segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Regresso do General Spínola a Portugal.












         Com a causa irremediavelmente perdida – Portugal já tinha uma Constituição e já tinha um Presidente constitucional –, não havia qualquer razão de ser para qualquer tipo de conspiração, o que quer dizer que ao General Spínola e aos que com ele tínhamos lutado durante meses pelo estabelecimento de um regime democrático em Portugal nada mais nos restava fazer senão aceitar com hombridade essa realidade e proceder sem quaisquer delongas à dissolução formal do MDLP (Movimento Democrático de  Libertação de Portugal).
         Isso não quer de forma alguma dizer que todos estivessem satisfeitos com essa Constituição e com esse Presidente. Alguns havia, entre os conspiradores, que preconizavam a prossecução da luta até ao momento em que em Portugal desaparecessem os últimos vestígios da herança comunista e gonçalvista. Um dos membros do Movimento, por exemplo, advogava a expulsão de todos os comunistas do território nacional português, dizendo que, enquanto não se fizesse isso, eles seriam como que um cancro que continuaria a roer silenciosamente, mas efectivamente, as células vivas do organismo da nação (alguns militares, para mostrarem aos doutores e professores que não eram de todo alheios aos florilégios estilísticos, recorriam de longe em longe às figuras de retórica).
         Mas como o General Spínola – que de maneira nenhuma morria de amores pelos comunistas, em virtude das rasteiras que lhe tinham pregado e pelas calúnias com que o tinham mimoseado – era muito menos radical nesse aspecto, foi posta de parte, pela esmagadora maioria dos membros do MDLP, essa medida tão drástica e tão antidemocrática e impossível de realizar. E um belo dia o MDLP foi na realidade dissolvido, sem a mínima cerimónia, pompa e circunstância, como é óbvio. O General Spínola, na presença de um notário público e de dois ou três dos poucos fiéis amigos que com ele permaneceram até ao fim, e que testemunharam o acto, limitou-se a apor a sua assinatura a um simples documento e foi tudo: O MDLP foi morto e sepultado, sem quaisquer honras fúnebres.
         Uma vez dissolvido o movimento, a única preocupação do General  Spínola era regressar a Portugal, pois já não podia aguentar mais com o exílio nem com o Brasil – de que estava saturado até à medula dos ossos – nem com uma vida privada das mínimas comodidades e, sobretudo, da família e  dos amigos.
         É que, ao contrário do que acontecera por ocasião da primeira vez que apareceu no Brasil, logo após o 11 de Março, cada dia que passava eram menos os amigos que o visitavam, a que já se aludiu noutra parte. E esse número era diminuto porque todos os bons observadores se tinham dado conta de que politicamente o General estava acabado. E a verdade é que a alguns dos que da primeira vez que ele chegou ao Brasil lhe puseram casa e dinheiro à disposição não lhes interessava um Spínola sem um futuro político. Eles tinham resolvido investir nele da mesma maneira que se investe numa empresa ou na bolsa: com a esperança de vir um dia, não só a reaver todo o capital investido, mas – e sobretudo – a auferir juros chorudos e  dividendos gordos.
         Esse foi o caso, por exemplo, do ex-governador do Estado de Guanabara, Carlos Lacerda. Pensando que um dia o General  Spínola voltaria a assumir o poder em Portugal, tudo lhe facilitou quando o General Spínola chegou ao Brasil em Março de 75, logo após a tentativa de golpe de estado, que dá pelo nome de 11 de Março, e de cuja explicação o General fugia como o diabo da cruz. Mas, como político que era, e dos de tarimba (refiro-me, naturalmente, a Carlos Lacerda), quando se apercebeu, meses mais tarde, de que as possibilidades de o General Spínola vir a ter novamente qualquer poder político em Portugal eram praticamente nulas, fez os cálculos à vida – e ao dinheiro que com ele gastara – e começou a mandar-lhe contas a casa.
         E a verdade é que o General Spínola, que por esse tempo estava literalmente a viver de esmolas e da caridade de uns escassos amigos desinteressados e dotados de um espírito de altruísmo verdadeiramente exemplar, não tinha a mínima possibilidade de pagar coisa nenhuma a quem quer que fosse (não nos esqueçamos, para exemplo, que as suas contas bancárias lhe tinham sido congeladas e as pensões sonegadas).
         Felizmente, suspeito que o General Spínola tenha vindo a certificar-se desse indigno procedimento por parte do ex-governador do Estado de Guanabara, Carlos Lacerda, e de outros "credores" sem escrúpulos. A humilhação, junta a tantas outras a que se tinha – e o tinham – sujeitado, teria sido demasiado pesada. Valeu-lhe, por essa ocasião, a admirável dedicação  de um homem bom e digno: o Dr. Luís de Oliveira Dias, a viver também ele no exílio. Embora os seus recursos financeiros fossem inexistentes – também ele se defendia financeiramente como podia e Deus era servido –, todos os dias passava pelo apartamento do General Spínola para lhe tratar da correspondência e para lhe dar todo o apoio moral.
