terça-feira, 31 de maio de 2022

Daquela tão suja Guerra de Inverno às bestialidades desta Guerra de Primavera.

 



 

Não me querendo atrelar aos muitos quilómetros de escrita sobre este confronto que irá redefinir as relações euro-atlântico-asiáticas para trazer à consideração do leitor episódios daquilo que é seguramente o mais impressionante documento sobre qualquer guerra, Kaputt, escrito por um romancista e jornalista de renome, Curzio Malaparte. Malaparte percorre vários teatros de guerra entre 1941 e 1943, a Polónia, a Ucrânia, a Finlândia, andou nos guetos, viu a morte em direto, as chacinas, conversou com altos dignatários do nazi-fascismo, com Hans Frank, o governador da Polónia, Heinrich Himmler, Ante Pavelic, revisita alguns dos locais onde os finlandeses, indómitos, resistiram até ao limite aos soviéticos na chamada Guerra de Inverno. Não há analogias em História, só surpresas que nos suscitam a reflexão. Em 23 de agosto de 1939, é assinado em Moscovo o Pacto Germano-Soviético, com as suas abomináveis cláusulas secretas, a repartição da Polónia e a possibilidade de Estaline meter mão nos Estados Bálticos, abocanhar a Bessarábia à Roménia, agredir a Finlândia. Como aconteceu. Mas para surpresa de Estaline, a resistência finlandesa foi de um heroísmo sem limites. Em 1941 já não havia Guerra Russo-Finlandesa, a muito custo Estaline fez capitular a Finlândia e a apoderou-se de uma boa percentagem do seu território, queria a Carélia. Agora, os alemães avançavam sobre Leninegrado, e Malaparte foi confrontado com um espetáculo horrível no lago de Ládoga, onde muitos cavalos fugidos a um incêndio perpetrado pela guerrilha finlandesa tinham ficado gelados. E Malaparte dá-nos parágrafos brilhantes, é uma magia da escrita condizente com o asco que a guerra provoca:

“Encaminhamo-nos para o lago. A neve estava encharcada; era uma neve de primavera, que já não era branca, mas ebúrnea, com aquelas manchas verdes e amarelas que têm os marfins velhos. Em certos pontos, onde afloravam as rochas de granito rosado, apresentava-se cor de vinho. E onde as árvores eram menos bastas parecia coberta por um véu de vidro transparente, como uma placa brilhante de cristal de Orefors, sob a qual transpareciam agulhas de pinheiro, folhas, pequenos seixos de cor, bocados de erva, farrapos dessa pele branca que reveste o tronco das bétulas.

O silêncio não era já o silêncio morto do inverno, glacial e transparente como um bloco de cristal, mas um silêncio vivo, percorrido por tépidas correntes de cores, de sons, de cheiros. A tepidez do Sol nascente espalhava-se através da floresta. À medida que o Sol se elevava na linha do horizonte, arrancado à superfície argêntea do lago, um leve nevoeiro rosado, o vento trazia até nós um crepitar longínquo de metralhadora, um tiro solitário, o canto desgarrado de um cuco. No fundo desta paisagem de sons, de cores, de cheiros, numa clareira da floresta, via-se o clarão de qualquer coisa embaciada, de qualquer coisa brilhante como o tremor de um mar irreal: o Ládoga. Finalmente saímos do bosque para a margem do lago e descobrimos os cavalos.

Isto tinha-se passado no ano precedente, no mês de outubro. Depois de atravessar a floresta de Vuoksi, as guardas avançadas finlandesas chegaram à orla da selvagem, da interminável floresta de Raikkola. A floresta estava cheia de tropas russas. Quase toda a artilharia soviética do setor setentrional do istmo da Carélia, para escapar ao cerco dos soldados finlandeses, se lançara em direção ao Ládoga, na esperança de poder embarcar material e cavalos no lago para os pôr a salvo do outro lado. Mas as jangadas e os rebocadores soviéticos demoravam; e cada hora de atraso podia ser fatal. Ao terceiro dia, um imenso incêndio deflagrou na floresta de Raikkola. Fechados num círculo de fogo, os homens, os cavalos e as árvores soltavam gritos terríveis. Loucos de terror, os cavalos da artilharia soviética – eram quase mil – lançando-se na fornalha, quebraram o assalto do fogo e das metralhadoras. Muitos pereceram nas chamas, mas uma grande atingiu a margem do lago e lançou-se à água. O lago, nesse lugar, é pouco profundo: dois metros no máximo, mas a uma centena de passos da margem o fundo cai a pique. Apertados neste espaço reduzido, entre a água profunda e a muralha de fogo, os cavalos agruparam-se, mantendo a cabeça fora de água. Os que tinham ficado mais próximos da margem, acometidos pelas chamas, encavalitavam-se, subiam uns para cima dos outros, tentando abrir passagem à dentada, à patada. No auge da confusão, foram apanhados pelo gelo.

