domingo, 27 de novembro de 2016

Memórias Perdidas - 3

 
 
 




Tenho a sorte – e o privilégio – de ser amigo de um dos filhos do autor, o João (que, aliás, já escreveu aqui no Malomil sobre o histórico duelo xadrezístico Spassky/Fischer). Foi através dele que soube da existência destas memórias pessoais e familiares, que Luís Borges de Assunção pretendeu deixar ao círculo restrito dos seus mais próximos, dedicando-o aos netos e oferecendo-o a uns quantos privilegiados. Da Serra para a Cidade – Exemplo Biografado de um Estudante não está, portanto, à venda no «circuito comercial», o que é pena, pois constitui um extraordinário testemunho de vida, além de um retrato de um tempo pretérito, a fotografia escrita de um movimento de êxodo rural que marcou, como poucos, o século XX português.  
O que maravilha e enternece nesta obra é a sua simplicidade, a singeleza com que o autor apresenta o seu percurso de vida, da infância à conclusão do curso de Finanças no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras. Natural de Travancinha, uma aldeia situada no concelho de Seia, Luís Borges de Assunção descreve, com alguma nostalgia, a infância aí passada, e as primícias da juventude, onde o sabor das «tibornas» compensava a falta de luz eléctrica. O seu pai, agricultor e sapateiro, viera para Lisboa aperfeiçoar a aprendizagem do ofício, recordando-se que, à época, o rei D. Carlos era um dos poucos proprietários de automóvel do país, sendo conhecido por «Arreda», dada a velocidade vertiginosa com que conduzia o veículo pelas ruas da capital. A memória nem sempre acerta, pois a alcunha era dada, isso sim, ao infante D. Afonso. Mas deixemos de lado este pormenor automobilístico, concentrando-nos no essencial: tendo regressado à sua terra natal, o pai abriu um estabelecimento comercial de venda vinhos, mercearias e miudezas. As suas qualidades de carácter levaram-no a exercer cargos de responsabilidade na aldeia de Travancinha, como regedor e presidente da junta de freguesia. Homem de fé profunda, pertencia à Irmandade do Coração de Jesus. Foi neste ambiente que Luís cresceu, uma atmosfera que hoje evocamos como bucólica e sadia, na companhia de cabras de estimação – e «Bonita» e a «Jolie» –, mas cuja agrura da terra fazia com que muitos ambicionassem de lá partir, em busca de melhor destino. O irmão Manuel viera para Lisboa estudar, tendo abandonado o curso, facto de que se arrependeria para o resto da vida. Outro irmão, Francisco, seguiu a carreira eclesiástica, sendo ordenado sacerdote em 1946. Para o governo da loja, sobrava portanto Luís, que não quis. Foi difícil vencer o destino de comerciante de aldeia. O que mais impressiona, na narrativa dos seus tempos de estudante, é a dimensão do esforço que Luís teve de fazer para concluir o curso. Enquanto isso, na terra, assistia às discussões sobre a guerra que dilacerava o coração de uma Europa atormentada. O primo Clemente mostrou a sua clarividência telúrica: «tu vais ver que esta invasão vai ser o fim da Alemanha porque os soldados alemães não conseguem aguentar os frios de Moscovo e serão derrotados. Nessa altura vai ser o fim da amizade da Rússia com os aliados e vai ser a nossa safa».
Enquanto estudava em Travancinha, Luís ia tirar dúvidas junto do meu irmão, que dava aulas no colégio de Oliveira do Hospital. Eram 15 quilómetros para lá, outros tantos para cá, feitos a pé. Por alturas do exame, dormia num quarto improvisado, num anexo da casa dos seus pais, para não incomodar quem dormia o sono dos justos. Chegado o dia da prova, pôs o despertador para as quatro da manhã e, entre atalhos nas matas, noite escura, com a sacola às costas, apanhou uma camioneta em Meruge. Chegou a Coimbra eram 9 da manhã, fez o exame, foi aprovado. Contudo, só mais tarde convenceria os pais a autorizarem-no a vir para Lisboa. Para tanto, foi decisivo um acaso: num belo dia de Maio de 1946, recebera uma carta do irmão, já instalado na capital, a comunicar-lhe que mudara de emprego, pelo que havia uma possibilidade de trabalho, ocupando o seu lugar no Instituto Sidónio Pais. Ao chegar a Lisboa, após a viagem mais longa que até então fizera na vida, Luís tinha a aguardá-lo o irmão Manuel, na estação do Rossio. «Tudo para mim constituía uma maravilha», diz o jovem de Travancinha, concelho de Seia.
