não sabíamos.
Enquanto
a Oriente impera o mais loquaz dos silêncios, com a potência ascendente à
espreita, sempre sábia, na Europa e no que resta da América os intelectuais e os
opinion-makers concorrem entre si para encontrar o melhor qualificativo
para o inqualificável, recorrendo a expressões como “autoritarismo democrático”,
“autoritarismo competitivo”, “tecno-oligarquia” ou até “neofascismo”. Mesmo conceitos
como “populismo” ou “polarização”, outrora tão em voga, parecem ter caído em
desuso, ultrapassados que foram na voragem das palavras, a cada dia mais contundentes
– e alarmantes.
Os
mais eufemísticos falam de “um presidente transacional”, apresentando Trump como
um fala-barato disposto a tudo negociar, até a mãe ou a Ucrânia, com isso
ocultando o que de mais sinistro nele existe, um ditador em potência e já em
acto. Outros, porventura mais ingénuos ou insensatos, referem-se um momento
“disruptivo”, como se tudo não passasse afinal de um sonho mau, mas passageiro,
do qual em breve todos acordaremos.
A
desfaçatez vai ao ponto de nos quererem convencer de que estamos perante uma orteguiana
“rebelião das massas”, um natural e saudável movimento contra as “elites” e as
“oligarquias”, só por acaso protagonizado por um milionário corrupto várias
vezes falido, com a cumplicidade submissa e interesseira dos homens mais ricos
do planeta, aqueles de quem mais se esperaria coragem e independência, que nos venderam ser as grandes virtudes dos “empreendedores”.
Em
todo este desconcerto, há, contudo, uma lógica e um propósito precisos,
evidentes: quanto mais acreditarmos no inverosímil, mais este se torna real e
assim tudo será permitido, até sair imune de um homicídio na 5.ª Avenida em
pleno dia, de um assalto ao Capitólio ou de 34 condenações judiciais por
fraude, uma das quais envolvendo o silêncio pago de uma actriz hard-core.
De
facto, não precisa ser verdade, basta só que acreditemos. Que acreditemos no
vice-presidente dos EUA quando este, num cúmulo de cinismo e hipocrisia, se
arvora em paladino da “liberdade de expressão” na Europa, enquanto na Casa
Branca impedem o acesso dos jornalistas que não adiram ao novel “golfo da
América”. Ou que acreditemos em Musk, que em 2016 prometeu voos tripulados para
Marte em 2022, três anos antes da data prevista, depois adiada para 2024, para 2025
e agora para… 2028. Não precisa ser verdade, basta só que acreditemos.
Por
tudo isto, e o muito mais que ainda veremos, é hoje muito grande, e muito
avassaladora, a sensação de cerco e sequestro, experienciada por cada qual no
seu íntimo, na solidão do seu eu, no interior da família, no apertado círculo
dos mais próximos. É como se estivéssemos todos na biblioteca clandestina de uma
cidade sitiada pelos bárbaros, sem outro amparo que não o das palavras e das
imagens, dos livros, dos jornais. Assim morramos com eles.
António Araújo