No dia seguinte, quando as primeiras patrulhas avançaram cautelosamente, pela cinza ainda quente, um medonho e maravilhoso espetáculo se lhes ofereceu. O lago era como uma imensa placa de mármore branco, na qual estavam pousadas centenas e centenas cabeças de cavalos. As cabeças pareciam cortadas rentes, à cutelo. Só elas emergiam da crosta de gelo. Todas as cabeças estavam voltadas para a margem. Nos olhos esbugalhados, via-se ainda brilhar o terror, como uma chama branca. Perto da margem, um grupo de cavalos ferozmente curvados emergia da prisão de gelo.”

Aqueles teatros de guerra por onde andou Malaparte envolveram genocídio, morticínios de judeus praticados pelas populações civis, execuções arbitrárias, iremos ser confrontados com chacinas onde não faltará o grotesco daquilo que se procurava fazer uma vida normal, em nome das regras elementares da sobrevivência. O autor nunca perde a oportunidade para, em torno de uma atmosfera de um quase horror, reduzir à diversão a apresentação de um senhor todo-poderoso, no caso vertente Heinrich Himmler, isto numa sauna finlandesa: “Nunca eu vira um ventre tão nu, tão rosado. Tão tenro, que despertava em nós o desejo de o apalpar com um garfo. Grossas gotas de suor deslizavam-lhe ao longo do peito e escorriam pela pele daquele ventre tenro para se juntarem no púbis como o orvalho no silvado. Por debaixo do púbis pendiam, definhados e moles, dois pequenos ovos num saquinho de pele amarrotada, enrugada como um saco de papel: parecia orgulhoso dos seus dois ovos como Hércules da sua virilidade”.

Malaparte irá concluir a sua obra-prima em setembro de 1943, na sua casa em Capri. O retrato que nos deixa da elite fascista italiana é de gente acanalhada, mexeriqueira, pronta a oferecer-se ao vencedor norte-americano. Chega a Nápoles no princípio de agosto de 1943, fugia da guerra, dos massacres, tinha chegado ao termo de uma longa e cruel viagem através da guerra, do sangue, da fome, das aldeias incendiadas, das cidades destruídas. Vem num comboio repleto de pessoas em fuga, de civis e soldados, todos fugiam da guerra, da fome, da pestilência, do terror, da morte, dos alemães, dos bombardeamentos, nisto é mesmo um bombardeamento que lança aquelas multidões em nova fuga. E despede-se com um parágrafo fulgente, irrepetível: “O céu era puro, o mar verde, resplandecia no horizonte como um prado imenso. O mel do Sol deslizava pela fachada das casas enfeitadas com roupa branca estendida entre uma e outra janela para secar. Ao longo da cornija dos telhados, ao longo dos rebordos dentados dos rasgões produzidos pelas bombas nas paredes, nos lábios das feridas abertas no flanco dos palácios, o céu ampliava-se como uma delicada gengiva azul. O mistral trazia o aroma, o sabor do mar, o leve ruído das ondas nos rochedos, o grito solitário indolente dos marinheiros”.

Será que algum outro Malaparte nos irá contar todas as tragédias que se estão a viver nesta abominável Guerra de Primavera, onde a única coisa que sabemos é que tudo vai mudar na ordem económica, política, financeira, e que dores tremendas demorarão a sarar?


Mário Beja Santos








2 comentários:

  1. Acredito que seja um livro muito interessante de ler
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    Saudações cordiais… semana feliz
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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  2. Grande livro, com cenas de uma inacreditavel violência contida, ou menos contida. Vale muito a pena, como tudo o que escreveu Malaparte, personalidade dubia mas muito interessante e, incontestavelmente, um dos grandes escritores do século XX.

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