Há
bem mais de 20 anos que analistas de diferentes procedências se debruçam sobre
o culto da velocidade decorrente de vivermos numa sociedade em rede, analisa-se
quais as consequências deste frenesim, como se pulverizam as formas de
equilíbrio que exigem maturação das coisas, dos lugares, da luz, dos referentes
da história, isto quando reina a urgência, a instantaneidade, o breaking
news que nos altera a vida inteira, as tais formas de equilíbrio que eram
medidas pelo tempo físico e o tempo subjetivo, tudo ultrapassado pelo curto
prazo, a necessidade de se reagir de imediato com o contacto, estar em
permanência a consultar essas vastíssimas salas de conversa onde temos que ser
opinativos, mostrar performance, interação, disponibilidade permanente – só
assim se tem direito a estar vivo.
Os
Dias do Ruído, de David Machado, Publicações Dom
Quixote, 2024, é uma metáfora sobre a comunicação contemporânea, onde predomina
a tal cultura da urgência, a plena sujeição aos riscos de viver com uma claque
na sala de conversa digital, que por vezes tem uma abrangência planetária, ou,
sofrer a ira declarada dos outros quando se adquiriu o estatuto de herói ou
heroína. Não há político que não se esforce por dar opiniões diárias no X ou no
Instagram, merecerão depois a sua transferência para as ondas televisivas ou
hertzianas, e comentários noutras salas de conversa de dimensão gigantesca,
como o Facebook. Os políticos, os homens de negócios, os astros do desporto, os
heróis efêmeros, precisam de conselheiros que os ajudem a responder com uma
frase que se pôde perpetuar nos diferentes meios de comunicação social. É um
ruído avassalador de manchetes, imagens, vídeos – dá muito trabalho estar na
crista da onda, prisioneiro do implacável quotidiano.
Laura,
penicheira de origem, repórter afamada, andou pelas zonas de grande conflito
onde ganhou créditos, evitou um atentado num café de Paris matando um
terrorista islâmico; passou a escrito a sua história e anda pelo mundo fora
promovendo o livro, considera mesmo voltar a escrever outro sobre mulheres
heroínas que ela pretende distinguir, exemplos de cidadania, de coragem, de
combate à vilania e à violência. Laura vive sempre no presente, guarda
contactos com a irmã e escassas amigas íntimas, recebe mensagens do ex-marido,
o caudal de acontecimentos onde se sujeita a provas de fogo são as sessões de
autógrafos e as questões postas pelos fãs nas redes sociais, faz vídeos que
depois circulam em onde planetária. Nisto começam a surgir mails com ameaças de
morte, mas há turbulência na sua vida privada, a mãe dá sinais de demência,
isto enquanto ela circula no planeta virtual, viajando de país em país; a
editora conversa com Laura, dá-lhe conselhos, sugere imagens, está a par das
ameaças de morte.
Entramos
de golfão na vida familiar, em Peniche, conheceremos uma amiga íntima de Laura,
Brielle, ficou mutilada num ato de terrorismo, andam todos permanentemente ao
telefone, a irmã de Laura reconciliou-se com o pai, homem tirânico e indisposto
com as filhas. Há repercussões paradoxais quanto à morte do terrorista
islâmico: “Como se ainda houvesse dúvidas de que 99% da informação no mundo é
apenas eco, dezenas de mensagens enviadas de todas as partes do planeta
informam-me de que no site de uma organização neonazi húngara se vendem
t-shirts com uma foto na qual apareço a asfixiar o ator egípcio. A legenda é
aterradora e pretensiosamente poética: ‘Vamos varrer o país uma barata de cada
vez’.” De Peniche continuam a chegar notícias alarmantes, a agente de Laura
apela com caráter de urgência que se publique um novo livro, a enteada de Laura
acompanha agora a madrasta de país em país.
Estamos
agora num espaço fixo, Peniche, Laura regressa a outro tempo mas constata que
tudo ali parou: “Tudo na casa está parado no tempo: o mapa de rachas dos
azulejos da cozinha; o fedor a esgoto quando se abre a água quente do
lava-loiça; a coleção de São Josés sobre o televisor bojudo, na sala, diante do
sofá tão coçado; o xadrez amarelo e azul da toalha de plástico sobre a mesa; a
lentidão com que as vozes viajam entre as divisões; uma melancolia de décadas
acumulada nas gavetas da cómoda do corredor; a bata da minha mãe pendurada
atrás da porta da casa de banho; o cheiro acre da pólvora; as botas enlameadas
do meu pai arrumadas na cozinha, junto ao caixote do lixo; um arpão de apanhar
polvos encostado à parede ao lado do frigorífico. Passo os dedos pelos objetos,
pela madeira dos móveis, pela tinta acrílica das portas, e dou-me conta de que
nunca saí completamente desta casa.”
O
anfiteatro planetário está em polvorosa, o que aconteceu a Laura, foi presa,
raptada, inicialmente Laura quer tomar o pulso à tão grande distância das
décadas da sua ausência, dá-se a retoma de afetos com os pais e com a amiga
Emília, o pai anda por ali a arquitetar voltar ao contrabando, o ex-marido
telefona constantemente ou manda mensagens, sucedem-se as videochamadas, mas
Laura corre o risco de morrer na sociedade em rede, crescem os prejuízos por
ela ter cancelado os eventos, a imagem pública está danificada, a enteada
apaixona-se e desapaixona-se, Laura publica nas redes algumas fotografias, a
agente sonha com um filme com um intrigante reality show, seria um
arranque estrondoso para a campanha de promoção do próximo livro. Parece que a
vida familiar ganha uma nova forma de coesão, a irmão de Laura, Azul, também se
integra na vida daquela casa, de onde se afastou há décadas. Falando com a sua
agente, Laura admite não voltar a publicar nada, a agente “Fala da morte
virtual do silencia absoluto. Pergunta-me se não tenho medo do silêncio
absoluto, mas antes a que posso responder-lhe diz-me que serei apenas um corpo
sem espírito, sem ligação à dimensão mais profunda da humanidade, uma memória
eternamente perdida.
E
as semanas passam, Laura todos os dias aparece nos seus murais para cuidar do
reino virtual. “Faço-o com delicadeza, como se tratasse de plantas. No interior
do reino, o ruído é mais polifónico e estridente do que nunca, grita-se tudo e
o seu contrário, a comunidade só funciona porque ninguém está a ouvir ninguém.
Contudo, mal saio, tudo o que resta é uma ligeira reverberação na minha pele
que embala o corpo durante uns minutos.”
Parece
que as ameaças desapareceram, Laura pensa que está próximo o dia em que deverá
partir, há compromissos adiados, debates sobre terrorismo e feminismo. Apareceu
o covid-19, o planeta está alvorotado, talvez Laura tenha vontade de voltar
para junto do ex-marido, importa escrever um novo livro. “As horas passam. Os
dias e os meses e os anos passam. O tempo torna-se amparo para tudo o que faço.
Aquilo que sou muda com as estações. E aquilo que sou é impossível de
expressar. Mas ser vista e entendida em toda essa definição: que coisa
extraordinária.”
Este
romance de David Machado está destinado aos bons fados, é uma prosa talhada ao
sabor das cavalgadas dos tempos em que vivemos, nesta sociedade que parece
funcionar sobre o único registo da reatividade e de uma enxurrada de palavras
de ordem e breaking news.
Mário
Beja Santos
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