quinta-feira, 21 de maio de 2015




impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 

     # 20 - DJANGO REINHARDT

 

 
 


A figura mais chaplinesca da história do jazz, indiferente à miséria e à fortuna, sem altruísmo nem cupidez, Django Reinhardt torneou os revezes que iam quase exterminando o seu povo, bolinando contra as tempestades da vida com a atitude que nos parece desligada, mas é deveras fatalista dos zíngaros. No apogeu da fama Django Reinhardt cobrava honorários extravagantes, dos quais, o que sobrava das farras nos casinos de Monte Carlo era investido numa mesa opípara, permanentemente posta para saciar a fome eterna de tantos primos e familiares que nem lhes tinha conta, ou numa indumentária de combinações espampanantes, de fazer virar os olhares na rua, à qual era imprescindível o garrido lenço atado ao pescoço. Para não sujar os sapatos nos lodaçais do acampamento dos arredores de Paris em que viveu grande parte da sua existência, tinha a extrema vaidade de pedir à sua mulher que o levasse às cavalitas até ao boulevard.
Filho de saltimbancos franceses, Django Reinhardt nasceu acidentalmente na Bélgica. Em jovem, depois de aprender a rabiscar com dificuldade o nome, preferiu a música a outras artes gitanas menos sociáveis. Antes de adulto nunca terá dormido debaixo de telha e uma noite, tinha ele dezoito anos, ao entrar na caravana, derrubou uma vela ardente sobre a pilha de flores artificiais, feitas de celuloide, que eram o ganha-pão da sua mulher; a explosão e o incêndio que se seguiram inutilizaram-lhe o anelar e o mindinho da mão esquerda, dedos imprescindíveis ao ofício de guitarrista. Com muito custo e não menos tenacidade reaprendeu a tocar, malgrado o terrível defeito, sem dar conta que inventava uma técnica singular que viria a enriquecer o seu prodigioso talento e a glorificá-lo como o mais original e virtuoso guitarrista do jazz.
Mas a música de Django Reinhardt só se tornou jazz depois de ele saber que era isso. Foi Emile Savitry, fotógrafo e eventual pintor, que passeando uma tarde na maresia de Toulon se deixou impressionar por um músico de rua e boné estendido. Acolheu-o em sua casa e deu-lhe a ouvir os discos de Louis Armstrong. A comoção de Django foi tão grande que fez seu o fraseado de Armstrong, consumando, assim, um estilo impróprio de reproduzir por diletantes.
Depressa cresceu a popularidade do guitarrista para o que contribuiu a inseparável, mas nem sempre pacífica, parceria com o violinista Stéphane Grappelli – de uma reserva em tudo simétrica à jactância do outro. A eles se acrescentou uma secção rítmica toda feita de cordas, sob a égide do Hot Club de France. Gozavam as delícias da celebridade até serem apanhados em Londres pelo mês de Setembro de 1939. Grapelli de lá não saiu nos seis anos seguintes, mas Django regressou a Paris, mesmo a tempo de a ver conquistada.
A qualidade de artista de Django Reihnardt obviou a que provasse os horrores da Segunda Guerra Mundial. Os nazis abriram notória excepção a Paris quanto a rigores ideológicos, destinando a cidade-luz a ser o parque de diversões do Reich, onde alguma indulgência era tolerada. Durante a Ocupação os concertos de Django nos caveaux de Montmartre não sofreram solução de continuidade nem deixaram de ser muito concorridos, até por oficiais alemães. Entre eles um tenente da Luftwaffe, daqueles aristocratas germânicos que barateava Hitler, aficionado de jazz, que além de seu patrocinador escudou Reinhardt dos dissabores das SS ou da Gestapo. Depois da Libertação diz-se que um dia apareceu por Montmartre um GI americano a perguntar por ele; informaram-no que andava em digressão ao que o soldado retorquiu ter-se alistado com o fito único de poder tocar com Django – como poderia ter caído sob alçada das depurações um músico de apreço tão cosmopolita?
 
