quarta-feira, 2 de julho de 2025

A terna viagem por vários Tejos, não faltam avieiros, campinos, fragateiros e Nossa Senhora.

 



 

Tejo, Um cruzeiro religioso e cultural, por Ana da Cunha, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2025, desvenda-nos uma assombrosa viagem que ocorre todos os anos em maio, Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo vem em cruzeiro, percorre 325 quilómetros e o leitor vai de surpresa em surpresa percorrer comunidades ribeirinhas, um universo onde pairam os saberes e a cultura dos pescadores avieiros, tudo começa num interior raiano, ainda espanhol, a última etapa será Porte Brandão, Paço de Arcos e Oeiras, ouviremos depoimentos tocantes de familiares avieiros e nascidos dessa cultura palafítica, não faltarão belas paisagens que atestam a diversidade do Tejo, boa comezaina, danças e cantares, e, de um modo geral, Nossa Senhora é acolhida em triunfo e com carinho. Atenda-se ao que a autora nos procura elucidar: “O Cruzeiro Religioso e Cultural do Tejo tem por missão preservar a cultura dos pescadores vindos da Praia da Vieira. A viagem, que percorre 325 quilómetros pelo Tejo, surgiu em 2012, no âmbito da candidatura da cultura avieira a património nacional e da UNESCO. O cruzeiro não passa só pela cultura avieira. ‘Unir margens’ é o mote da viagem, que procura contribuir para consolidar a identidade das culturas ribeirinhas do Tejo, levando-lhes uma imagem que simboliza essa união entre povos e margens: a Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo, concebida a partir dos contributos das comunidades avieiras.”

A leitura que acompanha do princípio ao fim toda esta viagem é o romance Avieiros, de Alves Redol, para conhecer melhor esta cultura viveu na aldeia avieira da Palhota. E começa a viagem, vai-se de comboio em direção a Castelo Branco, o destino é Vila Velha de Ródão, a autora tem à sua espera João Serrano, ele é um dos voluntários que todos os anos põe de pé este cruzeiro religioso, Serrano constituiu a Confraria Ibérica do Tejo, foi aqui que se iniciou a luta pela elevação da cultura avieira a património nacional. Percorre-se a localidade, é obrigatória a visita ao Castelo de Ródão, a viagem prossegue para o Rosmaninhal, uma das freguesias de Idanha-a-Nova, infelizmente hoje localidade com pouca gente, dos 437 habitantes que restam, 248 têm mais de 65 anos. Faz-se a visita à imagem de Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo, coroada de flores e segurando um terço na mão.

Na manhã seguinte, a imagem embarca na grande viagem, o destino é Alcántara e Santiago de Alcántara, no Parque Natural del Tajo Internacional, imagem descarregada para uma pequena embarcação, ouvem-se exclamações, dizem que a Santa é muito bonita. No cais de Sever-Cedillo, que liga o município de Nisa ao município de Cedillo, a comitiva é recebida com cânticos “Miraculosa Rainha dos Céus”, não há fronteiras que separem os povos. Nova fase da viagem, cais de Alvega, uma povoação do concelho de Abrantes, a Santa vai ser recebida com grande alegria, a banda filarmónica recebe-a com tambores, tubas, saxofones e clarinetes. O próximo destino: Mouriscas, vão em bateiras, há uma despedida em que a comunidade acena com lenços brancos. Chegou a hora de falar da boa comida, o comer será acompanhado de vinho tinto, a sobremesa também obedece às tradições: a tigelada, a palha de Abrantes, o bolo lêvedo e as passas de figo fritas. Vêm a propósito falar de histórias de amor e avieiros, chega-se ao Travessão do Pego, sai-se da bateira, a imagem da Senhora é içada pela grua, na Barca do Pego assiste-se a uma missa e depois à pândega, entra em ação o rancho folclórico da casa do Pego.

