A terra sobre os olhos
O historiador da arte Bernard Berenson nasceu Bernhard Valvrojenski, em Butrimonys, na Lituânia, numa família judia; tendo-se convertido ao cristianismo, foi episcopaliano quando a família emigrou Boston em 1875, e, em seguida, católico, quando já vivia em Itália, para onde se mudou depois de ter viajado na Europa em 1887, após a licenciatura. Berenson nunca deixou de se confrontar com a questão judaica; numa entrada do diário, de 2 de Setembro de 1953, deixou uma observação esperançosa. Via no poder nacional e no valor militar nele fundado uma carta de alforria, o caminho para a igualdade.
«Não serem objecto de desprezo» é
do que os judeus precisam. Certamente, nenhum outro «povo» – quero dizer um grupo
cuja coesão foi mantida por hábitos, usos, costumes, tradições, rituais –
nenhum outro povo que chegou até aos nossos dias com uma história ininterrupta de
uns bons três mil anos serviu tão bem a humanidade. Aos cristãos e aos
maometanos deu-lhes a sua religião, nunca deixou de contribuir para o
pensamento e a literatura, e, nos últimos 150 anos, nenhum outro povo esteve
presente de modo tão criativo e tão fecundo em todos os aspectos da actividade
humana, até na militar quando lhes foi permitido. Que a maior parte dos não judeus sinta
desprezo por eles, porém, não só os torna ressentidamente infelizes e
servilmente ansiosos por serem bons burgueses, acatando as regras da média em
todos os países, mas leva-os também a desprezarem-se a si mesmos até ao ponto
de se suicidarem, como foi o caso de Weininger. A solução pode estar num Estado
plus – um plus muito grande – a glória militar, o único valor que
todos nós reconhecemos como supremo. Se os judeus criassem um Estado militar
poderoso, desapareceria o desprezo de que são alvo.»
É uma concepção de uma época, de
duas épocas atrás. Dos tempos em que os judeus ficavam à porta da sociedade,
partilhando com outros grupos marginais e marginalizados a mesma condição de
inferioridade. Apesar da emancipação civil e política, o ferrete das origens
não desaprecia. Berenson vê no poder, entendendo que é antes de mais o poder de
responder taco a taco, de armas na mão, armas iguais às dos agressores, a
possibilidade de os judeus se constituírem como um povo em pé de igualdade com
os outros povos. A derrota do nacional-socialismo seria o fim da discriminação;
a fundação do Estado de Israel, soberano entre soberanos, a ratificação última
da igualdade. E, no entanto, o nazismo não foi o derradeiro capítulo de uma
história contínua, milenar de perseguição. Foi algo de novo. E essa novidade
permaneceu. Na concepção nacional-socialista, a dualidade ariano-judeu constitui
uma oposição insanável, que está para lá de todo e qualquer conflito político,
são dois tipos absolutos e de igual poder. Para que um viva, o outro tem de
morrer. Assim, o judeu foi guindado a uma posição insigne, negativamente
insigne. Se no pós-guerra, um pós-guerra que começa uma década depois do fim
das hostilidades (recorde-se as dificuldades de Isaac Schneersohn para erigir um memorial do genocídio; inaugurado
apenas em 1956, foi até ao início da década de 60 o único do mundo num espaço
público), o judeu não é exactamente igual, isso deve-se ainda a ter sido
alvo de todo o género de exacções e violências. O apoio da União Soviética a
vários países do Médio Oriente assinalou o início do divórcio da opinião
pública, por via esquerdina, é certo, mas não só por aí, relativamente a
Israel. Paradoxalmente, foi ao mesmo tempo o início da entronização do estatuto
que o nazismo atribuíra aos judeus. Os inimigos figadais de ontem geraram ambos
o mesmo fruto e, nesta coincidentia oppositorum diabólica, os
judeus tornaram-se a encarnação do mal absoluto e universal no mundo. O poder,
em que tantos depositaram as esperanças da igualdade, revelou-se, numa
desfiguração retroactiva, o elemento que apunha o selo definitivo no novo
estado de coisas. Em grande medida, o 7 de Outubro de 2023 consumou o que veio
à luz com o nacional-socialismo – foi a sua vitória. Por mais que custe
dizê-lo. As meias tintas que vigoraram depois de 45 (mas também a Shoah,
entendida quase sempre à luz da continuidade história) ficaram para trás,
caracterizam uma época – hoje vista como indecisa pelo novo sentido que um novo
acontecimento lhe impôs – que acabou por não ser um crédito adiantado, antes foi
o início de uma dívida cuja cobrança coube por fim ao 7 de Outubro de 2023 e às
suas repercussões. Pelo poder, a igualdade almejada retirou-se do mundo, e
deixou cadáveres como a maré vazia deixa destroços numa praia. Cadáveres
absolutos e universais de uma nova época.
João Tiago Proença
Sem comentários:
Enviar um comentário