quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Algo vai mal.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Acordei e como de costume liguei a RTP 1 para ouvir as notícias.
Nunca tinha sentido a necessidade de publicitar a indignação. Faço-o desta vez porque o assunto não me dizendo, directamente, respeito toca-me de muito perto. E explico-me para que não haja dúvida sobre o que me move: se precisar de um conserto na canalização, ligo para um canalizador que antes de realizar qualquer operação técnica assegura-se que a deslocação e o tempo despendidos lhe serão pagos (ainda que me garanta que o orçamento da reparação será gratuito). Mas, se me convidarem para realizar uma conferência, como historiadora, ninguém paga coisa nenhuma, nem passa pela cabeça de ninguém perguntar se houve despesas e disponibilizar-se para o pagamento das mesmas, nem que fosse simbólico. Os exemplos podiam multiplicar-se.
Este tratamento que eu julgava estranho parece estar afinal a vulgarizar-se.
Uma das reportagens transmitidas esta manhã (26-02-2014) no dito programa noticioso exaltava os recursos engenhosos da Cornucópia na sua última produção teatral: em aflição, perante os cortes orçamentais (e recorde-se, esta companhia gozava de um subsídio anual bem generoso para uma estrutura fixa diminuta) a solução adoptada foi a da contratação de amadores sem vencimento. Em troco recebem, muito contentes, os benefícios da oportunidade, do saber e da experiência do director Luís Miguel Cintra. E porventura a esperança de alguém, talvez em Hollywood ou em Carnaxide, os descobrir! Muito engenhoso.
Não está em causa o muito que Luís Miguel Cintra tem para ensinar, nem a qualidade dos espectáculos levados à cena por esta companhia teatral (sobretudo dos textos escolhidos).
A perplexidade reside no elogio feito pela RTP, ecoando o director Luís Miguel Cintra, de se produzir um espectáculo em que os «actores» não são pagos. Pois! Luís Miguel Cintra não contrata profissionais que não pode pagar, mas é de elogiar porque contrata amadores que, coitados, se sentem recompensados por trabalhar sem vencimento? O director da Cornucópia não tem imaginação para conceber um espectáculo que ponha verdadeiramente a nu as deficiências dos apoios culturais? (Pondo o actor a contracenar com cadeiras, com a sua própria voz gravada, com fantasmas no vazio?) Resignamo-nos a viver num país em que o trabalho exercido profissionalmente – de uma companhia subsidiada por todos nós e com bilhetes cobrados ao público – não é pago?
Eu sei. No final do ano há relatórios para entregar com demonstrações de produtividade; o subsídio depende desses relatórios. Mas demonstrar realizações à custa do trabalho não pago e com desprezo por todos os profissionais do ofício que lutam com o desemprego, a insegurança e as más condições de trabalho?  
E a RTP subscreve, acrítica e elogiosamente, o feito?
Algo vai mal neste reino de Portugal.
 
Rita Garnel

 

27 comentários:

  1. Mais uma palhaçada...mais um dia...

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  2. Julgo que esta situação é transitória, mas reflecte, tal como noutras áreas públicas como a saúde, uma reacção a todos os abusos cometidos até aqui, em que os contribuintes foram pagando todos os absurdos ditos culturais que qualquer auto-assumido agente da cultura nos decidisse impingir. Claro que paga agora o justo pelo pecador, mas julgo e desejo que com o tempo, também a cultura será sujeita entrará num regime de mercado, como está correcto que seja.

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    1. Segundo essa lógica... acha que a educação e a saúde também devem entrar num regime de mercado, correcto?

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    2. A educação sim, mas não no pseudo-regime que temos em que os senhores ex-poderpolítico criam redes de ensino privado financiado pelos contribuintes a concorrerem de forma abusiva com o ensino público próximo. Mas se um cidadão quiser usar única e exclusivamente o seu dinheiro para abrir um colégio ao lado de uma escola pública, acho muito bem.

      Quanto à saúde, já não sou tão adepto da mercantilização pura e dura. É um bem demasiado precioso para experimentarmos com ele. Sinto-me muito bem na condição de contribuinte, sabendo que qualquer cidadão, independentemente da sua condição economico-financeira é atendido num qualquer centro de saúde ou hospital pelo nosso actual sistema de saúde, que de acordo com o contacto que vou tendo com ele, acho de qualidade excelente, desde que vão sendo cortados a eito todos os casos de vigarice nele pendurados e que são notícia pelo menos uma vez por semana.

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  3. Eu acho que uma companhia como a Cornucópia tem de sobreviver exclusivamente da venda de bilhetes ao público.