No dia seguinte os excursionistas encontram-se em Rio de Moinhos, o destino é o Tramagal, há muitos testemunhos de quem aqui nasceu e viveu, saudades não faltam. Do Tramagal vai-se a Constância, a autora percorre a povoação, sente-se que está feliz, e depois a bateira encaminha-se para o Castelo de Almourol. Agora sim, entra-se em território de avieiros, é o Tejo dos mouchões e das culturas agrícolas, é o Tejo de Lezíria, começa-se pelo Porto das Mulheres, volta-se a falar de Avieiros, de Alves Redol, conta-se a história desta gente oriunda da Praia da Vieira de Leiria, os avieiros construíram barracas em estacas, no Porto das Mulheres havia aldeia avieira, já desapareceu. Temos agora uma viagem atribulada até à Azinhaga, há receção pelo rancho folclórico nesta terra de avieiros, cita-se mesmo José Saramago, que aqui nasceu: “À aldeia chamam-lhe Azinhaga, está naquele lugar por assim dizer desde os alvores da nacionalidade (já tinha foral no século décimo terceiro), mas dessa estupenda veterana nada ficou, salvo que lhe passa ao lado (imagino que desde a criação do mundo) e que, até onde alcançam as minhas poucas luzes, nunca mudou de rumo, embora das suas margens tenha saído um número infinito de vezes.”

No dia seguinte chega-se à praia fluvial do Patacão, a comitiva tem direito a um lanche, fala-se demoradamente das aldeias palafíticas fluviais e das origens da aldeia do Patacão. E a viagem prossegue até ao Vale da Figueira, para-se em Porto Carrapiteiro, nova referência a uma história de amor, desta vez entre Xico, da Barreira da Bica, e Olinda, do Patacão, pouco resta dos avieiros nestas localidades. E depois todos se encaminham para a Ribeira de Santarém, aqui houve a aldeia avieira das Caneiras. A próxima paragem será no Porto dos Cucos, uma antiga aldeia avieira na freguesia de Benfica do Ribatejo, no concelho de Almeirim, nova receção festiva. E na manhã seguinte o novo destino é Porto do Sabugueiro, na freguesia de Muge, em Salvaterra de Magos, mais lembranças históricas destes locais, segue-se Porto de Muge, Valada do Ribatejo e Escaroupim, mais bailarico, em tempos daqui se partia em fragatas, transportando mercadorias para Lisboa. O Escaroupim está hoje gentrificado, a bateira para por momentos em frente da Palhota, na freguesia da Valada, a comunidade junta-se em peso para receber a Santa.

A viagem agora encaminha-se para o concelho da Azambuja, para o Porto da Palha, são citadas mais referências à presença avieira. E depois a viagem prossegue para Vila Franca de Xira. “No dia seguinte à procissão na Azambuja, chego ao Esteiro do Nogueira, um antigo bairro avieiro em Vila Franca de Xira. Vejo os barcos a rasgarem o Tejo e a população a festejar. É uma massa de gente: as mulheres com os lenços na cabeça, os homens com os barretes e as redes de pesca, os pés descalços sobre a calçada na rua.” Estamos agora no cais de Alhandra: “A Santa segue do cais, passando pelos anzóis e pelas embarcações dos pescadores que ainda resistem nesta antiga freguesia de Vila Franca de Xira, até chegar à Rua dos Avieiros, onde a imagem fica a repousar num altar junto à associação de pescadores Rios e Marés.” Lembra-se Soeiro Pereira Gomes, o nadador Batista Pereira e o médico Sousa Martins. Parte-se depois para Póvoa de Santa Iria, daqui para o cais do Trancão (Sacavém), abandona-se o território dos avieiros e entra-se no Tejo dos fragateiros, Sarilhos Pequenos, e depois a Moita, o Barreiro e o Seixal, a Senhora terá direitos a passar por Alfama. E chega-se ao último dia do cruzeiro, vai-se de Porto Brandão até Oeiras.

Fica-se com uma vontade enorme de apanhar o comboio na Gare do Oriente e seguir para Vila Velha de Ródão, Ana da Cunha saliva todo e qualquer viajante para este cruzeiro sem rival onde se unem povos de dois países e se visitam porções tão diversificadas do Tejo e suas gentes, apetece viajar e partilhar a alegria desta espantosa cultura avieira, que continua a marcar as novas gerações.