 
 
Djangology
1950 (2011)
Columbia / Legacy - 88697843492
Django Reinhardt (guitarra); Stephan Grappelli (violino); Gianni Safred (piano); Carlo pecori (contrabaixo); Aurelio de Carolis (bateria)
 
 
Ao cabo de 10 anos de separação, foi retomada em 1949 a colaboração de Django Reinhardt com Grappelli, para uma demorada digressão por Itália, em que foram secundados por músicos locais a coberto do nome do Quinteto do Hot Club de France – da tournée compilaram-se algumas gravações, dando origem ao disco “Djangology”
A guerra, que exterminara milhares de jovens e extinguira a juventude de muitos, aniquilou a jovialidade de todos. Donde “Djangology” poder ser escutado como um espelho de duas faces. Por um lado é surpreendente a subtileza e a agilidade da música de Django e Grappelli, como se não a tivesse tocado o bacilo da amargura, que justificadamente perpassa nas artes e no jazz do pós-guerra. Mas por outro, os acordes que na década de trinta dir-se-iam desinibidos e volúveis, denotam agora maturidade, expressando mais lucidez do que o enlevo pueril de outrora.
Mal sabiam eles que nunca mais se juntariam. Três anos depois um coágulo explodiu no cérebro de Django Reinhardt, ia ele no meio da rua – tinha 43 anos.
 
 
José Navarro de Andrade
 

7 comentários:

  1. E que feliz estou por já conhecer Django Reinhardt.
    Mais um texto cativante que me incitou a uma leitura célere, com verdadeiro entusiasmo e curiosidade em verificar o desfecho. Mais uma história de vida com final infeliz... Mais um artista que nos deixou uma divícia valiosa.
    Nota mental : Mas porque têm os verdadeiros artistas estranhas para paranoias ???
    " - Para não sujar os sapatos nos lodaçais do acampamento dos arredores de Paris em que viveu grande parte da sua existência, tinha a extrema vaidade de pedir à sua mulher que o levasse às cavalitas até ao boulevard." - Oh por favor!!!!

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  2. Grande texto.
    No sítio do costume, o número 38 da fabulosa edição Jazz Masters da Verve.
    Desta vez com um pequeno bónus.

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  3. Ola,

    Quem quiser saber um bocado mais pode ver esta fantastica curta metragem (25 min.) de P. Paviot com um texto de C. Marker dito por Y. Montand : https://www.youtube.com/watch?v=tIlVjRWc10c

    Se bem me lembro, o filme fala do célebre atraso de Django a um concerto em Carnegie Hall (?) que devia ser para ele uma verdadeira consagração e que foi anulado porque ele se meteu nos copos e... esqueceu-se de ir !!!

    Com esta anedota, é impossivel não lembrar um filme do Woody Allen, que infelizmente não é dos mais conhecidos, com Sean Penn, cujo titulo é "Sweet and Lowdown" (1999). Trata-se, não apenas de um dos melhores filmes do Woddy Allen (na minha imodesta opinião), mas de uma belissima homenagem ao Django Reinhadt.

    Vejam um e outro, que não perdem tempo, garanto-vos.

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  4. Muito Bom.
    Obrigado pela partilha deste excelentíssimo texto acerca de um dos mais notáveis guitarristas de todos os tempos.

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  5. Apenas para subscrever e reforçar a sugestaõ para o filme do W Allem.Em portugues teve o estranho título de :Atraves da Noite.E a propósito do Carnegie ele foi a outro creio e mais valia não ter ido .Não correu bem .Tocou com DukeEllington.
    Pois é Silvia para contradizer o dito de que por traz de um grande homem esta sempre uma grande mulher ...pode ser por baixo mesmo.

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  6. Muito bem visto ferol de leça!!! Satisfaz-me pensar que esteja onde estiver a mulher..é ela a causa do sucesso eh eh eh !!!

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  7. Obrigado pelos vossos comentários. O filme referido por João Viegas é uma pérola, e se gosto do de Woddy Allen, mais aprecio a homenagem que Scorsese lhe faz em "Hugo".
    Django era mesmo chaplinesco, como bom cigano, comportava-se como um vagabundo, indiferente à desgraça e à consagração. Tinha o sonho de ir para a América, tocar com Ellington e Armstrong, mas quando tal se proporcionou não mexeu uma palha para se integrar ou agradar. Nós é que ficámos a ganhar: temos a música dele.

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