A
literatura é pródiga em heróis feitos na guerra que no regresso passam pela
descida aos infernos e fazem a catarse como justiceiros, defensores de valores
pátrios, juízes implacáveis castigando espiões, rufias, gangues, poderão mesmo
apresentar-se como defensores de humilhados e ofendidos. Recordo, a título
meramente exemplificativo Mike Hammer, um detetive criado por Mickey Spillane,
um escritor norte-americano que teve larga audiência pela sua prosa truculenta,
ágil, anticomunista (foi colaborador no macartismo), punindo sem dó nem piedade
quer os agentes de Moscovo, criminosos avulsos, por vezes geniais, máfias de
exploração de raparigas, etc.
António
Brito é autor de uma das obras mais importantes da literatura da guerra
colonial, Olhos de Caçador, publicado em 2007, inegavelmente
autobiográfico. Em 2012, deu-nos Sagal, Um Herói Feito em África, temos
agora a infância, a juventude, uma guerra duríssima em Moçambique e Angola, a
queda num abismo, a ressurreição com o prodígio de desmontar um negócio sórdido
para matar um supermercado na Venda Nova. Acaba de sair nova edição no Clube do
Autor, é bem merecido o regresso de António Brito, segue-se a justificação do
aplauso.
Um
Sagal que é abandonado numa caixa de cartão ali para os lados do Martim Moniz,
acolhido no bordel da Tia Lola, e rapidamente Brito deixa o leitor em riste, a
narrativa parte desembalada, uma narrativa em que cada capítulo começa por mais
uma etapa de uma minimaratona, sempre com definições, palavras nuas e cruas.
Sagal começa por ser Emiliano Salgado, tem direito a batismo, manda a moral
vigente que fosse transferido para um orfanato, mais crueza naquela
aprendizagem dura, a Casa Pia impõe brutais regras de sobrevivência, andam por
ali à volta uns predadores de crianças, sai da Casa Pia e vive de expedientes,
chega a hora do serviço militar, prepara-se para ser caçador paraquedista.
Temos aqui texto clarificador:
“No
curso de paraquedismo, espremeram-me o como massa de pasteleiro, levando-o ao
limite. Esticaram o cavername e a resistência para lá do que um cristão-novo
pode suportar na tortura da Inquisição. Comparado com isto, os tratos de polé
não passam de aquecimento suave. Acabava os dias coberto de golpes e nódoas
negras, as nádegas em sangue coladas às calças por causa dos rolamentos a pé
firme. Repetia ad nauseam os mesmos gestos e movimentos até conseguir
aterrar sem partir as pernas à chegada do paraquedas ao solo. Descobri que o
cogumelo de nylon verde-azeitona com tiras e cordões era mais importante que um
seguro de vida com prémio VIP. Safar o couro defecado das nuvens pelo avião
tinha tanto de temerário como de ciência feita. E a torre de saltos a ensombrar-me
todos dias. Mais treino de subir à torre: Jááááá!”
Ei-lo
em Moçambique, surge uma figura de um mau da fita que pontuará a narrativa até
ao fim, o Educador, apresentado como obcecado pela superioridade da raça
branca, espécie de ideólogo do poder europeu, sabia muito bem o que queria do
seu Moçambique: “Quando houver independência, será como na Rodésia, os brancos
a governar. Os pretos vivem na Idade da Pedra, são incapazes de se organizar
sem a ajuda dos brancos. Vamos tomar conta do nosso destino… E do deles.” Se já
tínhamos nomes das meninas do bordel da Tia Lola, da malta da Casa Pia, não há
paraquedista sem nome, o Povoador, o Casto, o Trovador, o Mandarim, o
Proletário, o Justiceiro, o Magnânimo, o Africano, e muito mais. Guerra sem
quartel, Sagal revela-se astuto, faz frente ao Educador, o superior que ele
despreza. A FRELIMO encontra pela frente a bravura de Sagal e dos seus
camaradas. Em cerimónia ele é batizado como Leão do Sagal, é condecorado. Chega
ao 25 de Abril, Sagal estará presente nos acontecimentos do levantamento dos
brancos em Lourenço de Marques, no Rádio Clube, vem a independência, Sagal
parte para África do Sul, a sua vida está sem destino, aceita uma proposta
feita pelo coronel Peter Vorwerk, vai entrar diretamente no conflito que
estalou em Angola, formou a equipa Zulu, se toda a narrativa até agora é
construída para não dar tréguas ao leitor, toda a operação para retardar e
anular o equipamento soviético e um contingente do MPLA é de deixar a garganta
seca, o Leão de Sagal sai ferido da refrega, é tratado na África do Sul,
regressa a Portugal.
