quinta-feira, 18 de junho de 2020

Réptil lançado.






Exprime-se num português impecável uma amiga inglesa a residir há anos em Portugal. Com a vivacidade de espírito e o gosto pela troca de ideias que a caracterizam, encontra sempre formas inovadoras de incitar o público das suas palestras a participar no debate. Aquela que prefiro é, de longe, a que consiste em lançar à assistência “um réptil”: Vou lançar-vos um réptil”.  

É um método extraordinariamente eficaz. O anúncio de que uma tal criatura lhes vai ser atirada para cima, somando ao efeito de surpresa o suspense de não especificar ao certo qual a variedade de réptil que vai ser projetada, tem o condão de espevitar de imediato a atenção dos mais amodorrados e de induzir quase instantaneamente um estado de alerta máximo em toda a gente. Eis como se conquista uma plateia.

Daí que nunca me vá arrepender o suficiente da imbecil correção para “repto”, que um dia me saiu em piloto automático. A minha amiga tinha razão em andar tantos anos encantada, mesmo se iludida, com essa expressão tão poderosa quanto bem achada – uma que, para mais, teria sido inventada aqui, num cantinho meio apagado do continente.

Comecei a redimir-me ao lançar, também eu, os meus répteis. O de hoje não é o que se me escapou recentemente para o Douro, extraviado de um outro desafio. Este propõe ouvir duas vezes uma mesma serenata, o que não equivale a ouvir duas vezes a mesma coisa. Longe disso, como verá quem se dispuser a aceitar o réptil do dia. O ponto, como se diz agora, é escolher uma das duas. Não é defeito, mas feitio o que as diferencia. Qual condiz mais com o vosso e levariam num passeio Douro abaixo? A A ou a B? A resposta pode ser remetida para um qualquer passatempo de fim-de-semana em casa.

Eu tenho a minha, não digo é qual. Só que é pura e limpa, que não é o mesmo que seca. A não ser que também julguem como aqueles juízes que duvidam da sinceridade de uma arguida por esta “não chorar nem nada” ao contar a sua versão da história. É que não têm boa fama as lágrimas do réptil que precisava de lhes ser lançado.

A.
Serenata em Si Bemol, K. 361 "Gran partita" - 3. Adagio, de W.A. Mozart, pela Academy of St Martin in the Fiels, dirigida por Neville Marriner (versão integrante da banda sonora do filme Amadeus, de Milos Forman).




B.
Serenata em Si Bemol, K. 361 "Gran partita" - 3. Adagio, de W.A. Mozart, pelo Ensemble Intercontemporain, dirigido por Pierre Boulez.




Manuela Ivone Cunha







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