Uma belíssima reportagem.

 

            Mário Beja Santos

 


As Brigadas Revolucionárias (BR) e o Partido Revolucionário do Proletariado (PRP) nas memórias do seu principal artífice.

 


 

Carlos Antunes, Memórias de um Revolucionário, por Isabel Lindim, Oficina do Livro, 2024, dá-nos a oportunidade de ouvir alguém que entrou na clandestinidade aos 21 anos, que militou no Partido Comunista Português, esteve muito ativo na Roménia e em Paris, lançou mão de métodos que deixaram o Estado Novo em transe, quando passou a destruir equipamento fundamental destinado à guerra colonial. Como observa a autora, o texto resultou da transcrição de duas entrevistas, que decorreram em 2011, uma, outra da realizadora Margarida Gil. É um livro de memórias, sempre escrito na primeira pessoa, sempre mantendo a oralidade de quem possuía o dom de saber contar com uma presença cenográfica única, cativando na conversação com um poder quase mágico, e daí a autora poder dizer que quase se limitou a fazer ajustes ao conteúdo da gravação.

Tudo vai começar numa infância rural, recorda a sua vida na aldeia, na Serra da Cabreira, Vieira do Minho, dá-nos o seu quadro familiar, a sua vida no Porto, o seu ingresso no Partido Comunista, o seu primeiro casamento e o trabalho partidário. “Ganhava o meu salário e tinha uma vida dupla. Controlava a organização clandestina no Minho e para isso tinha de recrutar, tinha de reunir, tinha de organizar as pessoas para estarem atentas às reivindicações dos trabalhadores, promover a unidade dos trabalhadores em cada empresa, fazer crescer as células, fazer novos recrutamentos.” E não esquece o seu amor ao teatro e a admiração que nutria por Óscar Lopes.

Discorre sobre a vida clandestina, há episódios de um humor faiscante, em Lisboa trabalha em apoio ao secretariado do partido, este num dia é preso num só golpe, foge com a mulher e os filhos, encarregam-no de fazer uma organização de fronteira, deixa-nos uma descrição admirável do que é o seu trabalho numa zona de contrabando. “Os contrabandistas têm uma ordem de solidariedade que é impenetrável. Quando montei o meu primeiro aparelho de fronteira foi ainda para o PC. Fui a primeira pessoa a passar no sítio onde o Cunhal passou a seguir. Para testar o aparelho. Depois com as Brigadas criei outro. O chefe dos contrabandistas de Montalegre é ainda hoje um homem adorado. Morreu. Era um militante extraordinário pela intuição, pela capacidade de organização.” Pensa que o mandaram para a Roménia porque ali havia necessidade de quadros e em nenhumas condições podia ser preso. “Para o Cunhal poder andar com a minha identidade em segurança. O meu nome, a minha carta de condução. Quando cheguei à Roménia, usava o pseudónimo de Sérgio Gomes. O Cunhal é que se chamava Carlos Antunes nessa altura.” A experiência romena não lhe foi feliz, segue então para Paris, não esquece a comoção que teve quando foi ver a Comédie Française.

Começam as suas andanças como clandestino pela Europa, irá visitar a União Soviética, entra num estado de desilusão ideológica, descobre que aquela vida não era o seu ideal, ficará com muito má impressão de gente que vinha do movimento estudantil português, sublinha as contradições da linha partidária. E assim chegamos à invasão da Checoslováquia, aprofunda-se o fosso ideológico, havia já a pressão na base do PC para a necessidade de fazer a ação armada.

Cunhal criou um grupo que ficará conhecido por Pró-Cubanos. “Este grupo era comandado por um indivíduo que tinha sido Comando na guerra colonial na Guiné. Segundo parece, era um fulano que matava depressa e bem e, portanto, tinha criado alguma aura de capacidade junto dos militantes, parecia que a guerrilha era uma coisa especial. Mas não era, como nós provámos à sociedade. Era uma questão de militância e de aprender. Se os outros sabem disparar, se os militares sabem disparar e sabem organizar coisas, porque é que nós não havemos de saber?”