         Foi com esse procedimento que o Dr. Oliveira Dias terá impedido que as contas mandadas por Carlos Lacerda e outros mais chegassem alguma vez às mãos do General. E foi nessas condições financeiras que eu encontrei o General Spínola quando, em companhia do Manuel Fonseca, Vice-Cônsul de Portugal no Estado de Connecticut, lhe fomos propor se ele aceitava candidatar-se à presidência da República Portuguesa, como já foi dito noutra prosa.
         Como, por essa ocasião, já ele se tinha dado conta de que a única coisa que ainda podia fazer era escrever, para dar testemunho a Portugal e ao mundo de como se tinha engendrado a Revolução de Abril, e do que ele tinha feito pelo estabelecimento de um regime democrático em Portugal, primeiro como presidente, logo após o 25 de Abril, e depois no exílio, como resistente, pediu-me que lhe desse uma pequena assistência na elaboração de um livro, intitulado Ao Serviço de Portugal, como também consta de outra entrada do meu Diário.  
         Encontrando-me nessa altura no Brasil, a gozar de uma licença sabática de uns oito meses, aceitei dar esse pequeno auxílio ao General, sem qualquer outro motivo que não fosse a minha modesta contribuição para ajudar, indirectamente que fosse, a dar a conhecer aos interessados a verdade sobre Portugal, como se refere noutra parte.
         É que eu tinha vindo a acompanhar o movimento revolucionário em Portugal desde a primeira hora. Delirara com a eclosão do golpe de estado. Acreditara tão sincera e profundamente nessa revolução, que não só a celebrara tocando A Portuguesa ao piano, ao despertar com essa notícia na manhã do 25 de Abril, que a elogiara publicamente através da rádio, da televisão e da imprensa, tanto nos Estados Unidos como em Portugal, mas chegara ao ponto de levar cravos, pelo dia vinte e tal de Maio de 1974, a um parente meu que estava preso no Forte de Caxias por razões políticas (longe estava eu de imaginar que esse meu parente, para além de ter corrido o risco de vir a ser fuzilado, como mais de uma vez lhe foi dito pelos carcereiros, quando alta noite lhe abanavam as grades da cela, acabaria por estar preso quase durante vinte e oito meses, tendo percorrido quatro prisões: o Forte de Caxias, a Penitenciária de Lisboa, o Forte-Prisão de Peniche e a Prisão de Monsanto).     
         Mas voltemos ao desejo que o General Spínola tinha de regressar a Portugal e às diligências feitas nesse sentido por alguns amigos dele, entre os quais sobressaem o Capitão Ramos e o Cirurgião, modéstia à parte, pelo que a mim me toca.
         Sabendo embora que sobre ele pendia um mandato de captura, se fosse apanhado em território português, mesmo assim o General Spínola estava disposto a arriscar a prisão e a ser julgado em tribunal, se fosse necessário, tão profundo era o seu desejo de se ver de regresso a Portugal e tal era o seu desejo de dar a conhecer ao povo português, se necessário em julgamento público, a verdade dos factos sobre os misteriosos, nefários e maquiavélicos meandros do processo revolucionário.
         E foi perante esta determinação inabalável do General que o Cap. Ramos e o Cirurgião começaram a sondar os interessados, os influentes e os poderosos no cenário da política portuguesa de então, no sentido de preparar o terreno para o regresso do General Spínola à Pátria.
         A primeira pessoa a ser contactada sobre esse desejo do General  Spínola foi, naturalmente, o homem que então ocupava o posto de Presidente da República Portuguesa, por eleição constitucional: o General Ramalho Eanes. Que lhe déssemos algum tempo para estudar o assunto – propôs-nos ele, por um intermediário.
         E passados dias, um assessor militar do Presidente Ramalho Eanes veio dizer-nos estas palavras mais ou menos textuais:
         − O Sr. General Ramalho Eanes pediu-me para que lhes dissesse que o seu profundo respeito e a sua amizade pelo Sr. General Spínola não podiam ser maiores, mas que acha que, para bem do país e do Sr. General Spínola, é melhor que ele não regresse a Portugal neste futuro próximo, que o momento ainda não é oportuno nem propício.
         Dizer que ficámos desiludidos e literalmente espantados com essa resposta é desnecessário. É que uma das coisas que o General Spínola repetia com frequência era que tinha sido ele quem descobrira Eanes. Que este, que nada tivera a ver com o 25 de Abril, se vira inesperadamente convidado pelo General Spínola para ocupar os cargos-chave de director de programas e presidente do conselho de administração da RTP, o que lhe permitiu ser ele, com a patente de Tenente-Coronel, o coordenador das operações militares, por ocasião do golpe militar organizado pela facção marxista-comunista do MFA, a 25 de Novembro de 1975. Tendo sido neutralizada essa intentona, Ramalho Eanes, já com a patente de General, viu-se alcandorado ao posto de Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas de Portugal, e em 1976 eleito, por sufrágio universal, para a magistratura suprema da Nação.   