Temos
agora a descida aos infernos, o herói transformou-se num pedinte, um sem-abrigo
que dorme nas arcadas da estação de Santa Apolónia. Mãos amigas levam-no para a
recuperação, vai para um mosteiro de budismo zen, na Serra do Caldeirão, até
que chega o tempo de abalar, sente-se refeito, anda à procura de trabalho,
temos agora a etapa capital de ir para o Pão de Açúcar na Venda Nova,
prepõem-lhe a tarefa de repositor, alomba com caixas, embrulhos, o ambiente
envolvente é de grande hostilidade, vivia-se o PREC, havia roubos e muitas
faltas, abundavam as pichagens de um grupelho que se intitulava FNP – Frente
Nacionalista Popular. Destemido, o Leão de Sagal monta uma armadilha à
Quadrilha do Cigano, impõe-se junto dos seus superiores, lembra-lhes do seu currículo:
“Sagal, o sacana que impediu que a vossa caixa-de-merda a que chamam
supermercado fosse saqueada e incendiada. O mesmo Sagal combateu e matou filhos
da puta no planalto dos macondes, na estrada de Marracuene, no deserto de
Moçâmedes e nas margens do rio Cunene. Esse sacana enfrentou comunas bem piores
que os piolhosos que vos estragam o negócio. É o único que pode salvar esta
vossa trampa atulhada de destroços.” Reunido com os seus superiores, faz-se
nomear gerente-chefe, com plenos poderes. O supermercado da Venda Nova enfrenta
a Quadrilha do Cigano, desmonta a operação da FNP, está ao serviço de um
projeto imobiliário secreto, manda embora o piquete de segurança, inútil,
apercebe-se que alguém no interior montou uma outra operação para estragar produtos,
como é próprio das sagas, o Leão de Sagal rodeia-se dos antigos camaradas de
guerra, obtém-se o radical controlo dos furtos, fica-se a saber que a Quadrilha
do Cigano é o braço armado da FNP, o Educador anda por ali, Sagal obtém
informação de que os arruaceiros preparam um ataque em grande escala, a
resposta é brutal, o cigano é abatido, a minimaratona está praticamente
concluída, é desmascarado o bandalho que andava a sabotar os produtos, coisas
como pôr cigarros na margarina. E como em todas as sagas, e quase como uma
homenagem aos romances de Mickey Spillane, o badalhoco do Educador é batido à
boa maneira, mais truculento não podia ser:
“O
vulto emergiu por entre os carros estacionados no parque. Avançou agachado para
as minhas costas. Enquanto eu rodava, levei a mão ao .38 entalado no cinto das
calças. Quando o vulto disparou, eu disparei. A bala do cabrão entrou-me bela
antiga cicatriz da coxa, furando a perna e a chapa do Honda Civic.
A
minha bala acertou-lhe no pescoço. Um tiro de sorte. Levou as mãos ao rasgão
nas goelas, por onde fervilhava sangue a espirrar para os lados. Deixou-se
tombar entre os carros, escorregando até ao chão, sem pressa. Esticou o pernil
sem o ai, os olhos abertos, o espanto, a surpresa vincada num olhar – o olhar
apagado do líder da FNP, o corpo imóvel e sem vida do Educador.”
António Brito é exímio nesta literatura de um justiceiro duro, bem à portuguesa.
Mário Beja Santos
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