    Por outro lado, qualquer empresa que tenha funcionários a receber menos que o salário mínimo (vá lá excepto um ou outro estagiário), incorre em clara violação da lei!

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    1. Não concordo, lamento, a não ser que os bilhetes aumentem para 50€... o que faria com que não houvesse ninguém nas salas... e posso explicar se quiser, podemos falar um pouco de política, cultura e sociedade contemporãnea, ou talvez seja melhor estudar um pouco mais para tomar posições e dar opiniões mais esclarecidas...

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    2. So be it, caro António! Bilhetes a 50€, se não houver público fecha-se a porta!

      Respondendo à Isabel que comentou lá em baixo, há uma clara diferença entre o património histórico como os museus e monumentos, (esses sim a deverem ser apoiados pelo Estado) e as companhias de teatro, bailado, ópera, orquestras sinfónicas e afins... Até num Estado rico seria legítimo colocar esta dúvida; num Estado pobre como o nosso isso deveria estar fora de questão.

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    3. Caro ANTÓNIO SIMÃO,

      A questão dos bilhetes a 50€ não será apenas uma questão de opção? Nos estádios de futebol, não estando cheios, vê-se lá muita gente, que compra bilhete, além de pagar quotas de sócio, porque se não o forem, mais caro ficará o bilhete. E olhe que não devem andar longe do valor que refere.

      Ou será também um pouco de demagogia à mistura, da sua parte. Quando achar que pode argumentar, não ameace, argumente mesmo e não atire com falácias de autoridade para cima dos seus interlocutores, do tipo "ide estudar seus broncos e depois vinde falar comigo", bem ao estilo "toca e foge", de costa viradas, como sugere a sua foto, reflectindo por certo o seu estilo.

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  4. Começa tudo a ser transitório. O crime é alguém ter a ideia, pois logo serve para explorar quem trabalha.

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    1. Que eu saiba, ninguém é obrigado a trabalhar sem retorno monetário. Olhe, eu cá não o faço.

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  5. A escravatura está na moda!

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  6. Acima de tudo é uma vergonha imensa. E a desculpa de LMC para esta atitude parece-me forçada. Ou talvez perceba que fazer teatro para dez gatos pingados de nada serve.
    Grande e justa Rita.

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  7. E só mais uma achega. Esta posição da RTP é também fruto da imagem que a comunicação social, hoje completamente acrítica e inculta, faz desde que me conheço, de LMC e do seu trabalho. LMC foi sempre vendido como sendo genial, na vanguarda, o supremo. Imagem, aliás, que o próprio também soube cultivar muito bem em discursos herméticos. Perante isto, é lógico que se diga que trabalhar com o "génio" é pagamento suficiente. Sabem lá os jornalistas!!
    O problema do LMC é falta de hábito a contar os tostões.
    Com tantos seguidores do "génio", não faltará quem lhe dê uma moedinha.

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  8. O mesmo acontece há muito nos ateliers dos grandes arquitectos e nas cozinhas dos restaurantes dos grandes chefs

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  9. Aos grandes, diligentes e fervorosos adeptos do mercado, grande deus inquestionável e de caminhos justos, deixo apenas uma pergunta: Como manter à bilheteira os museus, as companhias de ópera, as companhias de bailado, os monumentos, as orquestras sinfónicas? Claro que coisa estapafúrdia, isto tudo anda viver acima das suas possibilidades.

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Cara Isabel,

      Nunca fica nada mal, insurgir-nos contra os broncos adeptos do mercado, porém, será de todo conveniente fazermos o resto das perguntas:

      De onde vêm ou devem vir todos os recursos que julgamos necessários para atirarmos para cima de tudo aquilo que achamos imprescindível, como a cultura?

      Porque será que outros países, ditos exemplares nesta matéria, como por exemplo a Noruega ou o Canadá ou alguns outros, têm superavits e nós temos deficits e calotes de há umas décadas para cá?

      Sabendo que não há recursos para tudo, onde sugere que se retirem/cortem recursos públicos para investir na cultura?

      Acha que os cidadãos de Rio de Honor ou de São Gregório têm a obrigação de ajudar a pagar com os seus impostos toda a abundante oferta cultural, de forma gratuita, para os habitantes da capital?

