quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Heráldica inesperada.



 


As cidades são corpos. Nascem, crescem, envelhecem, espraiam-se e encolhem, vestem-se e despem-se, unem-se e separam-se, definham, morrem. Por vezes até ressuscitam. É como se, em vez de ar, respirassem terra.
Algumas cidades conhecem histórias tão longas que o seu corpo inteiro parece feito de sedimentos. Acumulam sem cessar camada sobre camada, vestígio ao lado de vestígio, até todo o seu vulto se tornar numa imensa, complexa manta de retalhos. Cada indício ou cicatriz relembra uma ocupação; mas as memórias respectivas têm vida semelhante à das próprias marcas deixadas no terreno: também aquelas se entrecruzam, baralham e perdem, ou por vezes sobrevivem e readaptam-se de forma imprevisível. De modo que os vestígios materiais e as memórias das cidades suprem alegria aos contadores de histórias e desafio aos hermeneutas.
Nas cidades tudo se acumula. Não apenas os resíduos físicos ou memoriais, mas também os homens. Tal como as pedras se deslocam – arrancadas do local de origem para reaparecerem, arrastadas e reaproveitadas, numa nova construção – assim também os homens sucedem uns aos outros e se alternam nos sítios e nas ideias. Para os homens, a hereditariedade e a migração são os dois sucedâneos dessa eternidade aparente que apenas podem – ou crêem – contemplar na pedra. E assim de pedras, gentes e memórias, cada qual com as suas formas de perpetuidade, se constrói a cidade.
Algumas cidades, mercê da antiguidade e grandeza da sua história, apresentam-se como expoentes desse mundo de intersecções. Digo algumas cidades e penso logo numa: Roma. Claro, a Cidade. Mas penso também em Lisboa, que nesse sentido é uma outra (pequena) Roma. Depois, dentro do território de cada cidade, há igualmente parcelas mais propícias à acumulação de indícios e à sua reciclagem – e que são valorizadas como tal; e outras, modernas ou simplesmente desvalorizadas, que parecem aos olhos do observador menos pródigas em vestígios. Todas, contudo, revelam o corpo da cidade. E guardam surpresas e enigmas para o observador atento ou apenas afortunado.


Rua Senhora da Glória


Assim é o vale de Santo António, antiga extrema oriental da cidade de Lisboa, já fora da muralha fernandina, hoje contido entre a Graça, Sapadores e Santa Apolónia. Outrora retalhado por quintas e azinhagas, o vale deve o nome a uma bonita lenda, que aí faz decorrer o primeiro milagre do santo lisboeta, ainda menino e acompanhante do pai no lavor dos campos; prodígio esse que envolve revoadas de pássaros a debicar colheitas, prova de como pelo vale se deviam então estender verdejantes hortas. Nada mais revelarei da lenda, que fica para aguçar a curiosidade do leitor que a não conheça.
Nos dois últimos séculos, porém, o vale perdeu o seu aspecto bucólico. Invadido por algumas indústrias, sujeito à pressão urbanística, aproveitado para um vasto quartel de sapadores, o chão das hortas deu lugar a um emaranhado de prédios e quintais, tal como os muros das azinhagas se abateram em prol do traçado de ruas de esquadria mais ou menos direita, conforme as épocas em que se abriram e as insondáveis circunstâncias da propriedade dos terrenos. Do vale antigo parecem sobrar escassos vestígios: das antigas quintas, pouco subsiste; apenas os edifícios religiosos mereceram perpetuação, e assim perduram, agora encaixadas entre prédios, a ermida do milagre antoniano e a igreja dedicada à Senhora da Glória.
Precisamente entre o antigo quartel de sapadores, que deu nome ao bairro, e a igreja da Senhora da Glória, estende-se, sob esta mesma invocação, uma calçada íngreme, cuja toponímia logrou portanto escapar à fúria transformista que a edilidade lisboeta, ao longo dos dois últimos séculos, foi aplicando às artérias da cidade. Logo no começo da descida, abre-se um banal portão de ferro com a identificação de Vila Rodrigues: trata-se de uma das muitas ilhas de casas em que originalmente se amontoavam os operários das fábricas vizinhas.


