sábado, 22 de março de 2025

Carta de Bruxelas.





                                                                A terra sobre os olhos



O historiador da arte Bernard Berenson nasceu Bernhard Valvrojenski, em Butrimonys, na Lituânia, numa família judia; tendo-se convertido ao cristianismo, foi episcopaliano quando a família emigrou Boston em 1875, e, em seguida, católico, quando já vivia em Itália, para onde se mudou depois de ter viajado na Europa em 1887, após a licenciatura. Berenson nunca deixou de se confrontar com a questão judaica; numa entrada do diário, de 2 de Setembro de 1953, deixou uma observação esperançosa. Via no poder nacional e no valor militar nele fundado uma carta de alforria, o caminho para a igualdade.

«Não serem objecto de desprezo» é do que os judeus precisam. Certamente, nenhum outro «povo» – quero dizer um grupo cuja coesão foi mantida por hábitos, usos, costumes, tradições, rituais – nenhum outro povo que chegou até aos nossos dias com uma história ininterrupta de uns bons três mil anos serviu tão bem a humanidade. Aos cristãos e aos maometanos deu-lhes a sua religião, nunca deixou de contribuir para o pensamento e a literatura, e, nos últimos 150 anos, nenhum outro povo esteve presente de modo tão criativo e tão fecundo em todos os aspectos da actividade humana, até na militar quando lhes foi permitido.  Que a maior parte dos não judeus sinta desprezo por eles, porém, não só os torna ressentidamente infelizes e servilmente ansiosos por serem bons burgueses, acatando as regras da média em todos os países, mas leva-os também a desprezarem-se a si mesmos até ao ponto de se suicidarem, como foi o caso de Weininger. A solução pode estar num Estado plus – um plus muito grande – a glória militar, o único valor que todos nós reconhecemos como supremo. Se os judeus criassem um Estado militar poderoso, desapareceria o desprezo de que são alvo.»

É uma concepção de uma época, de duas épocas atrás. Dos tempos em que os judeus ficavam à porta da sociedade, partilhando com outros grupos marginais e marginalizados a mesma condição de inferioridade. Apesar da emancipação civil e política, o ferrete das origens não desaprecia. Berenson vê no poder, entendendo que é antes de mais o poder de responder taco a taco, de armas na mão, armas iguais às dos agressores, a possibilidade de os judeus se constituírem como um povo em pé de igualdade com os outros povos. A derrota do nacional-socialismo seria o fim da discriminação; a fundação do Estado de Israel, soberano entre soberanos, a ratificação última da igualdade. E, no entanto, o nazismo não foi o derradeiro capítulo de uma história contínua, milenar de perseguição. Foi algo de novo. E essa novidade permaneceu. Na concepção nacional-socialista, a dualidade ariano-judeu constitui uma oposição insanável, que está para lá de todo e qualquer conflito político, são dois tipos absolutos e de igual poder. Para que um viva, o outro tem de morrer. Assim, o judeu foi guindado a uma posição insigne, negativamente insigne. Se no pós-guerra, um pós-guerra que começa uma década depois do fim das hostilidades (recorde-se as dificuldades de Isaac Schneersohn  para erigir um memorial do genocídio; inaugurado apenas em 1956, foi até ao início da década de 60 o único do mundo num espaço público), o judeu não é exactamente igual, isso deve-se ainda a ter sido alvo de todo o género de exacções e violências. O apoio da União Soviética a vários países do Médio Oriente assinalou o início do divórcio da opinião pública, por via esquerdina, é certo, mas não só por aí, relativamente a Israel. Paradoxalmente, foi ao mesmo tempo o início da entronização do estatuto que o nazismo atribuíra aos judeus. Os inimigos figadais de ontem geraram ambos o mesmo fruto e, nesta coincidentia oppositorum diabólica, os judeus tornaram-se a encarnação do mal absoluto e universal no mundo. O poder, em que tantos depositaram as esperanças da igualdade, revelou-se, numa desfiguração retroactiva, o elemento que apunha o selo definitivo no novo estado de coisas. Em grande medida, o 7 de Outubro de 2023 consumou o que veio à luz com o nacional-socialismo – foi a sua vitória. Por mais que custe dizê-lo. As meias tintas que vigoraram depois de 45 (mas também a Shoah, entendida quase sempre à luz da continuidade história) ficaram para trás, caracterizam uma época – hoje vista como indecisa pelo novo sentido que um novo acontecimento lhe impôs – que acabou por não ser um crédito adiantado, antes foi o início de uma dívida cuja cobrança coube por fim ao 7 de Outubro de 2023 e às suas repercussões. Pelo poder, a igualdade almejada retirou-se do mundo, e deixou cadáveres como a maré vazia deixa destroços numa praia. Cadáveres absolutos e universais de uma nova época.

 

                                                    João Tiago Proença


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