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    3. Car@ Ljubljana,
      Onde iremos buscar os recursos? Que escolhas difíceis ter-se-ão de fazer?
      Números de 2012:-
      1. 78,8 milhões de euros de benefícios fiscais ao Grupo Jerónimo Martins;
      2. 2.214 milhões de euros de apoio a clubes de futebol (estes apoios até estão ser investigados pela Europa);
      3. 20 milhões de euros sumidos no ar no "negócio submarinos";
      4. Vamos falar dos sectores rentistas e em regime de monopólio que crescem à sombra do Estado?
      5. Vamos falar da deslocalização de lucros e outros rendimentos em paraísos fiscais?
      6. A taxa Tobin é para quando?
      Ora bem assim do pé para a mão já lhe arranjei... Humm... deixa cá ver que a malta das artes não e boa em contas, por alto 2.000 milhões de euros pagos por mim, por si, pelos habitantes de Rio de Honor e até do Corvo.
      Bem sei que o sector cultural sempre foi apontado pelo dedo como parasitário, mas atribuir-lhe os calotes e deficit parece-me manifestamente exagerado.
      Última nota, em jeito de "fait divers" sabia que uma das perguntas feitas pelos investidores da Auto-Europa, foi por uma companhia de ópera com actividade regular. Em plena crise Islandesa este país inaugurou a nova casa da Orquestra Sinfónica na sua capital Reiquiavique (link aquihttp://www.artsjournal.com/mt4/mt-search.cgi?IncludeBlogs=32,33,21,63,7,26,17,1,18,30,16,44,25,28,57,40,61,14,20,59,49,24,10,31,35,11,48,22,46,13,23,29,6,50,39,36,3,9,51,12,58,15,47,8,38,52,4,60,34,56,37,45,19,43,62,5,54&tag=gustavo%20dudamel&limit=20&IncludeBlogs=31) , convidando para dirigir este concerto um dos grandes exemplos da importância da cultura Gustavo Dudamel. A isto chama-se política a arte de fazer escolhas.
      Espero que tenha contribuído para o difícil dilema que colocou.

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  10. Cara Rita,

    Hesitei em escrever-lhe mas decidi fazê-lo pois parece-me que poderá estar mal informada sobre este espectáculo.

    O elenco da peça é, efectivamente, constituído por não profissionais. No entanto, posso dizer-lhe que o Luis Miguel Cintra "precisava" apenas de 12 actores para fazer a peça. O elevado número de pessoas interessadas em participar neste projecto fez com que o próprio trabalhasse o texto de forma a dar oportunidade a mais gente. Conseguiu assim criar um elenco com 59 pessoas das mais variadas idades e formações. Parece-me que se quisesse apenas mão-de-obra gratuita não se teria dado a esse trabalho. Para fazer os tais relatórios de que fala no seu texto bastar-lhe-ia trabalhar com os ditos 12 actores, digo eu. Coordenar um grupo de 59 pessoas não é fácil, como deve calcular. E coordenar 59 pessoas não-pagas torna-se ainda mais difícil. Perceber-me-á quem já coordenou trabalho voluntário.

    Gostava ainda de lhe dizer que sou engenheira, não tenho qualquer formação nem experiência em teatro e faço parte do elenco. Sou espectadora e neste momento voluntária, sim. Entrei neste projecto pelo gosto que tenho pelo teatro e porque quis perceber como é que tudo é construído, como é concebido. Porque é uma oportunidade única de conhecer pessoas com interesses comuns aos meus.

    Tenho todo o respeito pelos profissionais do teatro mas não se pode comparar alhos com bugalhos. Esta peça é assumidamente feita por actores não profissionais. A conversa que o Luis Miguel Cintra teve com cada um de nós desde o início sempre foi muito pragmática e sincera. Os espectadores sabem também o objectivo da peça: proporcionar um momento de proximidade entre o público da Cornucópia e a companhia, exemplo disso é o final do espectáculo. Convido-a a vir assistir para tentar perceber do que falo.

    Quanto à cobrança de entradas, se fizer as contas aos dias que a peça vai estar em cena, à capacidade da sala, e ao número de convites disponíveis para os familiares do elenco concluirá, de facto, tratar-se de trabalho voluntário.

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    1. Sra Engenheira espero que quando a Sra quiser trabalhar na sua profissão para a qual estudou não encontre no seu lugar um curioso com muito geito na matéria não remunerado ok? Sendo assim desejo-lhe que alguém ocupe o seu lugar e você passe o resto da vida no desemprego como se encontram neste momento muitos atores com formação e que precisam de comer e pagar contas e já agora quando for ao hospital veja lá se também não está lá um médico ou enfermeiro nas mesmas condições ! O Sr. Miguel Cintra devia ter vergonha, pessoas como você amadores a trabalhar numa companhia profissional que recebe dinheiro do estado ainda por cima a que recebe mais no país é um insulto para quem estudou para ser ator como você estudou para ser engenheira, aliás o subsidio da Cornucópia devia ser já cortado que por lei os subsídios da SEC não contemplam grupos de Teatro com atores amadores no seu elenco. Mas como estamos num país do faz de conta infelizmente temos esta vergonha!

