segunda-feira, 10 de março de 2025

Deste lugar onde escrevo.

 


                                                                                                                                       1951

 


Vivo aqui há trinta anos. Do lugar onde isto escrevo, a três, quatro minutos a pé, estiveram estacionadas as tropas de Afonso Henriques antes de tomarem a cidade aos mouros. Em resultado disso, o rei mandou que se erguesse um mosteiro, em cumprimento da promessa que fizera antes da batalha, cujo desfecho vitorioso permitiu que hoje eu possa escrever isto aqui, deste lugar onde escrevo. Mais tarde, já no tempo de outros reis, aqueles que nos ocuparam durante quase uma centúria inteira, o mosteiro foi reedificado pedra sobre pedra, adquirindo as formas que ainda hoje mantém, e que podem ser observadas nas selfies que os turistas vindos nos tuk-tuk depois propalam pelo Instagram fora, com eles no primeiro plano, e o monumento em segundo. Nos trinta anos que aqui levo, neste lugar onde escrevo, vi só um pedaço do mundo, mas muito mundo aqui vi: caíram o Muro e as Torres, mostrando a fragilidade dos impérios, houve um cortejo de guerras e de outros tantos desastres, uns mais naturais do que outros, migrações, turbulências, com um Portugal de permeio, governanças sucessivas, triunfos do Glorioso. Acontecimentos de grande impacto, que a todos por certo abalaram, mas que vistos de aqui pouco interessam, não sendo sequer falados. Problemas à séria, esses sim amplamente ventilados, são os do estacionamento e o dos buracos no pavimento, foi o não haver luz na rua meses a fio, anos quiçá, pese as múltiplas diligências e insistências dos moradores mais activos e interventivos junto da junta e da câmara, com cartas para a EDP, até em formato papel. No plano das instituições, o ódio à EMEL continua por aqui em níveis muito elevados e têm grafitado regularmente o palácio que o cantor espanhol famoso comprou ao lado do mosteiro, “Free Palestine” e assim, mas agora já vai em “Morte a Israel” e “Israel = Nazi” (esta, no coreto da Graça). Fechou, e isto já há um bom par de anos, a mercearia da dona Ana e do marido, cujo nome eu nunca soube, e onde punham os preços todos à mão, com autocolantes em cada artigo, um a um, o dia inteiro naquilo. À esquina, em frente de onde querem fazer um hotel, prossegue a bom ritmo e sem falta de freguesia a funerária que fez o enterro do Cunhal e espero que faça o meu. Abriu um indiano a meio da rua, mas fechou pouco depois, suspeito que por queixas de insalubridade feitas pelo comércio do lado, Zezé Cabeleireiro, o brasileiro que me apara o cabelo e faz a barba (na tropa diziam desfazer a barba). Além dos dois filhos que têm, um dos quais chamado Enzo, o Zézé e a Joyce, que abriu um salão na rua, mais abaixo do marido, trouxeram para casa há uns meses uma pretinha de São Tomé, cuja mãe teve nove de enfiada, todos dados para adopção. No mais, a carteira continua maluca e põe gorro vermelho por alturas do Natal, saiu a padeira bêbada para dar lugar a outra que fuma à porta, o João está a dormir no coreto e já não arruma no mosteiro, ficou só o Djaló. Por vezes, quadros de miséria: os drogaditos tão escanifraditos, coitaditos, os bêbados inchados roxos, uma mãe a gritar com o companheiro ao telemóvel, com a filha de ambos a chorar ao lado. Vai de vento em popa uma loja de artesanato chamada “By Nunes” e ao virar da esquina, já em Santa Marinha, o sr. Mohammed Taj Uddin, vindo do Bangladesh com a numerosa família, abriu uma loja de artigos variados (para que não houvesse erros na grafia do nome completo, pedi ao sr. Mohammed Taj Uddin que mo apontasse num papelito, que aqui transcrevo). Ao fundo da rua, grande sucesso de público tem tido, merecidamente, o restaurante sofisticado do casal Mário e Werner, um português de gema, o outro suíço de nascimento. Deste lugar onde escrevo, mesmo por baixo de mim, também permanece exitosa a loja de azulejos da Cristina, onde o Miguel-filho agora dá cursos e workshops a miúdas estrangeiras bem giras. A oficina-loja é na antiga farmácia do sr. Pereira, que agora vende relógios na Feira, e o ateliê onde o Miguel-filho dá aulas fica onde antes era uma padaria, cuja funcionária saudosa, uma bruxa já velhota e desdentada, gritava muitos filhos da puta! (com a variante filhos da puta dum cabrão!) sempre que na rua passavam carros com estrépito ou buzinadela. Neste lugar onde escrevo, muito turista, muito dragão tatuado, muita minissaia ululante, mas nota-se menos, não sei porquê, o corrupio matinal das mulheres das limpezas dos alojamentos locais, que outrora andavam sempre ajoujadas com muitos sacos azuis do IKEA, daqueles dos bons. Mas no ano em que isto escrevo, e já vamos em Novembro, o acontecimento mais marcante e impactante foi, sem sombra de qualquer dúvida, o encerramento há muito ameaçado d’O Cantinho, café-bar com esplanada, que também fazia as vezes de centro de dia e antro de batota, que a dona Fernanda e o sr. Zé aqui tinham tomado de trespasse no dia 2 de Agosto de 1986, 38 anos certinhos. Tinham vindo ambos do Norte, ele de Monção, ela de Góis, conheceram-se no Pereira de Alfama, o do cozido afamado, a Fernanda na cozinha, primeiro só a ajudar, ele a servir às mesas. Começou em 9 de Junho de 1975, ainda sabe a data certa de cor, e aí conheceu gente muito relevante dos tempos da revolução, o Rosa Coutinho e o outro, o Almeida Santos, e o outro que agora não me lembra o nome. Aqui cresceu-lhes um filho, o filho, o Filipe, que foi carteiro primeiro e depois mudou para a Uber, e que aqui casou, divorciou, foi pai de um menino e de uma menina, Leonor como a minha mais velha, e cujo sonho maior é ter um dia um iPhone (“daqueles da maçãzinha”, complementou o avô). Em contrapartida, poucos notaram a partida da dona Teresa, que desde que enviuvou ficou uma sombra, e já estava num lar, julgo que da Santa Casa. A vizinha ao lado dela, de quem nunca soube o nome e nem sei se tem filhos e netos (se tem, nunca os vi), continua a acenar-me sempre que lhe passo à janela, umas vezes com o cão, outras não. Um país em miniatura, Portugal dos Pequenitos visto da minha janela. Fiz obras em casa, tenho duas no Erasmus, e, pese o que para aí dizem sobre as alterações no clima, a luz de Lisboa continua um espanto. Assim morramos com ela.  


Escrito no dia da morte do meu amigo Pedro Machete (1965-2024).   

                                                                                     

                                                                               António Araújo





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