Não
ficarei surpreendido se este escritor original, habitualmente bem-humorado,
sempre tematicamente surpreendente vier a ser galardoado com o Prémio Nobel da
Literatura num dos próximos anos. Mas surpresa também é o aparecimento deste
conjunto de ensaios com o título Mudar de Ideias, Quetzal Editores,
2025. É uma recolha de um conjunto de ensaios e pequenas palestras inicialmente
pensadas para uma emissão de rádio. Acontece que todo este conjunto é de uma
solidez impressionante, não lhe falta o tom confessional, a observação mais do
que arguta e o entendimento do todo feito de alguns olhares dispersos.
Mudamos,
porquê? Pelos fatores circunstanciais, por exemplo o amor, a paternidade, a
morte dos que nos são próximos, no turbilhão das emoções as nossas ideias
mudam. E, atenção, o peso da memória poderá ser determinante, até porque a
perceção da nossa memória também varia. “Concordo com a noção de que a memória,
a memória de uma única pessoa, sem corroboração e sem fundamentação através de
outras provas, é um fraco guia para o passado. Penso que estamos constantemente
a reinventar as nossas vidas, recontando-as de acordo com os nossos interesses.
Creio que a operação da memória está mais perto de um ato de imaginação do que
do da recuperação limpa de um acontecimento do nosso passado.”
Seria
totalmente descabido que um escritor como Barnes não reconhecesse que as
palavras são a maneira como se constróis a imagem no mundo exterior, real e
ficcional. Como é evidente, ele foca-se na língua inglesa, não acredita no
absolutismo linguístico. “Deixei de acreditar numa Idade de Ouro da linguagem,
numa qualquer correspondência entre palavra e coisa. Nem aceitei o mito da
decadência linguística. Acabei por crer que a linguagem era e é frequentemente
uma aproximação, que as palavras significam apenas o que em geral nós
concordamos que significam. Os gramáticos que tentam a impor a gramática a uma
língua em movimento, forçá-la a recuar até uma falsa pureza de estrutura
original, estão sempre na posição de perdedores.” E tece um comentário luminoso
sobre a língua em que ele trabalha as suas obras: “A língua inglesa é – tem
sido sempre – um animal arraçado: é em parte daí que vêm o vigor, a energia e a
maleabilidade que revela. A sua porosidade às línguas e dialetos de outros
países de língua inglesa age como uma permanente transfusão de sangue. Qualquer
escritor nascido no seio da língua inglesa tem muita sorte: não só pelos muitos
leitores potenciais que existem, mas também pelas próprias palavras com que ele
ou ela podem brincar – brincar seriamente.”
E
assim chegamos, questão delicada, às nossas mudanças políticas, e,
convenientemente, lembra-nos o mundo da sua infância. “Eu cresci naquele tipo
de família inglesa de classe média, pacata, em que a política – como a religião
e o sexo – quase nunca era mencionada. Isto não quer dizer que os meus pais não
tivessem opiniões políticas. A minha avó materna, por exemplo, era uma
metodista que se tornou socialista, depois comunista, sendo que – facto mais
original de todos, especialmente no frondoso Buckinghamshire – acabou por
apoiar os chineses em detrimento dos russos quando se deu a grande cisão
sino-soviética. Entretanto, o meu avô era decididamente conservador. Nunca
discutiam as suas posições um com o outro – há muito que tinha sido
estabelecido uma trégua.” Barnes dá as suas explicações quanto às suas mudanças
de voto, mas não esconde os vetores de um sistema político com que se sentiria
identificado, o que deve constituir propriedade pública, a mudança no
funcionamento parlamentar, o regresso à União Europeia, investimento maciço no
SNS, absoluto compromisso a favor do carbono net zero mais cedo do que os
outros países; e alonga-se: a tutela dos serviços prisionais deve voltar ao
Estado, legislação sobre a morte assistida, nos meios de comunicação todos os
colaboradores devem ser imediatamente identificáveis, completa reintrodução de
todas as artes e humanidades nos cursos escolares e universitários. O escritor
não é peco a pedir, vê-se à légua que se rege pelo Bem-comum e trata com
clareza as meditações mais pesadas.
Era
inevitável, vai falar de livros, do que leu em jovem e agora já não gosta,
porque às vezes mudamos de opinião acerca de um autor. Tece um inesperado e
admirável elogio aos romances de Georges Simenon, gostava dos livros policiais
e graças a uma amiga e grande escritora, Anita Brookner, leu os romances não
policiais, são aproximadamente duzentos, ganha-lhe paixão. Concentra a sua
atenção num outro escritor, E. M. Forster, ironiza: “Não me arrependo das
décadas que passei sem conseguir apreciar Forster. Reler seria uma coisa
entediante e complacente se resultasse invariavelmente na pura e simples
confirmação daquilo que já achávamos. E o prazer de perceber que estávamos
errados pode constituir um prazer genuíno. No entanto, como podem imaginar,
esta experiência fez-me reconsiderar alguns juízos apressados da minha
juventude.”
Todas
estas belíssimas elucubrações terminam com a idade e a apreciação do tempo.
Sabe muito bem o que é que não mudou de opinião ao longo da vida adulta, com
destaque: a primazia do amor; a primazia da arte e a convicção de que a
literatura corresponde ao melhor sistema que temos para compreender o mundo; à
certeza de que a morte leva ao esquecimento absoluto e interno, que existe uma
coisa chamada sociedade. Temos então que nos confrontar com o tempo, é de novo
espirituoso: “Essencialmente, vivemos como amadores trôpegos num universo
profissional em grande parte incompreensível. Certa vez pediram a Einstein para
explicar a relatividade de maneira até que os jornalistas a pudessem entender.
‘Uma hora sentados com uma rapariga bonita no banco de um parque passa como se
fosse um minuto’, afirmou. ‘Mas um minuto sentado num fogão a escaldar já nos
parece uma hora. A relatividade é isso.” E, mais adiante: “Uma vantagem de
sermos adultos é que o tédio atual em nada se compara ao tédio da infância e da
juventude. Quando era criança, não pensava na forma como a idade e o tempo
funcionavam para os adultos. O que ludibria a criança, e compreensivelmente, é
o facto de a vida futura parecer encontrar-se previsivelmente demarcada por uma
série de datas e idades em que as coisas devem acontecer. A criança distingue
com rigor entre ter 6 anos e meio e 6 anos e três quartos. Já o adulto adota
uma perspetiva mais a longo prazo, assinalando as coisas por décadas. Como
realista cético que sou, considero que temos precisamente a idade que a carta
de condução e o passaporte asseveram que temos.”
Creio
que esta obra literária é empolgante, sincera e corajosa, não se pode ser
leviano a tecer considerações sobre as mudanças da nossa linguagem, porque é
que se votou em partidos diferentes, como cada uma de nós relê e reavalia
alguns dos livros marcantes da nossa existência, e também a observação que faz
sobre o modo como pensamos o tempo e como ele evolui, podendo gerar sabedoria
ou um profundo ressentimento.
Imperdível,
prosa luminescente.
Mário
Beja Santos
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