         Perante esta atitude por parte do Presidente da República Portuguesa, foi imediatamente contactado o Ministro da Defesa Nacional da altura: o Coronel  Firmino Miguel.
         Da parte do senhor Ministro da Defesa Nacional obtivemos uma resposta idêntica à do General Ramalho Eanes, acompanhada dos mesmos protestos de respeito e de amizade pelo homem que ele dizia considerar como um pai.               
            Não vale a pena falar da nossa desilusão e da nossa mágoa, à vista de tanta hipocrisia e de tanta cobardia e de tanto cinismo.
         E o Capitão Ramos e o Cirurgião resolveram dar conta de todas estas diligências a um homem que eles sabiam ser incapaz de actos de vileza semelhantes aos do General Ramalho Eanes e do Coronel Firmino Miguel. Refiro-me ao então Major Casanova Ferreira.
         Posto à margem da Revolução pela camarilha de Melo Antunes, Otelo Saraiva de Carvalho, Vítor Alves e companhia, só lhe faltava ter sido posto na prisão ou forçado ao exílio, como outros dos que participaram na preparação do 25 de Abril.
         Uma tarde de sábado ou de domingo, se bem me recordo, o Cap. Ramos e o Cirurgião foram encontrar-se com o Major Casanova Ferreira numa casa de campo dele em Colares ou em Sintra. Depois de lhe termos falado das agruras do exílio do General Spínola e do seu ardente desejo de regressar a Portugal e das diligências feitas nesse sentido e das respostas de Ramalho Eanes e de Firmino Miguel, o Major Casanova Ferreira limitou-se a fazer-nos esta pergunta retórica:
         − O meu General quer regressar a Portugal? Pois regressa a Portugal e ai de quem se atrever a tocar-lhe num cabelo que seja. Digam-me o dia e a hora em que ele chega ao aeroporto de Lisboa, que eu e uns amigos leais lá estaremos à espera dele para impedir que alguém se atreva a levantar um dedo sequer para fazer mal ao nosso General (era a segunda vez, desde o 25 de Abril, que me encontrava com um Português de lei, à Sá de Miranda; a primeira tinha sido o meu encontro com Francisco de Sá Carneiro).
         Com esta promessa do Major Casanova Ferreira, o Capitão Ramos e o Cirurgião prepararam o regresso do General Spínola a Portugal. E o General Spínola voltou e foi levado imediatamente para Caxias, para uma visita da praxe e rápida, como se previa, pois em menos de vinte e quatro horas foi autorizado a ir para sua casa, em Lisboa.
         E foi então que o Cirurgião pôde constatar mais uma vez os sintomas de uma grande praga de hipocrisia e de cobardia que grassava imparável no Portugal pós-abrilista.
         Aconteceu assim. Logo após o regresso de Caxias e após a entrada no seu apartamento, em Lisboa, era visível a vigilância de que o General era objecto por parte dos comunistas. Mal disfarçados, vigiavam as ruas que levavam à residência do General  Spínola e tomavam nota de todas as visitas.
         Cientes dessas medidas de vigilância ou receando que esse fosse o caso, ao princípio os chamados amigos do General Spínola evitavam a sua presença como se evita o contacto com um leproso.
         O Capitão Ramos – que era de uma coragem a toda a prova e que era o mais fiel dos amigos do General – e o Cirurgião – que era também amigo fiel e que nada temia e nada devia –, resolveram sujeitar-se a ser vistos e fotografados pelos espias, mas foram visitar o General a sua casa e passar com ele umas horas, pelo cair da tarde do primeiro dia que passou nela, após um longo e penoso exílio e a breve passagem pelo Forte-Prisão de Caxias.
         E nesse dia foram as únicas visitas que o General teve. No dia seguinte, muito timidamente embora, começaram a aparecer outras visitas, tais como os Generais irmãos Silvino e Silvério Marques e o General Bettencourt Rodrigues e vários oficiais da Academia Militar.
         Foi então que conheci mais uma faceta da personalidade do General  Spínola: a falácia. Para justificar o seu regresso a Portugal, a cada um que entrava dizia infalivelmente estas palavras, ainda antes de receber o abraço ou o aperto de mão de boas-vindas:
          A política é uma porca: não quero mais nada com ela. Agora vou escrever para a história e para a posteridade.
         Se eu ainda duvidasse da eterna verdade que se esconde por detrás da fábula da raposa e das uvas de Esopo, tinha ali uma prova cabal, insofismável, para a refutar, sem agravo nem apelo.
 
António Cirurgião




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