Muito
sucintamente, vou referir um episódio relacionado com a minha pseudo-iniciação
na maconha. Deve ter sido por Abril de 1973. Não sei bem por quê, um dia
vejo-me convidado a ir passar o Festival da Primavera a Fall River,
Massachusetts. Sei que o principal fundador e organizador desse festival foi um
jovem americano, professor de cultura portuguesa no Bristol Community College,
localizado em Fall River, jovem a viver com extraordinário fervor - que deveria
fazer a inveja (santa inveja!) de muitos luso-americanos - tudo quanto soasse
ou soubesse a Portugal, desde a culinária à música, desde o folclore ao fado. Esse
jovem, digno de admiração e louvor, chamava-se Sandy Fraze e estava casado com
uma luso-americana, chamada Nancy Freitas, professora de Português no dito
Community College.
Recordo-me que, por ocasião desse Festival, me vi
hospedado em casa dum jovem casal luso-americano, residente em Somerset, vila
separada de Fall River por uma longa e majestosa ponte. E recordo-me também que
do grupo dos convidados para um jantar de festa em casa dos meus gentis
anfitriões faziam também parte três casais de professores luso-americanos, um
do ensino superior, como eu, e dois do ensino secundário.
Da parte da tarde de sábado, enquanto as mulheres
cozinhavam um opíparo banquete à portuguesa em casa dos anfitriões, nós os
homens fomos comprar uma vasta variedade de vinhos de mesa portugueses – uma
dúzia de vinhos diferentes, pelo menos – para fazermos uma prova de vinhos.
Durante o jantar fomos provando cerimoniosamente os diferentes vinhos, fazendo
de conta que éramos verdadeiros enólogos e connoisseurs.
Fomos provando e fomos classificando. Naturalmente, só o dono de casa sabia a
marca do vinho que íamos bebendo. E que aconteceu no fim? – Que o vinho que
colheu a maioria dos votos tinha sido o mais barato, recém-chegado ao mercado
americano, por sinal. Constou-me que dias mais tarde, quando os donos das lojas
de bebidas vieram a tomar conhecimento do resultado dessa nossa atrevida e
bizarra prova de vinhos portugueses, esse vinho de mesa, classificado em
primeiro lugar, subiu imediatamente de fama e, logicamente, subiu também de
preço.
Terminada a
ceia, o anfitrião convidou-nos para a sala de estar. Com música de fundo
apropriada, com luzes convenientemente amortecidas e a bruxulear, a imitar as
de uma discoteca, sentados todos no tapete, noto que vai passando de mão em mão
e de lábios em lábios uma coisa parecida com um cigarro. Quando chega a mim,
agradeço e passo-o para a mão da pessoa que se segue, dizendo, com toda a
naturalidade e sinceridade, que nunca na vida tinha fumado, o que era a inteira
verdade (se exceptuar os cigarros feitos de folha seca de batata, no meu tempo
de adolescente, fumados no meio dos batatais, em companhia do meu irmão mais
velho e dos meus primos e amigos). E três vezes chegou a mim o dito cujo e três
vezes passou adiante, sem que eu o levasse aos lábios. Não senhor, isso não
podia ser – foi dizendo um após outro, e uma após outra. Que para tudo havia
excepções: que tinha de experimentar. E as insistências foram tantas, que eu
acabei por ceder. E à terceira vez que eu dei a minha chupadela da praxe, ouço
dois dos meus amigos a cochichar: “the
guy is naturally high.” Na minha ingenuidade, interpelei-os e perguntei o
que queriam dizer com isso. E sorrindo primeiro e gargalhando depois, lá me
foram dizendo que estavam a fumar maconha. E que estranhavam que ela não
produzisse qualquer efeito em mim. (A
posteriori, vim a concluir que eles, em virtude da escassez da luz e do
estado eufórico em que flutuavam, não se terão dado conta de que eu, tal como
Bill Clinton em Oxford, não inalara o fumo da maconha.)
Através dos anos, para mostrar que eu não precisava de
qualquer estimulante para estar animado e para entrar numa espécie de
levitação, quando a ocasião era propícia, contei este episódio a muita gente,
inclusive a alunos meus, em plena sala de aula, quando me chamavam a atenção
para o facto de eu apresentar com frequência um ar meio eufórico, sem recurso a
qualquer estimulante. Ao fim e ao cabo, era tudo questão de genes e de
astrologia, especificamente do signo do zodíaco sob que se nascia, e de
personalidade, dizia eu a fingir de entendido em ciências em que era menos que
noviço.