Entrada da Vila Rodrigues

Corredor de acesso à Vila


O portão abre para uma passagem entre os prédios contíguos, apenas duas dezenas de metros, após os quais o caminho vira para a direita e se alarga em duas fiadas de casario. Habitações modestas, dispostas em dois andares ligados por escadas e balcões de ferro corridos, formando uma estrutura paralela à calçada e dela bem resguardada. Na esquina, antes de virar da passagem para a zona habitada, um bloco de caixas de correio metálicas vem provar que a antiga vila operária, longe de se ter despovoado, conserva uma alta taxa de ocupação, aliás também perceptível pela quantidade de vasos de flores e de roupa estendida em cordas.
Aninhado junto às caixas de correio, no meio de carrinhos de bebé, surge um elemento imprevisto: uma pedra de armas apeada e inserida no muro, rente ao chão. Quando a vi pela primeira vez, o acaso daquela descoberta varou-me. Desde logo, porque não é uma pedra de armas qualquer: num grande rectângulo de calcário branco, característico das construções lisboetas de prestígio, o cinzel dum artífice anónimo delineou um elmo de torneio (vulgo boca de sapo) figurado a três quartos para a dextra (é a designação heráldica da esquerda do observador), rasgado de uma escassa viseira e dotado de correias de suspensão, sobre o qual assenta um virol de panejamentos e irrompe um paquife frondoso, exuberante de voltas e cujas extremidades se desenham em folhas de acanto. O elmo e o paquife enquadram um escudo em que proliferam algumas figuras típicas do brasonário português: uma aspa carregada de besantes, uma águia, cinco vieiras, cinco estrelas emolduradas por uma bordadura. Sobre o elmo, um vazio denota a única mutilação da pedra: falta-lhe o timbre, normalmente esculpido à parte por causa da sua tridimensionalidade. No conjunto, a peça afigura-se notável pela qualidade, força e delicadeza do trabalho: mais parece obra de lapidário.
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Quando o acaso me levou a observá-la pela primeira vez, desconcertado pela descoberta e pelos enigmas que ela lançava a um heraldista, lembro-me de que fiquei algum tempo a contemplá-la. Estando eu nesses preparos, saiu um vulto de uma das casas; uma velhinha, vestida com um robe de turco cor-de-rosa e chinelos felpudos, vinha passear o cão, um daqueles rafeiros de patas e pêlo curto que parecem formar raça própria dos bairros antigos de Lisboa. Se eu estava intrigado com a pedra, a velhinha não o estava menos comigo. Só que, no caso dela, havia sobretudo desconfiança ou talvez mesmo irritação perante a minha curiosidade. De modo que, tendo-a cumprimentado a ela e fotografado a pedra, pouco mais demorei por ali. Ao sair, senti nas costas o olhar suspeitoso que acompanhava meus passos.
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De regresso a casa e à proximidade das obras de referência, tentei decifrar o enigma da pedra. Logo percebi que se tratava das armas das linhagens de Araújo, Azevedo e Sequeira (ou Velho). O facto de a pedra em questão se apresentar como um rectângulo quase quadrado levou-me a pensar que o artífice tivesse partido de uma iluminura constante numa carta de brasão de armas (documento pelo qual o rei de Portugal, por via do oficial heráldico mais elevado da sua cúria, chamado rei de armas Portugal, conferia ou reconhecia o uso de armas aos requerentes, como prova da nobreza destes). Se assim fosse, contudo, a pedra deveria incluir no primeiro quartel um sinal a que se chamava "diferença", uma pequena figura solta colocada no canto superior da dextra ou no meio da parte superior daquele quartel, destinada a indicar de que ramo genealógico provinham as armas ao requerente. No caso da pedra analisada, esses espaços estavam infelizmente delidos, o que tornava mais difícil encontrar a correspondência das armas com um indivíduo concreto. Tampouco seria fácil atribuir-lhe datação inequívoca: apenas por via de comparação estilística, tudo na pedra – a força e simultânea delicadeza do lançamento do paquife, o subtil e eficaz jogo de proporções entre escudo e elementos exteriores, a estilização rigorosa mas não seca das figuras – fazia lembrar o século XVI, quando muito o princípio do seguinte. O timbre em falta, esse, era fácil de reconstituir: deveria ser o dos Araújos, um mouro sainte.
Apenas até aí me levaram as minhas averiguações. Decerto a pedra ornara a frontaria ou o portão de uma quinta próxima da actual vila, entretanto destruída para dar lugar à urbanização. Essa crença advinha apenas da falta de melhor explicação para tão insólita aparição: por que outro motivo haveria a pedra de ter ido parar ali, se não fosse simplesmente por se ter deixado ficar? Tanto mais que o transporte daquele pedregulho haveria de ser tarefa custosa… Faltava, para ir mais longe, tentar encontrar outros dados sobre as quintas outrora existentes no vale e sobre as famílias que aí se haviam estabelecido. Coisas para as quais não tinha eu tempo. Nem talvez vontade. Ficava com a convicção de que a pedra lembrava decerto grandeza pretéritas, porém tão longínquas que o rastro se lhes perdera sem grande esperança de voltar a ser encontrado. No quadro da vila operária, a pedra vinha assim trazer uma nota insólita, de aparente incongruência. Um elo com um passado remoto, proclamado de forma indubitável pela permanência daquele vestígio.


A pedra é da Vila



Mas um mistério aguça sempre a nossa imaginação, fica a trabalhar em surdina como um insecto roendo a trave por dentro. E ao longo de meses, lá me lembrava da pedra da vila operária e tentava a talho de foice compulsar outras fontes, no desejo de perceber quem se escondia por trás daquele enigma heráldico. Em vão: a pedra guardava seu sigilo. Até que um dia, fez-se luz. Relembrei a aparição da velhinha com o cão. Voltei a sentir o peso do seu olhar, em que eu identificara desconfiança mas que, na verdade, continha também um misto de orgulho e posse perante aquele monumento. E só então compreendi, por fim, o segredo da pedra. Ou melhor, a irrelevância dele. Pois a pedra deixara de identificar os seus longínquos comanditários. Passara a ser dos moradores da vila.


 
Miguel Metelo de Seixas

2 comentários:

  1. Uma crónica notável a descrever uma pedra-de-armas igualmente notável. Quem terá sido o armigerado? Ainda existirá a Carta de Brasão de Armas em que foi concedida?

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