Luís iniciou funções como vigilante dos alunos internos do Instituto Sidónio Pais, o monumental edifício que ainda hoje vemos em Xabregas. Nas férias grandes, os alunos iam para a terra, excepto os dos Açores e da Madeira, devido ao que hoje chamaríamos os «custos da insularidade»; também Luís regressava a Travancinha, para voltar a Lisboa no início de Outubro, como prefeito do Instituto, acompanhando os alunos ao Liceu Gil Vicente, à Escola Comercial Patrício Prazeres, à Escola Industrial Afonso Domingues. A caminho para o Gil Vicente, Luís Assunção não perdia a passagem pela Feira da Ladra, começando a conhecer as graças da Lisboa oriental, da Penha de França à Senhora do Monte. Uns vestígios da boémia possível, na Ginjinha, na Tendinha, no Café Chave d’Ouro, até no Parque Mayer. Incomodou-o sobremaneira o facto de, nos alvores da década de 1950, terem arrasado uma parte da Mouraria e do Martim Moniz, «um verdadeiro disparate e um atropelo à conservação do património do país», diz, acrescentando: «os interesses capitalistas têm segredos deveras insondáveis».
A vida foi prosseguindo, como acontece com todos. As férias em Travancinha, o regresso de comboio a Lisboa já tarde na noite. Sempre que se apeava na estação do Rossio, Luís tinha um ritual: ir comer um «Bife à Suíça», na pastelaria com o mesmo nome. Mais tarde, passou a trabalhar na Santa Casa da Misericórdia, estudando à noite. Em 1948, fez exame de admissão no Instituto Comercial de Lisboa, mas o tempo escasseava para o estudo, feito já depois das aulas, ou aos domingos, o dia de folga. Ao tempo, não havia quaisquer facilidades para estudantes-trabalhadores; quando muito, a condescendência de um chefe mais generoso. De segunda a sábado, às 7h30, Luís ia a pé da Rua da Rosa ao ISCEF, onde entretanto fora admitido; às 9h45, tomava o eléctrico ao fundo da Calçada da Estrela, parando no Largo Camões, de onde subia a pé a Rua da Misericórdia, e assinava o ponto às 10h15. Encerrado o expediente, por volta das 18h00, jantava e estudava com os colegas, no Café Chiado. Os alunos que trabalhavam já estavam cansados a essas horas, beneficiando da ajuda de um ou outro estudante ordinário, que assistira às aulas teóricas e lhes poderia dizer que matérias foram aí versadas. «Não havia nenhum incentivo para auxiliar quem desejasse estudar e sair da mediania», lamenta-se Luís, sem amarguras nem ressentimentos. As suas memórias, aliás, são um exemplo de reconciliação com a vida, sem mágoas, só saudades. Luís Borges Assunção, entretanto, casou, na Capelinha das Aparições, em Fátima, sendo o matrimónio celebrado pelo irmão do novo, o Pde. Francisco. Foram viver para uma casa de renda limitada, na Avenida de Roma, e não fizeram lua-de-mel, tanto mais que nenhum dos membros do casal tinha automóvel, um luxo inacessível a quem começara a trabalhar no Metropolitano de Lisboa.
Aos 32 anos, ao fazer a última prova do seu curso, uma oral com Adérito Sedas Nunes, Luís Borges de Assunção foi aprovado no exame. Saiu dali a correr até uma cabine telefónica, para fazer duas chamadas: uma, para o seu chefe no serviço, que o ajudara a concluir a licenciatura; outro, para a mulher, Maria de Lourdes, que obteve essa tarde dispensa ao emprego. E assim, numa tarde de Julho de 1957, um casal foi de comboio na linha do Estoril. Alegres, a celebrar. Lancharam em Paço de Arcos.
 
António Araújo  

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