E por falar de personalidade, ocorre-me referir o que me
aconteceu aí por Fevereiro de 1984, quando eu estava a convalescer dos quatro
ataques cardíacos sofridos no dia 14 de Dezembro de 1983. Os meus amigos e
vizinhos em Manchester, a Nila e o Joe Marrone (a Nila, peruana, era minha
colega na Universidade de Connecticut, e o Joe, americano, era um advogado de
alto gabarito, já reformado), movidos por um grande espírito de bondade e do mais
genuino altruismo, empenharam-se em dar-me todo o apoio possível para eu
superar mais essa dura prova da minha vida. Dado que o Joe sofria do coração há
bastante mais tempo que eu, sobretudo por iniciativa da Nila, que vivia
intensamente e apaixonadamente o problema de saúde do marido, ambos tinham uma
vasta informação sobre o tipo de tratamentos a seguir e de dieta a abservar,
matérias em que a minha perícia era inexistente. E foi assim que me vi
convidado a jantar com eles por mais de uma vez, a fim de me iniciarem nesses
tratamentos e nessas dietas. Ora sucedeu que um belo dia convidaram também para
jantar um casal amigo, cujo marido tinha feito uma operação ao coração havia relativamente
pouco tempo. Nesse jantar esse senhor disse-me que era membro da Mended Hearts Association of America
(Associação Americana de Corações Remendados), cuja sucursal local, com
sede no Hartford Hospital, em Hartford, capital do meu estado, se reunia
mensalmente. Que mesmo que eu não preenchesse os requisitos necessários para
ser membro dessa associação, só tinha a beneficiar com a participação nalgumas
dessas reuniões. Que ele, na qualidade de membro, podia convidar-me a
acompanhá-lo. E eu aceitei prazenteiramente o convite para a primeira ocasião
que surgisse e que ele julgasse apropriada.
Duas coisas interessantes aconteceram nessa reunião que
julgo conveniente registar, pelo que, em meu modesto entender, têm de peculiar,
e de hilariante, sobretudo a primeira delas. Vamos a elas, portanto. Aberta a
sessão pelo presidente da Associação, o primeiro ponto, fora da ordem do dia,
para me servir de terminologia parlamentar, consistiu em pedir aos membros que
tinham levado convidados que fizessem favor de os apresentar. Quando chegou a
minha vez, fui assim apresentado pelo meu anfitrião:
- I have the honor and the privilege to introduce to
you my friend Tony Cirurgião. He cannot become a member of our association,
since he does not have yet a mended heart, but he can learn something useful from
us. Last December 14th he had a massive heart attack and had to be revived four
times: two in the emergency room and two in the intensive care unit. (Traduzo para Português: “Tenho a honra e o privilégio
de vos apresentar o meu amigo Tony Cirurgião. Ele não pode ser membro da nossa
associação, uma vez que ainda não tem o coração remendado, mas pode aprender
algo de útil conosco. No dia 14 de Dezembro teve um ataque cardíaco maciço e
teve de ser reanimado quatro vezes: duas na sala de urgência e duas na unidade
de cuidados intensivos”.)
Ele a acabar de proferir estas palavras e eu a ser
aplaudido por todos os presentes. Não estivesse numa América em que se
sublinham com generosas e estrondosas salvas de palmas o aplaudível e o
inaplaudível e imaginar-me-ia a assistir a uma cena surrealista de um filme
fellinesco ou buñuelesco.
A segunda coisa que aconteceu nessa reunião foi a
prelecção académica de uma jovem psicóloga que acabara de especializar-se num
ramo pioneiro dessa ciência na Universidade de Michigan, em Ann Harbor: o
estudo qualitativo e quantitativo da personalidade, ou algo parecido. Não
recordo praticamente nada da palestra, mas o que sim recordo perfeitamente foi
o que a precedeu, à guisa de preâmbulo: a realização de um teste apropriado
para definir a personalidade de cada um de nós. Corrigido rapidamente, por
revestir a forma de resposta múltipla, a jovem professora veio a concluir que o
único examinando que tinha uma personalidade A + era eu. O que quer dizer que
eu ficava a compreender cientificamente que podia atingir um estado eufórico
sem o recurso a qualquer espécie de estimulante artificial.
António
Cirurgião
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