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    2. em lugar de geito leia-se jeito e já agora muito boa vontade de aprender LOL

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  11. Ora tocou num ponto muito importante, quando fala da cobrança de entradas. Nunca entendi, quando os cofres do estado enchiam a cornucópia de dinheiro, porque é que as peças de LMC ficavam tão pouco tempo em cena. Preguiça? Falta de Público? Medo de serem comerciais? Teatro apenas para o úmbigo?

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  12. Cara Filipa Maldonado

    Obrigada pela sua resposta/comentário.

    Como digo no texto, o assunto foi apresentado desse modo na reportagem da RTP. E não duvidando um segundo que Luís Miguel Cintra tem muito para ensinar, também não questiono o interesse que cada um dos participantes encontra no projecto - não sugeri que estivessem a participar forçados.

    Um projecto de tanto mérito, contudo, surge oportunamente num ano em que os cortes da cultura lançaram muitos actores no desemprego; não se trata de um actividade generosa levada a cabo regularmente e em paralelo com o trabalho habitual, nem se esgota numa única apresentação; parece mais solução encontrada para resolver uma insuficiência. Daí que continue a achar estranho que uma companhia subsidiada se apresente com um espectáculo profissional (i.e. com mais do que um espectáculo e a cobrar bilhetes), que integra trabalho voluntário de actores não-profissionais. Por muito interessante que seja a experiência e a generosidade dos participantes.

    E sim, no final do ano, o espectáculo integrará o relatório. Num momento de profunda crise no teatro, os 12 actores que, segundo me diz teriam sido suficientes, ficaram sem trabalho.

    E acho isso muito triste.

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  13. Também fiz parte do elenco e o pouco que tenho a dizer sobre o assunto coqueluche da temporada, a conversita que as pessoas decidiram começar a ter para sua própria massagem moral nunca poderá ser tratado acertadamente. Está-se mal em todos os ramos, os cortes e a falta de emprego é uma realidade que se estende muito para além do teatro e o facto das pessoas ficarem todas escandalizadas com uma peça feita por "amadores" numa companhia subsidiada sinceramente parece-me não ser honesto. A perpetuação do actor que não é pago não é algo iniciado nem seguramente feito em último lugar pela Cornucópia, e não será por este episódio que os 45, repito 45, alunos formados este ano pela ESTC ficarão desempregados(bem como os demais profissionais "á rasca" por este Portugal fora). O ano passado entraram 60 pessoas. Em 29 o mercado foi abaixo por excesso de oferta, ISTO EXISTE AGORA SEM DÚVIDA ALGUMA.
    Não existe no entanto justa causa para os queixumes.

    Em último lugar considero um ataque pessoal a quem nunca quis comprometer o teatro, em vez contribuiu ao longo de toda a sua vida para que se mantivesse neste País. Escrever publicamente um assunto de café é baixo.

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  14. Cara Rita Garnel,

    Compreendo o seu ponto de vista, apesar de não concordar com a sua opinião.
    A Cornucópia apesar de receber subsidio do estado fez algo que nenhuma outra companhia de teatro tem feito ultimamente, que é não só dar experiência, como dar oportunidade a amantes e alunos de teatro que precisam desta experiência para poderem ser considerados atores em Portugal.

    Maior parte dos participantes da peça "Ilusão" são alunos de teatro e querem aprender mais. Todos eles tinham a perfeita noção de que não iriam ser "descobertos" por ninguem de Hollywood ou de Carnaxide, todos eles sabiam bem no que se estavam a meter e todos eles tinham razões para aceitar esta oportunidade fabulosa de trabalhar com alguem como o Luís Miguel Sintra.

    Pode não ter sido com intenção mas o ataque que faz à cornucópia e ao Luís Miguel Sintra é lamentavel e recrimino essa atitude.

    Se calhar se os atores em Portugal não fossem tão bem pagos, talvez não fosse preciso os tais "amadores" como todos dizem aqui, fui ver 3 vezes esta peça e nessas 3 vezes vi não amadores mas sim atores, verdadeiros atores que deram tudo de si para demonstrar o quão orgulhosos estavam do seu trabalho e do seu empenho durante os ensaios.

    Com os melhores cumprimentos,
    Márcio Faustino

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  15. cara Rita Garnel a si quanto é que lhe pagam para estar aqui a sustentar estes comentarios todos. cada um faz o que quer com o seu tempo.

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