Ocorre então a rutura com o PC, conta-nos a sua vida em Argel, tem aqui comentários e memoráveis. E regressa a Portugal, cria com a Isabel do Carmo as Brigadas Revolucionárias, descreve o debate que se instalou sobre a luta armada, refere a LUAR e a ARA, e como se chegou à definição do que deviam ser as ações armadas.

Entramos agora no mundo das bombas, descreve a primeira ação das Brigadas em 7 de novembro de 1971, na Fonte da Telha, seguir-se-ão ações de sabotagem, ações hilariantes, como largar um porco no Rossio vestido de Almirante Américo Tomás. Lemos as suas memórias e sente-se que ele estava feliz com a sua capacidade de disfarce. “Passei a usar uns óculos que eu dizia que era tipo empregado bancário. Uns oculozinhos assim certinhos. Passei a estar um bocadinho mais louro. Eu nunca cortei o cabelo, nunca fui ao barbeiro nem hoje vou. Eu sempre soube cortar o meu cabelo sozinho. Passei a vestir uma roupinha escura, limpa, elegante, mas que não dava nas vistas. Passei a ser um senhor qualquer igual a toda a gente.” É clandestino e falsário: “Os passaportes quem os arranjava era eu. Era autossuficiente a maquilhar passaportes, mas quando estava todo direitinho, todo bem feito como se tivesse saído do Governo Civil, eu deitava-lhe um bocado de água ou até lhe fazia chichi. Aquilo ficava um bocado esborratado, mas eu queria um pretexto para que o polícia que me encontrasse na fronteira me interrogasse porque é que o passaporte estava assim.” Ao que ele responderia que teria sido um miúdo que tinha feito chichi no passaporte.

Recorda o escritor Nuno Bragança, a aliança que fez com os católicos, Frei Bento Domingues, a Capela do Rato, o Boletim Anti-Colonial. A maneira como ele conta uma história de uma tentativa de ação no Santuário de Fátima é um verdadeiro espanto. E seguem-se as ações bombistas em objetivos militares, destroem-se camiões, sabota-se a Marconi em Sesimbra e Palmela, sabota-se nos serviços de recrutamento militar, no Quartel-General do Porto, assaltam-se bancos, isto até 19 de abril de 1974. É neste ínterim que Carlos Antunes rememora todo o processo da clandestinidade, onde e como habitava, as senhas e encontros, não deixa de mencionar a prisão após o 25 de Abril e despede-se assim:

“No Portugal daquele tempo as pessoas tinham muito medo da PIDE e estavam convencidas de que era uma organização impressionante na sua capacidade de deteção das coisas. Nalguns aspetos era. Para nós o ser capaz não era tanto a importância ou o número de ações que fôssemos capazes de fazer. Era a continuidade na ação. Portanto, não ser preso e continuar a ação era a coisa mais terrível que podíamos fazer ao inimigo e era também aquilo que mais nos podia projetar na consciência dos trabalhadores, no sentido de eles terem autoconfiança para eles se disponibilizarem a correr riscos. Não era infalível uma pessoa ser presa.

E tivemos razão.

Não corríamos riscos desnecessários, éramos contidos, fazíamos as coisas com calma. Por vezes, sobretudo os exilados, queriam que nós andássemos de pressa demais. Queriam que nós fizéssemos coisas extraordinárias e nós dizíamos: ‘Não temos condições para as fazer e não as fazemos!’. O importante era manter essa cadência, esta capacidade de resistir e dar tempo às pessoas de perceberem que alguma coisa estava a nascer.”.

Um belo testemunho sobre as implicações das Brigadas Revolucionárias no esfarelamento da ideia que o regime omnivigilante da PIDE tudo podia sufocar e impedir um país livre.

 

                                                                    Mário Beja Santos